A última chance de Gaddafi

Robert Fisk escreve: ironicamente, o fio de esperança do ditador é (como Saddam em 1991) mobilizar país contra sanções ocidentais

.

Por Robert Fisk, The Independent | Tradução Coletivo Vila Vudu

Pobres líbios! Depois de 42 anos de Gaddafi, o espírito da resistência ainda existe, mas já não sopra tão forte. O coração intelectual da Líbia voou para longe de lá.

Os líbios sempre resistiram contra ocupantes estrangeiros, exatamente como os argelinos, egípcios e iemenitas –, mas o Amado Líder líbio sempre se apresentou mais como companheiro resistente do que como ditador.

Por isso, no longo discurso-paródia dele mesmo e de outros discursos, ontem, em Trípoli, Gaddafi invocou Omar Mukhtar – enforcado pelo exército colonial de Mussolini –, em vez de adotar o tom paternalista autoritário de um Mubarak ou Ben Ali.

E contra quem Gaddafi estaria lutando, para libertar a Líbia? Contra a Al-Qa’ida, é claro. De fato, há um trecho interessante, no discurso de Gaddafi, ontem, na Praça Verde. Seu serviço líbio de inteligência, disse ele, ajudou a libertar membros da al-Qa’ida que estavam presos na prisão norte-americana de Guantánamo, em troca da promessa de que a al-Qa’ida não operaria na Líbia nem atacaria seu governo. Mas a al-Qa’ida traiu os líbios – Gaddafi insistiu – e implantou “células em hibernação” [ing. sleeper cells] no país.

Independente de Gaddafi acreditar ou não no que disse, houve rumores em todo o mundo árabe sobre contatos entre a polícia secreta de Gaddafi e agentes da al-Qa’ida, contatos feitos para evitar que se repetissem os mini-levantes islamistas que Gaddafi enfrentou há alguns anos, em Benghazi.

Muitos membros da al-Qa’ida, sim, são líbios – motivo pelo qual o patronímico “al-Libi” aparece em tantos codinomes de combatentes. Para Gaddafi, que já hospedou grupos de terroristas do palestino Abu Nidal (que jamais o traiu), a desconfiança de que a al-Qai’da esteja de algum modo por trás do levante no leste da Líbia é ideia, pode-se dizer, natural.

Desnecessário dizer que, provavelmente no próximo discurso, se houver, Gaddafi lembrará os líbios de que a al-Qa’ida era satélite dos muito árabes mujahedin que os EUA usaram para combater a URSS no Afeganistão.

Verdade é que a feroz resistência que os líbios ofereceram à colonização italiana aí está, para provar que o povo sabe combater pela vida. Na “Tripolitania”, os líbios eram obrigados a andar pelas sarjetas, se houvesse italianos andando em direção oposta na mesma calçada; e a Itália fascista usou aviões e tropas de ocupação para dobrar a Líbia.

Ironicamente, foram forças britânicas e norte-americanas, não os italianos, que liberaram a Líbia. E lá deixaram um legado de milhões de minas terrestres em torno de Tobruk e Benghazi, que Gaddafi jamais deixou de explorar a seu favor, enquanto pastores líbios continuam a morrer nos mesmos velhos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial.

Isso, para dizer que os líbios não são desconectados da história. Os avós – em muitos casos, os pais – dos que hoje combatem lá, lutaram contra os italianos. Há, sim, uma narrativa histórica real e próxima por trás dos movimentos de oposição a Gaddafi, assim como há também motivos históricos, tanto na ‘resistência’ em que Gaddafi se encastelou (contra a ameaça mítica da brutalidade ‘estrangeira’ da al-Qa’ida) quanto nos grupos de apoio ao seu governo.

Mas, diferente da Tunísia e do Egito, as “Massas do Povo” da Líbia são mais mundo tribal que sociedade nacional. Dois parentes próximos de Gaddafi – o chefe de segurança em Trípoli e o mais influente comandante da inteligência em Benghazi – eram, respectivamente, seu sobrinho, Abdel Salem Alhadi, e seu primo, Mabrouk Warfali. A tribo de Gaddafi, os Guedaffi, vem do deserto entre Sirte e Sebha –, no mínimo mais um fator que explica por que o oeste da Líbia ainda permanece sob controle do governo.

É absoluta tolice, nonsense, falar, como anda falando o departamento de Estado de Hillary Clinton – de guerra civil na Líbia. Todas as revoluções, mais sangrentas ou menos sangrentas, são guerras civis, até que forças externas intervenham – o que o ocidente claramente não quer fazer e o povo do leste da Líbia já disse que não quer que o ocidente faça (David Cameron, preste atenção, por favor [e contenha-se]).

Mas Gaddafi fez guerra no Chad – e perdeu. O regime militar de Gaddafi não tem grande poder bélico e Coronel Gaddafi não é General Gaddafi. Portanto, continuará com a cantoria de hinos anticoloniais, e, enquanto suas brigadas de segurança conseguirem aguentar-se no oeste do país, Gaddafi poderá continuar a autoelogiar-se em Trípoli.

E um alerta: a ONU impôs sanções contra o Iraque, porque, na dificuldade que as sanções criariam, a população derrubaria Saddam Hussein. Não foi assim, porque os iraquianos mal encontraram forças para salvar a vida das famílias, sem pão e água potável, sem qualquer comida e sem dinheiro. Na rebelião de 1991, Saddam chegou a perder todo o país, exceto quatro províncias. E logo reconquistou o que perdera.

Hoje, os líbios do oeste estão vivendo sem pão, sem água potável e sem dinheiro. Ontem, Gaddafi falou da praça Verde, em Trípoli, com idêntica resolução de “resgatar” Benghazi dos “terroristas”. Ditadores não gostam uns dos outros, nem confiam uns nos outros, mas, sim, eles aprendem uns com os outros.

Leia Também:

2 comentários para "A última chance de Gaddafi"

  1. Antônio Carlos Viard disse:

    De fato, a Líbia não foi “libertada” pelas tropas angloamericanas, mas convertida num protetorado inglês, de 1943 a 1951, quando se tornou rei da Líbia o mesmo fantoche que servira aos italianos.
    Ressentem-se ainda essas análises pelo fato de não atentarem que a Líbia é uma construção geoplítica recente, enquanto as regiões que a compõem possuem milhares de anos de história: Tripolitânia, Cirenaica e Fezã. Ao se considerar isso, fica mais fácil de entender a oposição que hoje se manifesta entre a atual Líbia oriental (Cirenaica) e a Líbia ocidental (Tripolitânia).

  2. Matheus disse:

    “Ironicamente, foram forças britânicas e norte-americanas, não os italianos, que liberaram a Líbia. E lá deixaram um legado de milhões de minas terrestres em torno de Tobruk e Benghazi, que Gaddafi jamais deixou de explorar a seu favor, enquanto pastores líbios continuam a morrer nos mesmos velhos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial.”
    Para começar não sei qual é a ironia, já que os italianos eram os opressores. Irônico e paradoxal seria se eles fossem os libertadores, título que tampouco cabe aos britânicos e estadunidenses. Aqui, o autor “esqueceu”, voluntária ou involuntariamente (não que faça alguma diferença), o pequeno detalhe: os britânicos e estadunidenses não “libertaram” a Líbia, eles a tomaram dos italianos, impondo um rei-fantoche para governar segundo os seus interesses. Tal monarquia de fachada foi derrubada por um golpe militar nacionalista e reformista que levou ao poder o atual ditador Ghadaffi, que, SIM, realizou reformas importantes, como a redistribuição de terras e a nacionalização dos recursos naturais e empresas de petróleo. Foi em retaliação ao embargo econômico e aos bombardeios estadunidenses contra o seu país, nos anos 1980, que Ghadaffi financiou terroristas. Embora nunca tenha sido um socialista de verdade, e sim um reformista de índole nacionalista e islâmica, Ghadaffi mudou de atitude nos anos 2000, se aproximando dos EUA e UE, e abrindo o mercado líbio aos investimentos das corporações multinacionais.
    Libertadores seriam quem, portanto? Os próprios revolucionários líbios, que se opõem tanto ao terror de Estado nacional de Ghadaffi, quanto ao terror de Estado extrangeiro, representado pela ameaça de uma intervênção, mesmo que indireta (com o apoio/cooptação militar para os rebeldes).
    “E um alerta: a ONU impôs sanções contra o Iraque, porque, na dificuldade que as sanções criariam, a população derrubaria Saddam Hussein.”
    Faz-me rir a crença nas boas intenções. Saddam foi um tirano, tanto quanto Pinochet, Abdulla Al Saud e outros bons amigos do imperialismo estadunidense. Só que ele se tornou incoveniente, e, de um aliado útil a ser usado contra o Irã, tornou-se uma pedra no sapato do controle sobre o petróleo do Oriente Médio. É óbvio que o objetivo era enfraquecer principalmente o povo e o aparelho de Estado, e apenas secundariamente o povo, para manter o Iraque enfraquecido, para chantegeá-lo, e (como o destino mostrou), invadir e ocupar o Iraque sem grandes dificuldades.
    Enfim, um texto parcial, tendencioso, embora com mania pseudojornalística de “objetividadade, neutralidade e imparcialidade”, cheio de lacunas históricas que são extremamente reveladoras de conteúdos ideológicos implícitos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *