A necessidade da Filosofia

Ronaldo Lima Lins especula, em novo livro, sobre os caminhos e limites à busca do conhecimento. Ao fazê-lo, dialoga com Orwell, Rousseau, Hanna Arendt e Sartre

Jean-Paul Sartre e Michel Foucault, em maio de 1968. “No final da vida, quando percebeu que a filosofia e o saber possuíam um tempo de maturação mais longo do que a vida humana, Sartre resolveu fazer política”, diz o texto

Jean-Paul Sartre e Michel Foucault, em maio de 1968. “No final da vida, quando percebeu que a filosofia e o saber possuíam um tempo de maturação mais longo do que a vida humana, Sartre resolveu fazer política”, diz o texto

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RESENHA DE

O saber e os ventos do não saber

Ronaldo Lima Lins

Mauad X, 200 páginas

O saber e os ventos do não saber, de Ronaldo Lima Lins, é um livro que contém dez ensaios, todos voltados para a discussão sobre os caminhos possíveis e os impedimentos relativos à busca do conhecimento, sobretudo quando se trata da solução de problemas humanos. Como é comum na obra do autor, a pesquisa, a descoberta, o aprofundamento nas questões humanas envolvem vários níveis de leitura, desde filósofos já conhecidos, autores de literatura, leitura de acontecimentos históricos, mas também a observação do ponto de vista do homem do povo com suas perguntas e respectivas saídas. A escuta e observância deste, muitas vezes negligenciado pelo universo da alta cultura, pode servir como estopim para que se parta à descoberta de algo que, a princípio, não se imaginara, como apresenta o primeiro ensaio, “Os ventos do não saber”.

Partindo de um livro de Thomas Cahill sobre a análise de duplos no mundo das ideias, Platão/Santo Agostinho e Aristóteles/Tomás de Aquino, o autor discorre sobre os possíveis modos de exposição das ideias. Os primeiros centrados no estilo e na arte de escrever, os segundos no processo de entendimento do próprio texto. Tudo ocorre como se nos movêssemos entre dois modos de interpretar o mundo, ora baseados em Platão, ora em Aristóteles. Mais adiante, a presença de Jean Paul Sartre servirá como fiel da balança, uma tentativa de se escapar da interpretação que nos acompanha desde tempos remotos. Com a Crítica da razão dialética, o filósofo francês tentará apresentar a saída – ela estaria ancorada na análise dos embates históricos, como os da Revolução Francesa.

Sartre parece querer nos mostrar o que está por trás dos saltos da história, principalmente naquilo que se refere ao rompimento com o pensamento aristotélico. O que há de novo na obra sartreana, no entanto, seria a hipótese de justiça, da qual necessitam os seres os humanos, sobretudo os mais fracos socialmente. O fim das utopias, no entanto, teria levantado um sinal de alerta, jogando por terra muitas das interpretações que envolveriam o progresso do pensamento e da justiça. Ronaldo Lima Lins, neste ponto, analisa a função da ideologia dominante, que teria incutido nos pensamentos “a tese de que se acham superadas todas as formas de elaboração de sistemas filosóficos alternativos”, dentro dos quais estaria incluído o próprio Sartre. O ensaio tenta provar que quantidade nada determina. O pensamento humano não pode partir da matemática. Se a maioria já não acredita na filosofia, não crê que filósofos possam chegar à verdade, isso não significa que esta mesma maioria esteja com a razão.

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Tal tese pode ser comprovada a partir dos regimes democráticos onde, apesar de eleitos por grandes maiorias, muitos chefes de Estado mostram-se pequenos e prestes a levar nações à bancarrota. Exemplos não faltam. Em consequência, Lima Lins desenvolve seu raciocínio dizendo: “Sabe-se que hipóteses descansam às vezes por séculos, enterradas no solo movediço do Tempo – e se erguem, renascem e retornam para obcecar as mentes ou indicar caminhos insuspeitados.”

O segundo ensaio, “O Eu e os Outros”, começa invocando Rousseau, alguém que decidiu voltar o foco da atenção para si mesmo, “de acordo com o princípio segundo o qual o mais próximo se mostra melhor.” Este pensador queria, na verdade, mudar o mundo; retirou-se, então, da convivência em sociedade na esperança de descobrir, sem o contágio do tempo, caminhos a trilhar. A experiência foi válida, mas não o suficiente para o que pretendia. Tais tentativas podem mostrar-se até certo ponto enganosas porque, por mais que alguém se afaste da vida social, este sempre estará imbuído do imaginário que o formou – no caso de Rousseau trata-se do imaginário ocidental.

O que conseguiu, na verdade, foi produzir uma boa obra literária, e esta não lhe foi vã, pois abria mais indagações do que portava certezas. O professor emérito da UFRJ constata: o problema do saber está intrinsecamente ligado à condição de não se estar sozinho. A literatura seria um modo de indagação e compartilhamento. Assim, não só se poderia conhecer melhor o outro como também estudá-lo nos seus mais diversos aspectos. Constatando a impossibilidade de uma total certeza sobre o conteúdo do saber, sobre a perenidade de sua verdade, o seu valor não estaria neste mesmo conteúdo, mas no processo. Isso não exime os intelectuais de colocarem o dedo na ferida quando constatam que precisam “salvar” o mundo, quando este caminha privilegiando a injustiça. O ensaio termina citando o filósofo Slavoj Zizek, que nomeia esta época de período pós-político e pós-filosófico. Eis o pensamento do autor nas palavras de Lima Lins: “uma etapa da história menos preocupada com a ética e mais voltada para as formas industriais de exibição de saber.” No final do ensaio, há a assertiva de que a humanidade sempre que se viu cercada, conseguiu algum tipo de saída. Respiramos até certo ponto aliviados, pois predomina a perspectiva humanista na marcha da História.

O terceiro ensaio inicia referindo-se a George Orwell, que entoa uma crítica ao então totalitarismo soviético no seu romance 1984. O ficcionista de língua inglesa apresentava um quadro de ausência da política. É sintomática a afirmação no começo do ensaio, porque aponta os mecanismos socioeconômicos como causas do abandono do diálogo e do entendimento. O mercado regeria as relações, deixando os embates parlamentares a reboque. Outro ponto importante discutido neste texto é sobre o processo de uniformização. Enquanto o ocidente temia o comunismo por causa de uma ideologia igualitária, a mesma uniformização passa a fazer parte do mundo capitalista, “as mentalidades se adaptaram a um só formato para a aceitação de produtos idênticos lançados e adquiridos em toda parte.”

Além disso, predomina “o imperativo da competição e da busca desenfreada do capital em favor do crescimento, com base em baixos salários e numa competição em escala mundial.” Como situaríamos o conhecimento em tal estrutura? Ele seria possível num tal processo de uniformização? Passando pela necessidade da política (o homem é um ser que vive em sociedade), necessidade do diálogo e mesmo do entendimento, mais uma vez surge aqui a premência do “outro” como alguém possível de provocar a reflexão. O autor revisita as relações de poder à época do absolutismo, do Iluminismo, da Revolução Francesa, citando também Tocqueville, de A democracia na América. De acordo com esta obra, “a população agia segundo os seus interesses com lucidez perfeita”.

O mundo científico, a princípio, teve muito a lucrar a partir das democracias modernas, mas pouco a pouco a delimitação do campo de pesquisa, devido à complexidade de diversos ramos do conhecimento, transformou o saber em não saber. À medida que o pesquisador avança dentro da sua especialidade, abandona o todo, distanciando-se dele de tal maneira que, muitas vezes, sua pesquisa abrange uma parte tão restrita, que os próprios pressupostos que nortearam sua busca já se encontram muito distantes. Em tais circunstâncias o saber, em vez de diminuir o desconhecimento, torna-o ainda maior. Aqui se encaixa o título do ensaio: “Abandonados no infinito”. À medida que se avança no universo da pesquisa, uma quantidade ainda maior de saberes fica para trás. Talvez fosse melhor seguir o preceito hegeliano, segundo o qual seria imperiosa “a necessidade de um pensamento que, além de toda a atividade, pensasse a si mesmo.”

Sendo não sendo”, o quarto texto, focaliza o pensamento do ponto de vista daquele que pensa e, ao mesmo tempo, visa ao processo do pensar, como afirma Hegel: “o pensamento que se volta para si mesmo para conhecer-se”. Os homens produzem algo objetivo, mas se realizam neste objeto deixando traços da característica humana. Todo o texto percorrerá esta linha de reflexão com a intenção de comprovar a necessidade do contraditório e da filosofia. Esta jamais pode existir numa via de mão única.

O oculto e sua beleza” transita entre as flutuações do saber e do não saber, fazendo um paralelo entre a beleza que pode se mostrar e a que ainda não se descobriu. Na verdade, o saber não caminha numa linha evolutiva linear pacífica, sem sobressaltos, o que o faz desafiador é sua necessidade de se apresentar nos momentos de dificuldades pelos quais a humanidade passa. Onde há problemas é preciso desenvolver um saber para superá-los. Mais uma vez este investimento não pode ser solitário. O saber acumulado e a troca constante entre seres sociais agilizarão o processo.

Depois da Ventania”, último ensaio do livro, começa citando Hannah Arendt e seu estudo sobre um possível pensamento político na obra de Kant. O texto baseia-se na dicotomia mobilidade/imobilidade. “Do ponto de cruzamento dessas duas tendências se faria a luz.” Kant, em sua vida reclusa, soube observar os movimentos despertados pela Revolução Francesa. Esta, no momento em que ocorria, não apontava o que viria depois. Muitos fatos da história humana, no auge de suas realizações, não permitem que se vislumbre a ventania que serão capazes de produzir. Antes do Iluminismo, a monarquia francesa apresentava uma sociedade imóvel, vivia-se como se tudo sempre pudesse permanecer estático.

O ensaio avança ao focalizar o século XX, com seus intelectuais e os consequentes embates de ideias, cita a amizade entre Sartre e Camus e o posterior rompimento entre os dois. Sartre teria sido um intelectual que tentou encontrar, através do saber, respostas para os problemas também imediatos do homem. No final da vida, quando percebeu que a filosofia, o saber, a universidade, enfim, possuíam um tempo de maturação mais longo do que a vida humana, resolveu fazer política, trabalhando a serviço do seu tempo, nesta arte tão difícil e tão desvirtuada.

Não é possível numa pequena resenha abordar todos os ensaios deste novo livro de Ronaldo Lima Lins, autor requintado na arte de descrever as minúcias do pensamento. No final, o ensaísta conclui que, apesar das derrotas infligidas pelo próprio saber, como a própria produção de armas cada vez mais letais, o importante talvez não seja o conteúdo, isto é, o resultado do ato de pensar, mas o seu próprio processo, a curiosidade, aquilo que move o homem ir adiante: “mesmo assim, a curiosidade, esta curiosidade, bombardeada ou não, permanece. Um dia, talvez, saberemos até onde é capaz de nos levar…”

O autor:

Ronaldo Lima Lins é professor emérito da Faculdade de letras da UFRJ, da qual foi diretor por duas vezes. É poeta, ficcionista e autor de livros filosóficos, nos quais elabora reflexões envolvendo cultura, literatura e sociedade. Seus últimos trabalhos no gênero são Crítica da moral cansada e A construção e destruição do conhecimento (2011 e 2008, respectivamente, ambos pela editora da UFRJ). Escreveu também a peça teatral Jaques e a revolução ou como o criado aprendeu as lições de Diderot (Editora Alves de Água, 2016), que estreou em projeto da Secretaria de Cultura do Rio de janeiro, na Arena Carioca Jovelina Pérola Negra, em 18 de março de 2016, seguindo-se apresentações nas demais Lonas e Arenas da cidade.

Trecho do Livro:

Kant (conhece-se a lenda), homem de hábitos rígidos e rotineiros, quebrou seus costumes duas vezes, uma para receber a edição de O contrato social, de Jean Jacques Rousseau, e a outra à espera de notícias da França. O impacto dos fatos só ocorreria mais tarde. Mesmo assim, para um bom observador, desencadeavam-se em tais proporções que não podiam passar despercebidos no restante da Europa. Pelos efeitos imediatos, já se compreendia que o planeta se deixava sacudir. Havia movimento, som, fúria, tudo ao mesmo tempo… – numa extensão que não oferecia à inteligência o vagar para proceder à tarefa de avaliação.

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