Wikileaks: vida dura, num mundo sem hippies

A estratégia do Pentágono para esconder as misérias da guerra é atacar Julian Assange, o jornalista que coordena as revelações

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Por Alex MooreDeaths & Taxes | Tradução: Caia Fittipaldi, Vila Vudu

Em 1971, Daniel Ellsberg vazou para a opinião pública um bloco de documentos altamente secretos, do governo dos EUA, sobre a Guerra do Vietnã, conhecido como The Pentagon Papers [Documentos do Pentágono]. Aqueles documentos comprovaram, pela primeira vez, algo de que muita gente já suspeitava: que o governo dos EUA mentia aos cidadãos. Enquanto Lyndon Johnson dizia que pretendia promover a retirada e a “desescalada”, os Documentos do Pentágono revelaram o que de fato o governo já estava fazendo: promovendo escalada massiva na guerra do Vietnã, autorizando missões de ataque também em territórios do Camboja e Laos.

Ellsberg enfrentou ameaças de prisão, de assassinado, de condenação por alta traição – o que se pode imaginar e também o inimaginável, por expor a verdade ao mundo. Conseguiu obter e divulgar a primeira evidência tangível de que o governo dos EUA mentira descaradamente aos cidadãos. Ninguém podia prever, então, o que aconteceria depois daquele momento de medo e catarse.

Alguns anos depois, já ninguém pensaria em condenar Ellsberg por expor a verdade, e todos condenávamos os governos corruptos. Lembramos do incidente no Golfo de Tonkin como mais uma mentira divulgada pelo governo, não como plano que teria gorado porque teria sido denunciado por um traidor, empenhado em vazar segredos de Estado. Ellsberg, em pouco tempo, passou a ser tratado como herói, não como traidor.

Mas Ellsberg viveu numa geração de hippies, que valorizava a integridade e a verdade como princípios de vida. Sua revelação incendiou a indignação pública como faísca em mato seco.

Quarenta anos depois, Julian Assange apresenta-se no cenário mundial com sua organização WikiLeaks, como um Ellsberg do século 21. É homem sem nacionalidade, e divulga pela net as informações que tem e deseja distribuir – retrato interessante do mundo contemporâneo. Sua organização deixa vazar documentos em escala jamais vista antes, muito mais ampla que as mil páginas dos Documentos do Pentágono. O que revela, inclusive informação nova sobre assassinatos e tortura no Iraque depois de Abu Ghraib. Entre elas, a notícia de 66.081 mortos iraquianos civis, provavelmente ainda mais chocante que as informações contidas nos Documentos do Pentágono. E, surpreendentemente, todos só falam sobre o homem que vazou a informação, que seria alguma coisa entre um idiota e um traidor; e ninguém comenta o conteúdo das novas informações.

Todo o noticiário sobre WikiLeaks parece concentrado sobre acusações de crime sexual que teria sido praticado pelo autor dos vazamentos na Suécia, ou sobre notícias de que o homem teria personalidade de ditador, o que teria levado vários dos voluntários que teriam trabalhado com ele a desistir da missão. Mídia alguma se dedica a repercutir o conteúdo dos arquivos vazados. Daniel Ellsberg diz ao New York Times que esperou “quarenta anos por alguém que divulgasse informação secreta em escala que realmente fizesse diferença”. Mas a verdade vazada por WiliLeaks parece não fazer diferença alguma. Fato é que, sim, o mundo mudou muito entre os anos de Ellsberg e os anos de Assange. Hoje, quando a nova informação que Assange afinal expôs ao mundo deveria ter provocado protestos de massa e clamor crescente por transparência e responsabilidade em tudo que os governos digam aos cidadãos através da mídia, a espantosa maioria dos cidadãos e absolutamente toda da mídia só faz falar de/sobre Assange, e em quase todos os casos contra Assange.

Não estou dizendo que Julian Assange não molestou alguém na Suécia; se o fez, deve ser condenado. O que estou dizendo é que é muito evidente o motivo pelo qual interessa à mídia e aos críticos de Assange desacreditá-lo. Ao mesmo tempo, se se considera que Assange reconheceu que manteve relações com “fãs”, mas que foram relações de sexo consensual, é também suspeitamente evidente o interesse que muitos podem ter em desacreditá-lo “em geral”, apresentá-lo, em geral, como doido (além de estuprador perverso).

É possível que Assange tenha mentido sobre suas aventuras sexuais, é possível que o que dizem alguns de seus ex-funcionários tenha fundamento na realidade, e que Assange seja chefe dominador, talvez, mesmo, tirânico. Nada disso tem qualquer relação com os documentos vazados sobre a guerra do Iraque. Os norte-americanos e o mundo esqueceram já, completamente, que Martin Luther King, Jr. envolveu-se em mais de uma aventura extraconjugal. Mas a vida e a obra que construiu, a mensagem de sua vida, encontraram eco numa geração inteira de norte-americanos comprometidos com o projeto da mudança social.

Assange é hoje apátrida, sem casa, à procura de um país que o receba (perdeu recentemente a cidadania sueca); e o New York Times descreve-o literalmente como “fugitivo”, depois de rápida passagem pela Islândia. Mas Assange é excluído hoje, sobretudo, porque é figura de um “sem-teto ideológico”.

Quarenta anos depois, David Ellsberg diz que sente uma espécie de ‘irmandade’ com Assange, mas irmandade que não se vê em maior escala. Os documentos expostos por Assange não inspiram passeatas em direção a Washington nem qualquer tipo de protestos visíveis. O presidente Barack Obama, apesar de toda a retórica eleitoral sobre transparência e integridade, não elogiou Assange nem disse dele que seria um novo “campeão da verdade”. O Pentágono, de fato, não faz outra coisa que tentar silenciá-lo. E até governos estrangeiros, cujas agendas nada têm a ver com segredos militares ocultados, não se apressam em oferecer abrigo ou cidadania a Assange.

É como se Assange tivesse nascido em momento errado. Como se tivesse de esforçar-se muito para impor a verdade num mundo que já não manifesta qualquer apetite pela verdade. Sem aliados, nômade também no plano ideológico, não se sabe por quanto tempo a voz de Julian Assange conseguirá continuar a vazar fatos. Historicamente, as principais vozes de oposição que o mundo conheceu – de Martin Luther King a Malcolm X e John Lennon – parecem sempre encontrar pela frente, mais cedo ou mais tarde, forças que as silenciam e calam.

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11 comentários para "Wikileaks: vida dura, num mundo sem hippies"

  1. bea gms disse:

    de forma aos hippies se deve respeito

  2. antena disse:

    Todos tem direito a expressar suas opiniões e idéias, entretanto o que vejo em sua maioria são manifestações também massificadas; a história humana sempre mostrou que os loucos, idealistas, visionários eram pessoas a frente de seu tempo e da sociedade na época em que viviam, e geralmente jovens tanto cronologicamente quanto de espirito; os jovens de hoje estão cada vez mais alienados, sucumbindo a massificação de ideias e atitudes, muitas vezes por se tornarem zumbis sociais (drogados, analfabetos funcionais, alcoolatras, etc); então a meu ver quanto mais as pessoas não despertarem e se libertarem do julgo socio-economico-politico, mais escravas e parecidas com gado se tornarão, e pra quem não concorda com a minha opinião busque um pouco mais de informação , por exemplo, em obras como O Mito da Caverna de Platão, A sociedade do espetáculo de Guy Debord e O Impacto da Ciencia na Sociedade Moderna de Bertrand Russell

  3. Carla disse:

    Parabéns ao autor do artigo por ser um dos poucos jornalistas interessados em publicar uma análise neutra do assunto. De facto a perseguição ao wikileaks e ao assange só vem confirmar esta ditadura maquiavélica em que vivemos liderada pelos USA. Tenho 22 anos e posso dizer que não é a minha geração que vai mudar o mundo nem a que vem a seguir. É vergonhosa a cobertura dos midia a este caso. Os jornalistas na sua maioria são individuos que apenas querem ser pagos e não pessoas que relatam a verdade sem omissões e juizos de valor. A ética e o bom senso morreram no inicio do séc xxi. Espero que estes caminhos tenebrosos em que seguimos tenham um fim. Que o futuro seja melhor e a próximas gerações não estejam só preocupadas em consumir e actualizar o facebook. E é por causa de pessoas tão amorfas que os EUA já nem se preocupam em esconder a sua tirania como demonstra o desalojamento do wikileaks pelo amazon e a preseguição do governo sueco. MEDO.
    alrac

  4. Leo disse:

    É sempre assim: o cara que desmascara os FDPs sofre consequências como as que Assange está sofrendo, fora as consequências que ainda virá a sofrer. Concordo com o autor do texto: se ele realmente estuprou e agrediu sexualmente, deve sim ser condenado POR ISSO. Agora caçar o cara só porque ele desmascarou certas atrocidades de uns loucos que adoram guerra e sofrimento alheio? Acho que ele foi um cara corajoso pacas, e o aplaudo de pé por isso. Quisera eu que pessoas no Brasil se mobilizassem em prol da causa dele. Eu apoiaria com certeza, e se ele não tiver cometido tais abusos sexuais, o Brasil poderia conceder-lhe asilo.

  5. Fernando disse:

    Incrível. O homem divulga documentos secretos que mostram todo a falsidade e espionagem dos eua em quase todos os países do mundo e ninguem faz nada. Aliás, estão fazendo muita coisa. Expediram um mandado de prisão internacional pro cara. A Amazon que hospedava o site wikileaks começou a bloquear o site. Pensei em enviar dinheiro para a conta da wikileaks para ajuda-lo, mas a essa hora já tem outra pessoa tomando conta do paypal da wikileaks.
    O único meio de ajudá-lo é algum BILIONÁRIO banca-lo e escondê-lo o resto da vida. Acho que esse cara só estará seguro andando com o Osama Bin Laden, e não estou brincando =(
    Para o povo não interessa a verdade, para a mídia não interessa a verdade, interessa e vende apenas o que pode ser vendido sem prejudicar a imagem dos poderosos.
    Procurei na internet uma reportagem que tivesse uma abordagem imparcial desse caso, e só fui achar uma em inglês!
    Parabéns pela tradução.
    Mundo vergonhoso

  6. Justice disse:

    A wikileaks não passa de uma cruzada de um hipocrita imbecil a soldo do “inimigo”. Porque é que o wikileaks não se dedica a pôr cá fora os triliões de atentados contra os direitos humanos dos iranianos, chineses, norte coreanos, etc… È como no tempo da guerra fria: Na URSS nunca havia manifestações anti-nuclear, mas eles tinham tantaos ou mais bombas que os US. Acho uma piada aos hipocritas que usam a liberdade que o Ocidente lhes dá para prejudicarem o seu proprio “lado”, (a menos que estejam a soldo do inimigo) se ele tem coragem ele que vá viver para a china e todos os dias que ponha ca fora “leaks” da diplomacia chinesa e da porcaria que eles andam a fazer neste mundo… Pode começar pela lista de campos de trabalhos forçados que implantaram em Angola.

  7. Gui disse:

    é com foi falado, os tempos mudaram, hoje ninguem faz mais nada, pq obviamente a midia impoe isso em nós sem percebermos.

  8. Pedro Giulliano disse:

    Hey Sr. NHS, se você acredita mesmo nisso, vamos, comigo, montar uma base de discussão/conscientização/mobilização de jovens e maiores para um amplo debate e protestos firmes e progressivos contra toda esta safadeza que acontece tanto lá, quanto aqui… TOPA?
    Este ponto brilhantemente exposto pela Sr. Alex Moore é o exemplo mais claro que faz trazer a tona uma outra verdade corrente e muito mais densa em nossa sociedade: a ALIENAÇÃO quase em seu estado de coma, através de diversas formas midiáticas e aumento na ocupação alienante (trabalho exessivo, dinheiro antes de ideologia por necessidade) – que nos anos 70 era de uma “densidade” bem menor – que acaba por nos gerar o desinteresse, o desânimo e o descaso para com as verdadeiras ATROCIDADES que o WikiLeaks venha posteriormente a divulgar…
    E nos enrredamos num sistema que te massifica, que por conseguinte te desinteressa, que por conseguinte desanima os desbravadores com a vontade de um mundo melhor, que por fim, consegue segurar a sua estrutura definhadora, retrógrada e auto-suicída.
    Não gosto de Legião Urbana, mas tem uma frase em uma de suas musicas que sempre me chamou a atenção:
    “Ter bontade, é ter coragem.”

  9. jo disse:

    Concordo com o autor des-te texto,e impressionante como as pessoas estao a estupidificar,ou acomodaren-se nos seus cantinhos com prog de tv de gosto duvidoso ,e uma propaganda implacvel ao comssumismo e ao odio ao medo,e nao se apecebem no k incorrem.Deixo aqui uma frase muito importante para poder reflectir;Primeiro vieram pelos comunistas mas eu nao era comunista por isso nada falei,depois vieram pelos judeus como nao sou judeu nada falei ,depois vieram pelos sindicatos como nao pertecia a nenhum mais uma vez nada falei,agora vieram por mim e nao ha ninguem que fale por mim.

  10. nhs disse:

    Uma coisa é certa: a verdade sobre os abusos contra os direitos humanos deve ser dita. A wikileaks parece estar fazendo isso, então que continuem.
    A falta de pensamento crítico da população nos dias de hoje é gigantesca, mas as pessoas tem uma boa noção do que é certo e o que é errado. Hoje em dia as coisas funcionam diferente, não se faz mais grandes passiatas à wasington pedindo paz, mas a revolta contra a injustiça ainda existe em boa parte da população.
    Documentos verdadeiros publicados na wikileaks, se ficarem lá vão impactar a sociedade (como o video de o helicoptero americano matando civis), e certamente trarão mudanças. O mundo precisa de moral, e isso com certeza vai ajudar a desmascarar os grandes hipocritas que cometem abusos contra direitos humanos.

  11. Antonio disse:

    Sabe, se o Sr Assange fosse realmente perigoso ao Pentágono, há muito estaria morto. Depois, falar das barbaridades bélicas é enxugar gelo. Mas de qualquer forma, há que se reconhecer a coragem do Cara e louvar seu bilionário patrocinador.

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