Anatomia de uma chantagem

Como o mercado financeiro serve-se da mídia para exigir a elevação insana das taxas de juros – e torpedear alternativas

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Como o mercado financeiro serve-se da mídia para exigir a elevação insana das taxas de juros — e torpedear alternativas

Por Paulo Kliass | Imagem: Usura, de Antoon Van Dyck (detalhe)

 

As forças políticas e os defensores de idéias e propostas alternativas às da ditadura financeira necessitam estabelecer estratégias para convencer o público e debater com os adversários. Não basta ter as melhores proposições, nem mesmo tê-las comprovadas pela prática. É preciso ganhar a opinião pública, algo ainda mais complicado quando se trata de temas de densidade técnica, em terrenos escorregadios, onde poucos se sentem com conhecimento e capacidade de intervir. Aqui, entram em cena mecanismos fundamentais para a criação de consensos no interior da sociedade. Pouco importa se são estabelecidos pelo apego emocional ou por argumentos de pouca sustentabilidade racional. O que vale é o resultado final do embate. Quem ganhou, quem perdeu.

O conceito de hegemonia pode ajudar a entender melhor o quadro atual. A noção, cujas origens remotas estão na Grécia Antiga, foi recuperada para o mundo contemporâneo pelo pensador italiano Antonio Gramsci. E passou a ser utilizada no campo das ciências humanas em geral. Pode ser vista como supremacia, influência preponderante, autoridade soberana, liderança ou predominância. No campo das disputas políticas e ideológicas, revela-se útil para avaliar as forças e as potencialidades das idéias.

Desde a crise financeira internacional de 2008, vivemos tempos de forte indefinição. Para evitar um colapso da economia mundial, o establishment recorreu, em desespero, a instrumentos teóricos e políticas públicas até então consideradas heréticos e irresponsáveis. Os ditames do Consenso de Washington foram rapidamente superados. Mas isso ocorreu sem o necessário processo de autocrítica e revisão dos elementos que lhes davam sustentação teórica.

Os paradigmas mudaram muito rapidamente nos espaços de tomada de decisão, mas as cabeças ainda foram formadas no antigo pensamento hegemônico da escola neoliberal, superada pela realidade. Emergiu uma disputa de projetos e idéias no interior das organizações multilaterais, como o FMI e Banco Mundial. Longas polêmicas estenderam-se para as universidades e centros de pesquisa. Houve intensos debates entre economistas a respeito dos rumos e das alternativas de política econômica.

Mas o tempo de sedimentação das novas formas de encarar o fenômeno econômico é lento: corresponde à velocidade da mudança das idéias. E o tempo da tomada de decisão das autoridades públicas é o do aqui-e-agora: a urgência do imediatismo necessário para conduzir o país em seu cotidiano. O setor que se beneficiou do modelo financista fracassado compreendeu com clareza este cenário — e traçou, para enfrentá-lo, uma estratégia competente. Derrotado pela crise, passou a uma postura mais defensiva. Aguarda o momento adequado para buscar a volta por cima.

Como não é possível questionar abertamente as novas orientações do FMI sobre a necessidade de controlar os fluxos de capitais; nem atacar a volta do Estado à economia; nem ressuscitar o mito das “solução de mercado” – o suposto livre jogo das forças de oferta e demanda – para todos os problemas econômicos, procura-se minar e desacreditar as propostas alternativas por meio de um acesso privilegiado aos grandes meios de comunicação. Em suma, o financismo busca desqualificar o adversário, mesmo sabendo que não tem alternativas a oferecer no curto prazo – a não ser a preservação de seus postos e interesses.

Um detalhe não pode passar desapercebido. Os representantes do capital financeiro

contam com a boa vontade de setores do governo. Não surgem, na equipe de Dilma,

vozes suficientes para criticar as viúvas do neoliberalismo

Nesse período de disputa por novas idéias e modelos, os órgãos da “grande” imprensa são o palco privilegiado para o capital financeiro resistir às mudanças e disparar contra as alternativas – que vão sendo construídas pouco a pouco. A mídia cria uma blindagem contra o novo. Os comentaristas, analistas e “especialistas” ouvidos são quase sempre os mesmos, repetindo monocórdios as mesmas interpretações e apresentando as mesmas sugestões.

Eles próprios constroem o cenário sobre o qual pretendem atuar, oferecendo a sua própria solução. E a imprensa se encarrega de reproduzir tal quadro, repetindo os pressupostos ad nauseam e criando um falso clima de consenso na sociedade. É a busca da supremacia na marra, a construção da hegemonia com características de artificialidade.

O processo aparece com força no debate sobre as alternativas de política econômica, em disputa inclusive no interior da equipe da presidenta Dilma. Qualquer tentativa de apresentar medidas contra a inflação que não incluam elevação da taxa de juros é ferozmente combatida. A tática mais utilizada é criar um clima de catastrofismo nos dias que antecedem às reuniões do Comitê de Política Monetária (o Copom), de maneira a pressioná-lo a elevar a taxa básica de juros (Selic).

Os jornais contribuem, ao difundir informações alarmistas sobre o risco da inflação escapar ao controle. Consideram que qualquer índice inflacionário acima de 4,5% ao ano (o “centro da meta” do Copom) é inaceitável. Expõem as previsões para os índices futuros, mas não analisam os fatores que os pressionam – o que bastaria, para demonstrar que de nada adianta aumentar os juros para combatê-los.

Quando setores do governo reconhecem os prejuízos impostos à sociedade e à economia pela política que permite a valorização irresponsável do real, o financismo vai para as manchetes, denunciar os riscos da intervenção pública no mercado de moedas estrangeiras. De acordo com as opiniões dos analistas sempre de plantão, o ideal seria aguardar pacientemente o “dia do equilíbrio final”, quando a oferta e a demanda pelo dólar deverão se igualar no mercado de divisas. Ninguém se manifesta sobre os custos embutidos nessa hipótese: desindustrialização, risco de crise cambial.

De tempos em tempos, os representantes do capital financeiro exigem – sempre com respaldo da mídia – redução dos gastos públicos. Os jornais não escrevem uma linha para mostrar que o pagamento de juros é um dos maiores itens de despesa orçamentária.. E que esse tipo de gasto estéril só aumenta ao longo do ano, a cada aumento da taxa de juros decretado pelo Copom. Os gastos com custeio e investimentos apresentam taxa alta de retorno social e econômico – inclusive, via pagamento de tributos. Mas a mídia insiste na direção oposta: o governo deve cortar na própria carne – mas que não ouse tocar no filet mignon das despesas financeiras…

Um detalhe não pode passar desapercebido, porém. Os representantes do capital financeiro – especialmente dos rentistas – contam, em sua empreitada, com a boa vontade de setores do governo. Não surgem, na equipe de Dilma, vozes suficientes para criticar as viúvas do neoliberalismo. Tudo indica que o temor das ameaças do capital financeiro ainda é muito presente. E isso contribui para tornar ainda mais lenta a desconstrução ideológica da ordem antiga e mais difícil a construção de um novo modelo a ser aceito na sociedade.

Paulo Kliass é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

 

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