No Mali, um novo atoleiro do Ocidente?

Os fundamentalistas são brutais. Mas o que os bombardeios ressaltam é incapacidade das “democracias” contemporâneas em lidar com o Outro

Os dogons, um dos povos não-islâmicos que habitam o Mali

Os dogons, um dos povos não-islâmicos que habitam o Mali

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Por Glen Greenwald | Tradução: Gabriela Leite

Enquanto os aviões de guerra franceses bombardeiam Mali, uma estatística simples  fornece o contexto-chave: essa nação africana ocidental de 15 milhões de habitantes é o oitavo país em que as potências ocidentais — apenas nos últimos quatro anos — estão bombardeando e matando muçulmanos, desde o Iraque, Afeganistão, Paquistão, Iêmem, Líbia, Somália e as Filipinas (sem contar as numerosas tiranias letais sustentadas pelo Ocidente nessa região). Por razões óbvias, a retórica de que o Ocidente não está em guerra com o mundo islâmico soa cada vez mais falsa com cada nova expansão desse militarismo. Mas nessa campanha maciça de bombardeio, vê-se que as lições mais importantes sobre a intervenção ocidental são persistentemente ignoradas.

Primeiro: como deixa claro um texto do New York Times publicado hoje, grande parte da instabilidade de Mali é resultado direto da intervenção da OTAN na Líbia. Especificamente, “combatentes islâmicos fortemente armados, audazes, voltaram do combate da Líbia” e “o armamento considerável, proveniente da Líbia e os diferentes combatentes islâmicos que voltaram” causaram o colapso do governo central, apoiado pelos EUA. Como escreveu essa manhã Owen Jones, em uma excelente coluna no Independent:

“Essa intervenção é em si a consequência de outra. A guerra da Líbia é frequentemente exaltada como um êxito do intervencionismo liberal. Mas a derrubada da ditadora de Muamar Gadafi teve consequências que provavelmente os serviços de inteligência ocidentais nunca se preocuparam em imaginar. Os tuaregues — que tradicionalmente vinham do norte do Mali — compunham uma grande parte de seu exército. Quando Gadafi foi deposto do poder, volveram a sua pátria. Às vezes à força, já que a Líbia pós-Gadafi atacava os africanos neutros, um feito embaraçoso que foi ignorado em grande parte pelos meios ocidentais. A guerra da Líbia foi considerada um êxito… e aqui estamos enfrentando essa catastrófica consequência”.

Uma hora ou outra, uma intervenção ocidental acaba semeando — por inaptidão ou intencionalmente — as sementes de outra intervenção. Em vista da instabilidade completa que continua afetando a Líbia, assim como a duradoura indignação por causa do ataque contra a embaixada dos EUA em Bengasi, quanto tempo vamos ouvir que os bombardeios e invasões nesse país são — novamente — necessários para combater as forças “islâmicas” que tomaram o poder do país: forças articuladas como resultado da derrubada pela OTAN do governo desse país?

Segundo: a derrubada do governo mali tornou-se possível graças a desertores treinados e armados pelos EUA. Segundo o New York Times: “comandantes das unidades de elite do exército dessa nação, fruto de anos de cuidadoso treinamento estadunidense, desertaram quando eram mais necessários, levando suas armas, caminhões e novas habilidades para o inimigo, no entusiasmo da guerra, segundo altos oficiais malis.” E também: “um oficial treinado pelos EUA depôs o governo eleito de Mali, preparando a cena para que mais da metade do país caísse nas mãos dos extremistas islâmicos”.

Em outras palavras, o Ocidente volta à guerra contra as forças que treinou, financiou e armou. Ninguém supera os EUA e seus aliados na criação de seus próprios inimigos, assegurando assim uma situação de guerra interminável. Onde os EUA não encontram inimigos para combater, eles simplesmente os criam.

Terceiro: o bombardeio ocidental de muçulmanos em mais um país provocará evidentemente ainda mais o sentimento anti-ocidental, o alimento do terrorismo. Como informa o Guardian, os jatos de caça franceses já mataram “pelo menos 11 civis, incluindo três crianças”. A longa história da colonização francesa no Mali só exacerba a indignação inevitável.

Em dezembro, depois de o Conselho de Segurança da ONU autorizar a intervenção no Mali, o investigador da Anistía Internacional no país, Salvatore Saguès, advertiu: “É provável que uma intervenção armada internacional aumente a escala de violações dos direitos humanos que já vemos nesse conflito”.

Como sempre, os governos ocidentais conhecem perfeitamente as consequências e procedem apesar de tudo. O NYT assinala que a campanha de bombardeio francesa aconteceu “apesar das advertências estadunidenses de que um ataque ocidental ao bastião islâmico poderia mobilizar jihadistas de todo o mundo e provocar ataques terroristas até em lugares tão distantes quanto a Europa”. Ao mesmo tempo que os franceses estão matando civis em Mali, um ataque conjunto franco-estadunidense na Somália causou as mortes de “pelo menos oito civis, incluindo duas mulheres e duas crianças”.

Crer que os EUA e seus aliados podem simplesmente seguir, de país em país, bombardeando e matando gente inocente — muçulmanos — e não serem alvos de ataques “terroristas” é, por razões óbvias, demente. Como disse Jones, o professor da Universidade Bradford Paul Rogers, o bombardeio de Mali “será visto como ‘mais um exemplo de ataque contra o Islã’”. Qualquer esperança que possa existir de acabar com a “guerra contra o terror” é destruída sistematicamente pelas contínuas agressões.

Quarto: apesar de toda a retórica auto-exaltadora que as democracias ocidentais têm o prazer de construir, é extraordinário como estas guerras são travadas sem nenhuma pretensão de um processo democrático. Sobre a participação do governo britânico no ataque militar ao Mali, Jones assinala que “é inquietante — pra dizer o mínimo — a forma com que o primeiro-ministro Cameron levou a Grã-Bretanha ao conflito de Mali sem se incomodar sequer em fingir uma consulta”. Do mesmo modo, o Washington Post dessa manhã informou que o Presidente Obama reconheceu depois do acontecido que os jatos de combate estadunidenses entraram no espaço aéreo somáli como parte da operação francesa nesse país; o jornal tratou isso de “uma rara declaração pública de operações de combate estadunidenses no Chifre da África” e descreveu o segredo anti-democrático que geralmente rodeia as ações bélicas dos EUA na região:

“Os militares dos EUA instalaram um número crescente de drones Predator, assim como jatos de combate F-15 em Camp Lemonnier, que chegou a ser uma instalação-chave das operações secretas anti-terror na Somália e no Iêmem. O funcionário da defesa negou-se a identificar os aviões utilizados na tentativa de resgate, mas disse que foram aviões de combate tripulados, não drones.

“Não ficou claro, contudo, por que Obama sentiu-se obrigado a revelar essa operação em particular, quando tem mantido silêncio sobre outras missões específicas de combate dos EUA na Somália. Domingo à noite (13/1), os porta-vozes da Casa Branca e do Pentágono  negaram-se a entrar em detalhes ou responder perguntas”.

O governo de Obama envolveu toda a campanha de drones e assassinatos globais em um manto impenetrável de segredo, assegurando-se de que se mantenha além do alcance curioso da imprensa, dos tribunais e de seus próprios cidadãos. Os EUA e seus aliados ocidentais não somente travam uma guerra interminável, que aponta invariavelmente aos muçulmanos, mas também o fazem em um segredo praticamente total, sem nenhuma transparência nem prestação de contas. Um exemplo da “democracia” ocidental.

Finalmente, a propaganda utilizada para justificar tudo isso é miseravelmente comum, mas terrivelmente efetiva. Qualquer governo ocidental que queira bombardear muçulmanos simplesmente coloca-lhes a etiqueta de “terroristas” e todo debate real ou avaliação crítica acaba antes de começar. “O presidente está totalmente convencido de que devemos erradicar esses terroristas que ameaçam a segurança de Mali, se nosso próprio país e da Europa”, proclamou o ministro da Defesa francês Jean-Yves Le Drian.

Como de costume, o roteiro simplista e caricaturesco deforma a realidade mais do que a descreve. Não há dúvidas que os rebeldes do Mali realizaram todo tipo de abomináveis atrocidades (“amputações, apedrejamentos e chicoteamentos dos que se opõem a sua interpretação do Islã”) masas forças governamentais do Mali fizeram o mesmo, incluindo, como assinalou Anistía Internacional, a detenção, tortura e matança de tuaregues, ao que parece apenas pelo sua natureza étnica. Como adverte acertadamente Jones: “não se deixem enganar por uma narrativa tão frequentemente imposta pela mídia ocidental: uma perversa simplificação do bem combatendo o mal, como temos visto no caso da brutal guerra civil da Síria”.

É possível que o bombardeio do Mali pelos franceses envolva algum tipo de participação dos EUA, e assim ilustra-se cada lição de intervenção ocidental. A “guerra contra o terror” autoperpetua-se precisamente porque gera de modo interminável seus próprios inimigos e fornece o combustível para garantir que o fogo continue sem fim. Mas a propaganda baseada em slogans utilizada para justificá-la é tão barata e fácil — devemos matar os terroristas! — que é difícil ver quando vai acabar. O medo que cega — não apenas da violência, mas do Outro — implantou-se com êxito nas mentes de muitos cidadãos ocidentais. É tão forte que essa única e vazia palavra (terroristas) basta para gerar um apoio incondicional a qualquer coisa que os governos façam em seu nome, não importa quão secreta e opaca ela seja.

Glenn Greenwald é advogado constitucionalista norte-americano, colunista, blogueiro e escritor. Trabalhou como advogado especializado em direitos civis e constitucionais, antes de se converter em colaborador de Salon.com , onde concentra-se na análise de temas políticos e jurídicos. Também colaborou em outros jornais e revistas de informação política, como New York Times, Los Angeles Times, The Guardian, The American Conservative, The National Interest e In These Times. Em agosto de 2012, deixou Salon para colaborar em The Guardian.

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3 comentários para "No Mali, um novo atoleiro do Ocidente?"

  1. Esse artigo é no melhor dos casos equivocado e no pior é má fé mesmo.
    A parte das consequências de conflitos anteriores está certa. Em compensação teve uma omissão importante, que leva a uma interpretação errada do conflito, estranhamente não tocaram no assunto.
    Uma pessoa que não conhece o país fecha os olhos e imagina a população de lá. Que tipo físico ela imagina? Pois é. Esse "detalhe" o artigo não explicou.
    E pra mim não falar desse detalhe é ou desconhecimento do tema (e ele pescou tudo do tal artigo do NY Times que ele cita sem parar) ou se ele sabia e omitiu é propaganda mesmo.
    Uma pessoa que não conhece a história deles vai achar que os rebeldes que estão sendo atacados pela França participavam de um levante popular. A gente sabe que não é o caso e muito longe disso.
    A repetição "países muçulmanos" dá uma ideia ligeiramente diferente do tipo de vida das pessoas de lá. O islã deles é totalmente light.
    E dar a entender que o povo do país está com raiva dos franceses então é torcer a verdade. Eu conheço muita gente de lá. Não são um nem dois. Todo mundo está a favor dessa intervenção. Até agora não conheci um que fosse contra.

  2. Alexandre De Oliveira Kappaun disse:

    Daí, chega-se a qual conclusão? De que a comunidade internacional não deva fazer nada? De que o conflito no Mali possa chegar próximo a um genocídio como em Ruanda? Apesar de todos os malefícios the intervenção, como ficou demonstrado no artigo, alguma coisa precisava ser feita! Caso estivéssemos em um mundo ideal, tal intervenção seria executada pela ONU ou pela União Africana. Infelizmente, estamos ainda longes deste mundo ideal e a intervenção francesa, agora, talvez tenha sido dos males, o menor.

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