A pedofilia amoral

Pode-se mostrar a pedofilia no cinema sem condená-la? Em que posição encontra-se o público diante destas imagens?

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Por Bruno Carmelo, do Discurso-Imagem

Diante do filme austríaco Michael, pode-se dizer que a surpresa inicial, o interesse pelo filme e também o freio principal à obra vêm de seu tema espinhoso: a relação entre um homem pedófilo e um garoto de dez anos, que ele mantém prisioneiro em sua casa. A maioria das críticas ou elogios usaram como fundamento a simples escolha do tema e o ângulo de abordagem: do começo ao fim, nenhum personagem é julgado bom nem mau, nenhuma ação é filmada de modo brutal ou catártico. De modo geral, pode-se dizer que Michael ilustra a curiosa “vida conjugal” destes dois indivíduos.

Pois aos leitores/espectadores que tiverem receio de ver tais cenas em tela, é preciso saber que embora o tema seja a prática da pedofilia (e portanto o estupro, o sequestro, a dissimulação, a infância perdida), o grande ângulo de ataque do realizador Markus Schleinzer é a maneira de se mostrar o sujeito, e não seu conteúdo. Muitos críticos falaram numa semelhança com Michael Haneke, seu parceiro de longa data (Schleinzer é seu diretor de elenco há anos), mas a proximidade se estabelece menos pelo tema do que pelo uso do enquadramento e da montagem. Enquanto Haneke mostra em suas imagens uma grande carga de violência moral ou verbal (jamais física), Schleinzer prefere deixar toda atrocidade a suposta.

As interações são ainda mais frias, mais repetitivas do que nos filmes de seu colega.

Um crítico chegou a falar numa “constante sensação de medo” , algo que descreve bem esse filme em que as faíscas entre o homem e o garoto estão sempre prestes a explodir, mas não explodem. Vai haver sexo? Luta? O garoto consegue fugir? Ao invés de nos fornecer estas respostas, a narrativa prefere explorar a convivência razoavelmente harmoniosa entre os dois, com eventuais brigas mas uma espécie de respeito mútuo – algo como um pai e um filho. Esta talvez seja a maior violência de Michael: tratar o pedófilo como um pai cuidadoso, não diferente de muitos outros. Basta olhar a cena exemplar em que os dois cruzam com outro pai ao lado de seu filho, e é impossível distinguir ao olhar a natureza da relação de uma dupla com a outra.

“As aparências enganam”, parece dizer o filme, em respeito não exatamente aos pedófilos, mas a esta espécie de presunção de inocência da qual desfrutam todos os indivíduos – até que se prove o contrário.E o contrário será provado, não quando Michael e o garoto passeiam pelo zoológico, mas quando este “pai” artificial entra no quarto-prisão do garoto para levar a comida. Ele demora certo tempo (a câmera espera, ansiosa, do lado de fora), e depois corre ao banheiro, para limpar o pênis na pia.

Não se vê o pênis, não se vê o esperma nem a penetração, mas esta sugestão é capaz de suscitar na cabeça do espectador imagens muito mais atrozes do que aquelas que ele poderia ter mostrado – porque o terror de cada um é criado a partir de seus medos, desejos e pulsões pessoais. Michael mantém uma relação muito particular com o espectador, este é um filme não tanto para ilustrar um tema, e sim para o olhar alheio, sabendo exatamente o que mostrar e o que sugerir, e talvez daí surja a maior parte das críticas de voyeurismo – que também atingem Michael Haneke, aliás. O tema do filme seria menos a pedofilia do que o efeito que a pedofilia provoca no público.

Deste modo, o grande interesse do trabalho visual desta obra se encontra em sua relação com o olhar e com as informações distribuídas ao espectador. Michael é de uma inteligência ímpar em seu uso do som off, do enquadramento fixo que deixa de fora os centímetros exatos que deseja ocultar, e principalmente da montagem de efeitos, em cenas de tensão gradativa, mas sem relaxamentos. Enquanto o roteiro constrói uma atmosfera conflituosa (o homem desce em direção ao quarto do garoto – abre a porta – olha para o interior – deita na cama – começa a se tocar enquanto observa o garoto), a grande explosão (o sexo) é ocultada por um corte seco na montagem.

Todo o interesse perverso da pedofilia está presente em sugestão, mas a edição elimina a imagem alguns segundos antes que vejamos as tais cenas. Michael está para o cinema como o sexo tântrico para o coito, ou seja, trabalha-se a excitação (sexual ou, no caso, espectatorial) progressiva e linear, mas sem a explosão (orgasmo ou, no caso, revelação da imagem). Existe sempre uma promessa, um medo e desejo simultâneos do espectador de se encontrar exatamente aquilo que se imaginava.

A frustração é portanto obrigatória: ou frustra-se pela ausência de novidade, ou frustra-se por ter obtido um conteúdo diferente do que se comprou. Este conflito do espectador, ligado intrinsecamente à materialização em imagens de um tabu, é embrulhado num tom horrivelmente banal, o que confere uma desproporção ainda mais incômoda – o tema perverso tratado de maneira natural. Uma cena representa bem a intensidade e a frieza simultâneas deste curioso filme. Em uma noite, ambos almoçam à mesa pacificamente, quando Michael se levanta e, lembrando a cena de um filme que viu na televisão, puxa o pênis para fora das calças e pergunta ao garoto: “Você prefere que eu te enfie uma faca ou o meu pau?”. Sem olhar nem um segundo sequer para o homem, sem parar de comer, sem surpresa alguma, ele responde instantaneamente: “A faca”. Michael recolhe o membro, fecha o zíper e os dois continuam a comer, em paz.

Michael (2011)

Filme austríaco dirigido por Markus Schleinzer.

Com Michael Fuith, David Rauchenberger, Christine Kain, Ursula Strauss.

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5 comentários para "A pedofilia amoral"

  1. sara disse:

    Pedófilo é um adolescente ou adulto que sente atração sexual primária por crianças pré-púberes (menos de 10 anos de idade)

  2. Elza Augusta disse:

    Filme prá mim é diversão, jamais me darei o incômodo de de sofrer diante de uma tela que retrata uma situação abjeta que a grande maioria de nós repuidia.
    Basta que eu saiba que essa tara nojenta exista, preciso vê-la também? Arre!

  3. Mic disse:

    Ainda não vi o filme de Markus Schleinzer, mas não sei onde o Bruno Carmelo encontrou voyeurismo na obra de Haneke. O Haneke é o voyeur ou o é o espectador que é o pervertido? Não entendi direito. Imaginem que voyerismo é até mesmo considerado “desordem sexual” — ou era, nessa sociedade da imagem onde o apelo erótico é usado até mesmo para vender massa de tomate e roupa (vide o beijo homossexual do Papa Ratzinger no aiatolá egípcio, made in Beneton). Não há locadora sem sua secção “suja” de pornôs e na internet centenas de milhares (seriam milhões) de sítios nos oferecem material voyeurístico de todo tipo e qualidade. Mas, voltando ao Haneke, acho que ele está mais para brechetiano, colocando a tese — ou a provocação — e mandando o povo pensar, que qualquer outra coisa mais perversa. Agora se alguém fica de pau duro ou sente tesão vendo um quadro de Goya ou uma bunda de mármore do Michelangelo, aí a história é outra. Interessante que em nenhum momento o articulista Carmelo referiu-se ao conteúdo homossexual da história de Markus Schleinzer, — história literalmente pederasta de um homossexual masculino adulto (poderoso e forte) que violenta seguidamente um frágil menino. Aliás, caíram de pau no Papa Ratzinger, quando ele disse que o verdadeiro problema (certamente da igreja dele) era a pederastia dos sacerdotes, nem tanto a pedofilia. Quanto ao Haneke vou rever O Castelo (baseado no Kafka), Fita Branca, Funny games (vergonhosamente traduzido como Violência Gratuita); porque, francamente, ver aperso nagem oculta de Caché estourar os miolos não me deu tesão algum. Nem a escarrada na cara que a Binoche levou em Código Desconhecido. Tampouco o delírio sangrento de Funny games. Entretanto fizeram com que pensasse na violência fascista da sociedade de consumo — geralmente oculta e mascarada–, que desencadeia a violência que nos faz virar a cabeça de lado e torcer o nariz. Ou ficar com tesão, como quer o Carmelo. Finalmente, –Haneke à parte — gostei da crítica do Carmelo, que decididamente entende de cinema.

  4. Jean disse:

    Concordo com o Mario. Essas “relações” acontecem diariamente nos interiores do país. Chegam a ser tratadas como costume, prática comum. Esse tema precisa sim ser discutido, revelado e o cinema nos permite isso. A arte nos permite viajar para dentro de um mundo, conhecer um pouco sobre ele, sobre os sentimentos das pessoas envolvidas nesta situação sem que ao mesmo tempo estejamos realmente vivendo isto.

  5. Mario Vieira da Silva disse:

    Há muito tempo eu vi uma entrevista com Fritz Lang, em que ele falava numa cena do filme “M” em que um estuprador mata uma menina. Não á cena de violência na tela, mas a cena é fortíssima.
    Fritz Lang explicou que não mostrou violência porque estava lidando com as idiossincrasias de cada espectador, que poderia imaginar, de acordo com as sua imaginação, doentia ou não, ou que poderia ter acontecido. Esta é a marca principal da arte cinematográfica: sugerir e emocionar. A pedofilia é uma prática tradicional da igreja católica, só agora vinda a tona por uma coragem nova das vítimas. O pedófilo aproveita-se da inocência e do desejo incipiente da vítima. Aí reside a agressão. Naturalmente que pessoalmente não aprovo, mas na mata brasileira muitos pais fornicam com suas filhas e a tal sociedade cristã fecha os olhos para o problema, que não é pequeno. A grande marca desse tal de cristianismo e a hipocrisia.

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