Aos que criticam o nacionalismo catalão

Para certa esquerda, exigir que numa região e num país haja mecanismos democráticos é alimentar um discurso nacionalista, xenófobo e excludente

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Para certa esquerda, que se diz “cosmopolita”, exigir que num bairro, numa região e num país haja mecanismos democráticos é alimentar um discurso nacionalista, xenófobo e excludente

Por Nuno Ramos de Almeida

Sigo a realidade na Espanha em zonas onde as tensões são mais agudas e violentas. Nos lugares onde, para Madrid, existem sentimentos nacionalistas: basco, catalão, galego e até andaluz. Sempre me surpreendeu que as pessoas  imersas num conflito que tem dimensões identitárias não percebam que a identidade ideológica dominante tende a parecer não existir, como se fosse uma espécie de buraco negro invisível que só é perceptível pelo comportamento que obriga outros planetas a mover-se na sua gravitação.

Nós não temos um problema de negros nos EUA, temos um problema de racismo de brancos que historicamente escravizaram, segregaram, discriminaram e guetizaram a maior parte da população negra desse país, que não tem igualdade de acesso ao ensino, à saúde e à justiça; nós não temos um problema com mulheres feministas, temos um problema de mais de metade da população não ter igual acesso aos lugares de poder na nossa sociedade e de as mulheres serem objetificadas do ponto de vista sexual (o que não é o mesmo que a livre expressão do desejo), como se fossem um objeto para deleite dos homens, que dominam a sociedade; nós não temos um problema com os trabalhadores, temos um problema com um modo de produção capitalista que emprega e desemprega a gente que cria a riqueza, conforme os apetites do jogo bolsista, e que redistribui de uma forma cada vez mais desigual a riqueza criada no mundo. Da mesma maneira que não há um problema com os catalães – o problema é o nacionalismo espanhol, que tem a imensa capacidade de parecer invisível; só se manifesta nas ruas por oposição aos outros e limita e reprime decisões democráticas tomadas nessas comunidades.

Há quem diga que este discurso pode ser verdadeiro em relação aos negros, às mulheres e aos trabalhadores, mas não se aplica a determinadas comunidades políticas a que se estabeleceu chamar nações. Dar expressão a essas identidades seria dar uns passos atrás e alimentar uma dinâmica xenófoba e excludente.

Há uma determinada esquerda para a qual a União Europeia é uma democracia, sem entenderem que as suas principais decisões de austeridade, estabelecimento da moeda única, dar prioridade aos banqueiros e ao capital financeiro em vez de dar condições de vida à maior parte das pessoas que lá vivem são a consequência direta da sua arquitetura, que é feita para garantir o predomínio da livre circulação dos capitais sobre tudo o resto. Essa gente não percebe que a única possibilidade de contrariar esse poder gigantesco do capital é a recuperação da soberania democrática e popular, em todos os espaços em que ela se pode exercer. Para essa esquerda, que defende o cosmopolitismo, exigir que num bairro, numa empresa, numa região e num país haja mecanismos democráticos em que as pessoas exerçam a autodeterminação é alimentar um discurso nacionalista, xenófobo e excludente.

Essa gente prega que o único caminho é ter fé e ajoelharmo-nos perante o capital financeiro global, retirar-lhe todas as regulamentações e rezar para que a expansão desse capital transnacional nos leve automaticamente a uma democracia política mundial que vá controlar o capital e democratizar e economia. Não há nenhuma margem de controlo democrático perante a globalização e a financeirização das nossas economias. É preciso recuperar a escala e o controle democrático para que, depois, a globalização possa ser feita em moldes democráticos. A crise da democracia perante o capital deriva de que, na democracia, cada pessoa tem direito a um voto, enquanto no capital financeiro manda quem tem mais ações. Na vida real, são as grandes multinacionais que decidem sobre quase tudo e dominam a economia, deixando às pessoas o poder de decidir sobre a forma como tocam o hino e hasteiam a bandeira.

Ao contrário do que se afirma, o independentismo catalão não está construído sobre um discurso excludente – 70% dos eleitores catalães provêm de fora da Catalunha –, mas sobre uma reivindicação de democracia e autodeterminação que foi multiplicada e tornada urgente com a última crise econômica e financeira do capitalismo. O Estatuto da Catalunha, depois de ter sido aprovado no parlamento catalão, alterado no parlamento espanhol e referendado pelos eleitores catalães, foi vetado em 2010 pelo Tribunal Constitucional espanhol.

Mais de 35 leis do parlamento catalão foram vetadas depois por Madrid. O parlamento da Catalunha aprovou uma lei sobre pobreza energética que previa que as populações mais pobres pagassem menos eletricidade para garantir o seu acesso a um bem essencial; o governo do PP vetou-a. Para Mariano Rajoy, o presidente do governo do PP, é normal as empresas colocarem dinheiro no caixa do seu partido para verem os seus projetos aprovados; é normal a direção do PP estar em liberdade quando é confirmado pelo principal investigador do caso Gurtel* que o presidente do governo recebia parte do dinheiro das empresas nesse esquema de corrupção; para o PP é natural que os contribuintes paguem os bilhões de euros dos desfalques e prejuízos dos banqueiros e dos seus bancos, mas é ilegal que se ajudem as famílias mais pobres a sobreviver.

O que se faz na Catalunha é o mesmo que é feito em qualquer região de Espanha. A Câmara de Madri, dirigida por uma coligação com o Podemos, reduziu em dois bilhões de euros a dívida do município, herdada do PP, com uma política que privilegiava os gastos sociais, o pagamento das dívidas aos mais pobres e necessitados e contestação e renegociação dos pagamentos especulativos. O governo espanhol fez uma intervenção na Câmara e colocou para vigiar todos os movimentos financeiros do município um dos homens que mais endividou os bancos em seu município de origem. Os madrilenhos e os seus eleitos não podem decidir como pagar as suas dívidas. O governo de Rajoy está lá para dar primeiro aos seus amigos, aqueles que lhe alimentam o caixa. Aqui como na Catalunha, há um problema de autodeterminação. Isto é assim há muito tempo.

No dia 3 de março de 1976, cinco mil operários de Vitória-Gazteiz, no País Basco, estavam em greve por aumentos de salários. A Espanha vivia a chamada transição democrática. Quando saíam da Igreja de Zaramaga, os operários foram literalmente fuzilados pela polícia. Nas gravações das forças da ordem pode ouvir-se um policial dizer a outro: “É um massacre.” No chão ficaram cinco mortos e mais de 100 feridos. No dia seguinte, a polícia abateu mais duas mulheres durante protestos. O ministro da Administração Interna da época era Fraga Iribarne, que veio a ser fundador e líder do partido que derivou no atual PP. O cantor catalão Lluís Llach escreveu naquelas horas uma música que ressoa até agora: Campanades a morts fan un crit per la guerra dels tres fills que han perdut les tres campanes negres (Os sinos da morte lançam um grito de guerra de três crianças que perderam três sinos negros).

Quarenta anos depois do massacre visitei o bairro de Errekaleor, que foi construído nos anos 50, por ordem de Franco, nos arredores de Vitória-Gazteiz. “A ideia de o construir fora da cidade foi para não contagiar os locais com as ideias de pessoas que vinham de outras regiões de Espanha, entre as quais havia comunistas e anarquistas”, explica Carlos, um dos elementos do coletivo independentista basco de uma centena de jovens que ocupa o bairro. “Os franquistas só mandaram construir as casas: todas as infraestruturas sociais – cantina, cinema, salas coletivas – foram feitas pelos próprios operários.” Passamos junto à casa de Romualdo Chaparro, original da província da Estremadura, um dos trabalhadores assassinados há 40 anos –na época, tinha apenas 19. Nas paredes exteriores da casa foi pintado um mural em sua homenagem pelos jovens independentistas bascos. Pode ver-se a cara dele e do pai e a inscrição: “Tal pai, tal filho.” Foi o pai de Romualdo, também estremenho, que não se conformou com a morte do filho e criou a Associação das Vítimas do 3 de Março. Anos depois, o bairro foi-se esvaziando devido a uma política imobiliária que deixou milhares de casas vazias na cidade.

Os jovens ocuparam-no e a polícia já tentou despejá-los várias vezes. Contaram com a solidariedade de centenas de pessoas do País Basco e do resto de Espanha, e resistiram. Funcionam por coletivos e em plenário. Construíram uma padaria, horta coletiva, biblioteca. Os jovens ocupantes querem reivindicar o uso de milhares de casas devolutas existentes em Vitória-Gazteiz e estabelecer uma forma de vida alternativa em que os problemas sociais sejam resolvidos em conjunto.

Aqui, como na Catalunha – onde dezenas de milhares de pessoas garantiram que dois milhões e 200 mil pessoas pudessem votar no referendo de 1 de outubro –, há um movimento para dar poder às gentes. Foram as pessoas que ocuparam um bairro basco, foram também elas que ocuparam as escolas, se auto-organizaram, na Catalunha, e garantiram que a liberdade e a democracia pudessem expressar-se contra as balas de borracha e as agressões  policiais. A história ainda não acabou. Mas isto aconteceu.

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* Investigação iniciada em novembro de 2007 pela Fiscalía Anticorrupción espanhola sobre uma rede de corrupção política vinculada ao Partido Popular, de Mariano Rajov, atual presidente do governo da Espanha, que funcionava principalmente em Madri e Valência [nota Outras Palavras]

 

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