Julio Cortázar revive aos 100

No centenário de nascimento do escritor argentino emerge a exuberante coleção de suas obras publicadas pós-morte, recuperadas por crítico literário e ex-mulher

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No centenário de nascimento do escritor argentino emerge a exuberante coleção de suas obras publicadas pós-morte, recuperadas por crítico literário e ex-mulher

Por Ricardo Viel, no Retrato do Brasil

Há um par de anos um jornalista argentino levantou a hipótese de que Julio Cortázar não tivesse morrido, mas que estivesse trancado em algum porão, em Paris ou Buenos Aires, escrevendo durante 24 horas diárias ao longo dos 365 dias do ano. A brincadeira fazia referência à quantidade de livros que foram publicados após a morte do escritor, em 1984, e mais concretamente na última década. Por trás dessa enxurrada de publicações em nome do (ou sobre o) argentino – e que incluem cinco volumes de correspondências, contos e fragmentos de romances inéditos, uma conferência em forma de ensaio e um álbum biográfico, além da reedição de vários títulos – está o catalão Carles Álvares Garriga.

Quando Cortázar morreu, em Paris, Garriga tinha apenas 15 anos e não havia lido nada do autor de Histórias de Cronópios e Famas. Alguns anos depois, Garriga, dedicou suas teses de mestrado ao autor de A volta ao dia em oitenta mundos. Seria apenas um estudante de literatura a mais a escrever sobre Cortázar, mas seu estudo chegou às mãos de Aurora Bernárdez, primeira mulher do escritor e herdeira legal de seu espólio. Conheceram-se, estreitaram amizade e, um dia, na antiga casa do escritor em Paris, a tradutora decidiu mostrar ao pesquisador uns “papelitos” que estavam guardados num móvel e poderiam ser de interesse. Eram centenas de folhas e de enorme valor. “De madrugada, todo o apartamento estava empapelado de textos nunca publicados em livro. Como era possível que esse tesouro não estivesse ordenado, classificado, inventariado, microfilmado?”, conta Garriga no prólogo de Papéis inesperados, de 2009, livro de quase 500 páginas que congrega diversos textos inéditos (de capítulos descartados a autoentrevistas). Cortázar gostaria que esse material fosse conhecido? O investigador é categórico na resposta e apresenta dois argumentos. Primeiro, o que não queria ver publicado, Cortázar simplesmente queimava (foi o que fez, por exemplo, com um romance de 500 páginas escrito aos 20 anos). E, em segundo lugar, o escritor deixou em testamento que a decisão de publicar o que legava ficaria a cargo da ex-mulher.

Carles Garriga e Aurora Bernardez

Carles Garriga e Aurora Bernardez

Depois de Papéis inesperados, a dupla Aurora e Garriga editou um livro com mais de cem cartas e postais que Cortázar enviou da Europa, entre 1950 e 1983, ao casal de amigos Eduardo e María Jonquières, que viviam em Buenos Aires. Esse livro de correspondências funciona quase como uma autobiografia (“É sua melhor biografia”, define Aurora), já que nelas o escritor aborda temas pessoais, políticos e literários. Comenta sobre sua vida, sobre os livros que está escrevendo e sobre o passar do tempo. Nos últimos anos, a dupla hispano-argentina ainda publicou um livro que recupera aulas que Cortázar – “o professor menos pedante do mundo”, como define Garriga no prólogo – deu em 1980 a alunos de uma universidade nos EUA e um álbum biográfico com imagens inéditas do escritor e textos que contam sua vida. Em 2013, a editora Alfaguara lançou, sob a supervisão do investigador e da tradutora, uma cuidada edição comemorativa dos 50 anos de Rayuela [O jogo da Amarelinha, em português]. Foi o início das homenagens que se estendem por todo este ano por conta do centenário do nascimento de Cortázar e dos 30 anos de sua morte. “Tenho certeza de que em 2015 ninguém vai querer ouvir falar de Julio até, pelo menos, 2024”, brinca o investigador espanhol. “Não tem problema, serão uns anos sabáticos para mim e Aurora, que merecemos descanso. Assim como merece descanso o bolso dos cortazarianos”, completa.

Cortázar mudou-se para Paris em 1951, aos 37 anos, sentindo-se asfixiado pelo peronismo e graças a uma bolsa do governo francês. A estada, que era para durar dez meses, se estendeu até fevereiro de 1984, quando morreu vítima de leucemia. Na Argentina, o escritor havia trabalhado como professor e tradutor, feito críticas literárias e escrito alguns contos. Na capital francesa arrumou um trabalho na Unesco, braço cultural das Nações Unidas, o que lhe dava tempo para dedicar-se à escrita. Andou à procura do limite, arriscou e intensificou sua voz, lúdica e rompedora, até que em 1963 nasceu Rayuela, o livro que colocou seu nome no cenário da literatura mundial e deu início ao chamado boom de escritores latino-americanos.

Era um livro planejado, que foi sonhado durante anos. Em 1959, Cortázar escreveu uma carta ao amigo Jean Barnabé em que dizia que havia começado a escrever algo que seria como um antirromance (una antinovela): “Uma tentativa de romper com os moldes em que se petrifica esse gênero”. Em 1962, ao agente literário Paul Blackburn, disse: “Se te interessa saber o que penso deste livro, direi com a minha habitual modéstia que será uma espécie de bomba atômica no cenário da literatura latino-americana”. E era. Viriam outros romances, outros livros de contos, outros livros inclassificáveis, mas seria com Rayuela que Cortázar ficaria marcado. Em 1980, Juan Carlos Onetti escreveu um texto contando sobre o impacto que esse romance causou. “Sem aviso prévio apareceu Rayuela. Ali Cortázar se descolocava e se colocava. Descolocava-se da tradição romanesca de nossos países, roubada ou aceitada do que se escrevia na Espanha ou na França. Sua atitude resultou escandalosa para infinitas múmias.” Muitas das múmias a que se referia Onetti nunca aceitaram alguém que escrevia com certa insolência, que propunha jogos, que apostava numa literatura lúdica e informal e que, principalmente, não escondia sua posição política ao declarar-se pró-Cuba, celebrar a Revolução Sandinista, criticar a ditadura argentina.

A modéstia de Garriga o impede de dizer que, ao lado de Aurora, ajudou a construir, graças às publicações que editaram, a imagem atual de Cortázar. “Não acho que sem essas edições póstumas o nome de Cortázar tivesse sido apagado, porque verdadeiramente tenho a impressão de que livros como Rayuela ou Bestiário, ou História de cronópios estão condenados a perdurar ao menos muitas décadas entre os leitores.” No entanto, o investigador catalão reconhece que durante anos Cortázar foi considerado um escritor menor, sobretudo na Argentina. Seu autoexílio em 1951 foi o episódio que deu início a essa relação complicada – com os órgãos oficiais, aclaremos, porque com os leitores argentinos sempre houve carinho. Em dezembro de 1983, em sua última viagem à terra natal, Cortázar não foi recebido pelo então presidente Raúl Alfonsín, que alegou problemas de agenda. Dois meses depois, o mandatário demorou quase um dia para enviar um telegrama de uma linha a Paris lamentando a morte do escritor. Cortázar também foi atacado pelos intelectuais por supostamente escrever numa linguagem que não era sua, como se o fato de morar em outro país por décadas lhe tirasse o direito de situar suas histórias na capital argentina. Por fim, foi rotulado como escritor menor, de ser autor de textos sem seriedade, adolescente, frente a figuras como Jorge Luis Borges, por exemplo.

Parece que essas arestas serão finalmente aparadas agora, no ano em que o criador dos Cronópios completaria um século de vida. “Acho que o grande congresso que se realizará agora em agosto, na Biblioteca Nacional Argentina, é uma mostra de que estão situando o autor no lugar onde ele merece estar, dentro de algo muitas vezes arbitrário como é o cânone acadêmico”, diz Garriga. Este 2014 foi também declarado “Ano Cortázar” pelo Ministério da Cultura da Argentina. Exposições, publicações, congressos, leituras coletivas e a criação de um museu são apenas algumas das atividades que marcarão os cem anos do escritor, que sempre foi amado por seus leitores e que, ao que parece, conquista, por fim, espaço entre acadêmicos, intelectuais e responsáveis pela administração pública – algo que Cortázar nunca buscou, diga-se. Em uma entrevista, meses antes de morrer, afirmou: “Espero que nunca ponham meu nome em uma rua ou praça. Nada seria mais horrível”. Sua ideia de sucesso e reconhecimento era outra, assegura Garriga. “A popularidade real, que se mede nas ruas, com seu rosto estampado nas camisetas dos jovens ou suas frases pintadas nos muros, essa não decai. Onde ele estiver, é esse reconhecimento que lhe interessa, posso garantir isso.”

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