A síndrome da militância arrogante

Parte dos oprimidos adota, previsivelmente, a ideologia do opressor. Mas nem feminismo, nem outros movimentos libertários, deveriam julgar-se superiores

Por Marília Moschkovich, editora de Mulher Alternativa

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Parte dos oprimidos adota, previsivelmente, a ideologia do opressor. Mas nem por isso feminismo, ou outros movimentos libertários, deveriam julgar-se superiores

Por Marília Moschkovich, editora de Mulher Alternativa | Imagem: Nick Gentry

A situação não é nada nova: mulheres reforçando o machismo. Isso sempre existiu e existirá, enquanto houver machismo. Ser mulher não torna ninguém automaticamente revolucionária, feminista. Estar na condição de oprimido não torna ninguém necessariamente contra a opressão. Aqueles que lutaram e lutam pelo socialismo no mundo todo sabem bem disso. Se essa condição fosse suficiente para derrubarmos as opressões, definitivamente não teríamos saído da guerra fria como majoritariamente capitalistas, no mundo todo. Quem eram (e quem são) os soldados estadunidenses nas guerras contra “o comunismo”? Donos de empresas? A classe que tem os meios de produção? (eu realmente preciso responder essas perguntas pra vocês?)

A lógica é relativamente simples: existe uma forma dominante de pensar, que defende sempre os interesses de quem domina. Marx chamou isso de ideologia, Gramsci foi mais longe e pensou numa hegemonia, Althusser explicou que esse negócio se difunde por “aparelhos ideológicos” responsáveis em transmitir essas maneiras de pensar e reforçá-las (e, depois, dirá Foucault, a coagir e controlar as pessoas para que as executem). Essa é, substancialmente, a maneira pela qual quem concentra poder mantém o poder concentrado e a sociedade funciona como funciona. As opressões de classe, raça e gênero têm ainda uma série de ferramentas próprias para que se mantenham.

Por isso, não é de se espantar que mulheres reforcem o machismo, ou que pessoas negras reforcem o racismo, ou que pessoas mais pobres defendam os interesses de pessoas mais ricas, e daí em diante. Como militantes, porém, temos duas formas de lidar com essa situação.

A primeira forma é um tanto contraditória, mas extremamente popular entre militantes de diversas causas, infelizmente. Frustrados com essa contradição gerada pelos próprios sistemas de opressão, muitos de nós acabam descontando a frustração nas pessoas que, em tese, estaríamos defendendo. Há algumas semanas, várias companheiras feministas compartilharam no Facebook uma imagem que apontava alguns motivos pelos quais as mulheres deveriam reconhecer o feminismo. No fim da imagem, um pequeno asterisco estragava todo o propósito de militância, com os seguintes dizeres: “Mas se você prefere continuar lavando louça, provavelmente você deve ser mais útil na cozinha. Então fique lá, enquanto outras lutam por você. Não precisa expor sua ignorância para toda a rede”.

Ai. Essa me doeu na alma.

Doeu porque é uma postura muito comum: o militante, ou a militante, sente-se de alguma maneira superior porque consegue enxergar além do véu da ideologia dominante (como diria o barbudo alemão). Esse ar de superioridade faz com que ele ou ela sinta-se no direito de falar por grupos dos quais muitas vezes ele/ela não fazem parte e, muito pior que isso, excluir as próprias pessoas em situação de opressão da luta contra essa opressão. Acham-se no direito de determinar que sua luta “serve” apenas para algumas pessoas – aquelas iluminadas como ele/a, que enxergam os mesmos grilhões. Que raio de militância é essa?

Pessoalmente, prefiro uma segunda atitude possível diante dessa frustração. A bem da verdade, ela inibe o próprio sentimento de frustração. Consiste em enxergar, na existência de oprimidos que agem contra seus próprios interesses, um resultado inevitável do próprio sistema de opressão. Isso permite entender que, enquanto nossos movimentos (negro, feminista, de trabalhadores, etc) existirem, essa contradição existirá, já que a partir do momento em que acabarmos com a opressão, nossa própria militância perde o propósito de existir. Quer dizer: lutamos para acabar com uma opressão; enquanto essa opressão existir, existirá essa contradição que frustra muitos e muitas de nós; quando conseguirmos acabar com a opressão, conseguiremos acabar com a contradição; mas então, nosso próprio movimento deixará de existir.

O fim último de todo movimento contra opressões é que, como resultado de seu próprio trabalho, ele deixe de ser necessário. Que ele deixe de ser necessário precisa ser um objetivo geral, que valha para absolutamente todas as pessoas envolvidas nesses sistemas de opressão. Não dá pra pensar um feminismo que quer incluir apenas as feministas no processo e no resultado da luta. Não dá, gente. Não dá.

Ou o feminismo será para todas e todos, ou não será.

Marília Moschkovich é socióloga, editora do site Mulher Alternativa e co-editora de Blogueiras Feministas. Seus textos em Outras Palavras podem ser lidos aqui.

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17 comentários para "A síndrome da militância arrogante"

  1. Matheus disse:

    Que aula… não conhecia, favoritei 🙂

  2. Line disse:

    Tem as feministas que atacam mulheres que fazem depilação, mas quando se trata de mulheres criminosas e abusivas com outras mulheres, elas falam que essas mulheres são apenas ‘vítimas’ do machismo.

  3. eduardo de paula barreto disse:

    .
    PRESTENÇÃO
    Um repórter da Globo
    Chegou ao interior de Minas
    E viu descendo da colina
    Um homem do povo
    Então logo parou
    E se apresentou
    Pedindo para entrevistá-lo
    E meio sem graça
    O caipira que passava
    Se pôs a escutá-lo.
    O senhor acha que corrupto
    Deve ir para a cadeia?
    Aí seu moço vareia
    Respondeu o matuto
    Que ajeitando a cangalha
    Fumava cigarro de palha
    Na frente de um boteco
    E tinha na mão
    Um balde com
    Água para o jumento.
    Varia por quê?
    Insistiu o repórter
    Tudo é conforme
    O partido docê
    Se for da base aliada
    Vai ser preso por nada
    Mais se for do PSDB
    Pode robá à vontadi
    Porque num tem otoridadi
    Que vai ponhá a mão nocê.
    Aqui na roça
    Nóis fica miúdo
    Porque tem gatuno
    Que abastece carroça
    Cum gasolina aditivada
    E até as vaca
    Entra na dança
    Elas ganha caderno
    Uniforme e chinelo
    Como se fosse criança.
    O senhor teria coragem
    De dizer quem são
    Os corruptos que estão
    Praticando gatunagem?
    Prestenção seu moço
    Sô caipira mais num sô bobo
    Parece que o senhor num entendeu
    Porque um dos político mais torto
    Construiu aquele aeroporto
    Adonde o senhor desceu!
    Eduardo de Paula Barreto
    .

  4. Thiago disse:

    “abandone o ativismo”…

  5. Pops Sense disse:

    Depois que recebemos a boa nova, olhamos para aqueles que ainda receberam com indignação por não saberem!!!
    Vê se pode!!!
    Muitas vezes só soubemos da boa nova porque ALGUÉM muito paciente e com muito carinho nos conduziu para saber…… daí quando chega a nossa vez de conduzir…….nos indignamos, não conseguimos e pláft!!! Chingamos, mandamos ir se fuder, mandamos calar a boca pra não ouvirmos merda e daí pra baixo…
    Quanta falta de se tocar!!! Quanta opressão contra a opressão….
    😛
    Prestemos mais atenção.
    O segredo é aceitar as pessoas como são, nas fases que estão e só agir com amor. Sempre.

  6. Lucas Alvergas disse:

    Muito importante essa crítica! Lembrou-me de uma manifestação que ocorreu há algum tempo atrás que aconteceu num período onde a repressão aos protestos tava muito intensa aqui na região. Ao nos aproximarmos da tropa da polícia, um setor que estava compondo a manifestação começou a chamar uma palavra de ordem absurda: “Não estudou, tem que estudar, pra não virar polícia militar!”
    Como se a falta de estudo dos policiais fosse um motivo para diminuílos enquanto seres humanos. A polícia, como instituição, tem uma função clara que todos nós conhecemos, mas outra coisa é o policial, trabalhador, oriundo do proletariado, que não teve condições de estudar e infelizmente só achou sustento pra família sendo a ponta de lança do estado explorador…

  7. Lucas disse:

    Didático, obrigado.

  8. Art disse:

    Já parte do erro de achar que uma mulher lavando a louça é menos que as que não estão lavando

  9. Vic disse:

    Texto que representa todo meu nojo de muitos militantes. Os “iluminados”.

  10. Alan disse:

    Estudei o movimento feminista no ano passado (2013), e tive minha complicações em relação ao movimento feminista. Eu sei que não existe movimento machista, isto é praticado por homens que oprimem as mulheres, característica marcante do passado. Não quer dizer que não possa ser praticado em dias atuais, porém com menos frequência. O fato de uma mulher estar em casa lavando uma louça, limpando um chão e o homem na rua trabalhando não determina o machismo e nem que ela é oprimida. Existem mulheres que adoram ser donas de casa e homens que ficam felizes sabendo que estão dando todo o conforto para estas mulheres. O machismo começa quando ela quer trabalhar ou praticar alguma atividade física fora de casa e ele não deixa. Mesmo ele trabalhando fora tem que ajudar a mulher em casa. Caso ela comece a trabalhar fora ele precisa ajudar ainda mais. O feminismo busca a igualdade dos gêneros, porem ao meu ver não é por este meio que se consegue. Homens não precisam ser feministas para apoiar a igualdade, apoiar os direitos delas. É muito louvável que se comente e reflita este e outros erros das feministas. O que eu penso é que homem e mulher são todos seres humanos e precisam enxergar esta condição. Humanos seja homem ou mulher as diferenças são somente e puramente biológicos.

  11. ZmakerΩ disse:

    nunca a expressão “todos querem mudar o mundo mas ninguém quer lavar a louça” me fez tanto sentido 😐
    a demais… gramsci não apenas definiu termos, mas também metodologias para se manipular massas em cima destes estudos. não importa se de esquerda, direita, machista ou feminista – hoje em dia, todos os grupos que “representam” uma classe ou nicho são corruptos e manipuladores. digo todos por que não conheci algum que me prove o contrário, nem pessoalmente, nem por testemunhos. e são muitos, e variados.
    resumindo…:
    http://www.youtube.com/watch?v=mXnkeSVSyIU

  12. Mara Passos disse:

    Adorei o texto pois senti e talvez ainda sinta na pele esse efeito da arrogância militante. Foi um dos motivos pelos quais deixei de militar no partido comunista do brasil há mais de 15 anos.

  13. Raphael Mussato disse:

    Parabéns pelo texto! Realmente esse é um tópico muito pouco abordado, tampouco exposto de forma tão clara e elucidativa. No meu caso, reforçará mais ainda minha atenção em relação ao modo como lido com meu contexto de militância. Posto que, por algumas vezes _ tenho que confessar _ já caí em armadilhas semelhantes em momento de maior efusão. Vou compartilhar o link, pois creio que para muitos companheiros que conheço, seria de grande valia.
    Muito bom, mais uma vez, parabéns!

  14. mariana maia disse:

    Maravilhoso texto, e necessário. Afinal, quem está errada nesse jogo: a mulher que é vítima da opressão e, infelizmente, não quer/consegue fugir dela ou a feminista que exclui do movimento e repudia o próprio (a própria) objeto de luta? Gostei demais, meus parabéns!

  15. Jackson Xavier disse:

    Ótimo texto, com certeza de grande valia, vou divulgar à amigos, acho que muitos dos militantes deveriam ler este texto.
    – J Xavier

  16. Janethe Fontes disse:

    Já tinha lido esse texto antes e acabei não deixando uma resposta aqui. Aproveito agora a oportunidade para dizer que esse post me ajudou a entender os cuidados que devemos ter quando se trata de militância. Parabéns mesmo pelo texto!!!

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