Chéri à Paris: A caixinha de música de Bissonnet

“Nada disso deve funcionar”, pensei comigo mesmo, até a porta da loja se abrir e permitir chegar aos meus ouvidos um som que remetia a um outro tempo

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(Chéri à Paris, por Daniel Cariello)

Foi por acaso que descobri a pequena loja de instrumentos musicais antigos de André Bissonnet, localizada pertinho da place des Vosges, na rue du Pas de la Mule. O que primeiro chamou minha atenção foi um velho mandolim, cujo corpo finalizava perto do braço em uma espécie de rococó. Intrigado, parei pra observar melhor a vitrine e fiquei ali uns bons minutos, fascinado com aquelas relíquias que nunca havia visto, como um violino fundido com um trompete ou uma estranha espécie de cello, chamada cécilium.

. Entrei e me espantei ao ver que um senhor com seus 60 e poucos anos tocava um cravo do século XVIII, tão conservado que parecia ter sido fabricado uma semana antes. Eu olhava aquele acervo com muita curiosidade, mas não ousava encostar em objetos aparentemente tão preciosos.

– Pode mexer, se quiser, disse sorrindo o senhor. Arrisquei pressionar o dó mais grave e depois o mais agudo, só sentir como é dedilhar uma peça tão antiga.

– Parece afinado, falei.

– Não parece, ele está. Os instrumentos daqui estão sempre afinados.

– É você quem afina?

– Sim, eu sei tocar um pouquinho cada um deles.

Fixei meu olhar incrédulo em uma harpa escondida num canto, meio lançando um desafio. Ele puxou-a para si e dela fez sair uma bela melodia. Depois encorajou-me a tentar o mesmo. Satisfiz-me em passar a mão lentamente pelas cordas, mais uma vez apenas pelo prazer de dedilhar uma obra de arte. Agradeci ao simpático senhor e continuei minha caminhada pelo Marais.

Depois desse dia, passei a voltar à loja com uma certa periodicidade, fosse pelo prazer de entrar ali e escutar sons tão diferentes quanto belos, fosse para mostrar aquelas preciosidades aos amigos e parentes. A visita àquele templo era inevitavelmente acompanhada de um pensamento: “E quando ele decidir se aposentar, quem vai cuidar disso tudo?”.

Na última segunda-feira levei meus pais para conhecerem o lugar. Entre as dezenas de violões, alaúdes, pianos, flautas e gaitas, notei que havia uma nova peça.

– E isso, o que é?

– Uma cítara indiana. Mas não uma tradicional. Essa fica deitada no chão e só tem seis cordas, de metal.

– Quanto custa?

– Duzentos e cinquenta, mas faço por duzentos.

– Tá em liquidação?, brinquei.

– É que sexta-feira fecho a loja.

– Vai reformar?

– Não, vou entregar o ponto. Essa semana é a última. Estou aqui há 42 anos e acho que chegou a hora de dar uma descansada.

Fiquei sem palavras. Minha vontade era pedir para ele tocar todos aqueles instrumentos que ainda não havia escutado. Não, era comprar aquela loja com tudo o que tinha dentro. Não, não, meu real desejo era que ele continuasse sempre por ali, envelhecendo e melhorando, como aquelas preciosidades das quais cuidou tão bem durante as últimas quatro décadas.

Sem saber o que fazer, pedi para ele me mostrar o tal mandolim que me fez parar por ali pela primeira vez. Ele tirou-o da vitrine e começou a tocar e cantar O Sole Mio, entremeando a história do instrumento e a letra da música.

Despedi-me pela última vez do incrível universo de André Bissonnet, desejando-lhe boa sorte no novo caminho.

– C’est la vie, mon ami, c’est la vie!, respondeu, sorrindo e cantando.

Ao virar a esquina ainda dava pra escutar a música, ao longe.

Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular da Biblioteca Diplô/Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui.

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3 comentários para "Chéri à Paris: A caixinha de música de Bissonnet"

  1. wellinton mendes disse:

    Tive também o privilégio de estar neste espetacular endereço e conhecer o maravilho Msieur. Bissonnet. Tempos depois, revisitando as ruas de Paris pelo Google Maps, não encontrei a loja. Fiquei triste e preocupado, porém este texto vem me fazer saber que o simpático Msieur. estaria vivo e que a loja acabou por decisão sua. É triste, seja como for, um dos lugares mais incríveis do mundo, certamente, espero que Msieur. Bissonnet esteja bem e que seu acervo tenha um bom destino.

  2. Henrique Ribeiro disse:

    Emocionante!

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