Arrogância Produtivista: insólito "ranking do lazer"

Um texto de ficção provoca: terão os profissionais urbanos perdido por completo a capacidade de fruir e criar, quando apartados do trabalho?

Arrogancia

160124-Arrogância

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Por Teodoro Rennó Assunção | Imagem: Paul Cosquieri

 

Nada é tão insuportável ao homem quanto estar em um pleno repouso,

sem paixões, sem afazer, sem divertimento, sem aplicação

Pascal, Pensamentos

Produzir e ter é um ciclo infernal contemporâneo do qual não conseguimos nos libertar? E se o lazer não escapasse a esse circuito infernal? O quarto texto da série Ensaios sobre a Arrogância é um texto de ficção de Teodoro Rennó Assunção que nos obriga a sair do lugar-comum da oposição trabalho-lazer. O autor faz uso da ironia e desafia o leitor a realizar uma auto-reflexão especular sobre a arrogância do produtivismo. Na narrativa que constrói a partir da moldura de uma sociedade hiperconectada irrompe entre seus personagens, que passam férias em uma praia, o imenso incômodo diante do quase-impossível nada-fazer. (Myriam Bahia Lopes)

Um grupo – até então seus membros se desconhecem absolutamente – de quatro casais heterossexuais de profissionais bem-sucedidos em suas distintas áreas de competência (e já cinquentões e com os filhos crescidos não mais os acompanhando nas férias de verão) se reúne aleatoriamente, pela primeira e última vez, em uma pousada de médio luxo em uma praia paradisíaca ainda de difícil acesso no sul da Bahia. O que os une é a afinidade econômico-cultural entre seus médicos esclarecidos, pertencentes à mesma empresa privada de atendimento clínico, que diagnosticaram stress (na primeira metade do século XX dir-se-ia surménage na América Latina) e recomendaram esta mesma pousada com cuja cadeia hoteleira esta empresa médica estabelece convênio. Apesar de terem de suportar ainda, antes das libações natalinas, um duríssimo último mês de trabalho, os quatro profissionais começam, entre bocejos de tédio e desejos inconfessos de suicídio, a sonhar com a estranha e já quase esquecida possibilidade de nada ter que fazer.

Nos primeiros dias, a memória recente e fresca tanto dos dias de trabalho extenuante quanto das noitadas de fim-de-ano regadas a álcool e a encontros mundanos parecia sabotar o efeito transfigurador do álcool, gerando um tédio e uma ansiedade aparentemente gratuitos e que podiam ser temporariamente minimizados pelo mimetismo de formas ordinárias de trabalho (de fato, acabando por se confundir com este) como telefonemas urgentes nos constantes celulares, a verificação da caixa de e-mails (e a epistolografia eletrônica) em um iphone, ou a leitura meio dispersa de um artigo científico/erudito em PDF (ou de um jornal do dia, ou de um site de notícias, ou de blogueiros inteligentes) em um lap-top leve ou um ipad (os livros em papel começando a se tornar raros…). A beleza absurda e sem sentido do céu e do mar era uma evidência oca e indiferente que sorria silenciosa e brandamente do desamparo de quem, automatizado nos hábitos do trabalho, se sente de súbito inútil, não sabendo o que fazer, e começa a achar tudo sem-graça e bobo, bocejando diante da consciência, razoável mas pouco consoladora, da necessidade do repouso forçado.

Certos lugares-comuns dos psiquiatras que os atenderam, como “deixe de lado um pouco a obsessão pelo trabalho”, “esqueça as leituras muito sérias e pesadas”, não sofreram grande resistência por parte deles, pois o divertimento mais qualificado proporcionado pela leitura, por exemplo, de uma obra literária (que faz jus a este nome) parecia demandar um tremendo esforço de atenção cognitiva, em meio aos bocejos, alguma dor de cabeça e uma estranha vontade de dormir, fazendo com que logo ela fosse abandonada pela primeira diversão ou passeio que aparecesse. Mesmo os romances policiais com boas histórias urbanas, muita ação e diálogos frequentes (e com um conteúdo de crítica social explícito) eram lidos tão espaçadamente que era comum a releitura do último capítulo lido pra poder de novo entrar na história, pra logo depois abandoná-la mais uma vez, como se o leitor jamais se deixasse inteiramente levar pelo suspense e a intriga, distanciado, pelo cansaço e pela indiferença, de qualquer identificação possível com uma personagem. E, no entanto, um vago desejo de fazer algo intelectualmente mais substantivo contaminava de mal-estar a leveza demasiado ostensiva da dispersão e da disponibilidade.2

Era estranho que um dos objetivos longamente acalentados em um regime de trabalho febril – as custosas férias de fim-de-ano em algum lugar distante, belo e “selvagem” – se resolvesse concretamente em um surdo mal-estar (acompanhado inevitavelmente das recorrentes mesquinharias das relações conjugais e familiares) que instilava, no seio mesmo do luxo de simplesmente estar, a sensação sufocante e realíssima do sem-saída. A endorfina produzida pelas caminhadas assim como os banhos de mar refrescantes cortavam um pouco o sono, a irritação e as intermitentes cefaléias, mas o desejo de se evadir ou desaparecer – totalmente insatisfeito neste bem organizado e previsível campo de lazer forçado – se deslocava de maneira ineficaz para sucedâneos meramente paisagísticos como uma praia deserta (areia, areia e água) ou a linha distante do horizonte no mar, eventualmente cortada por algum grande e lento navio de carga cujo destino era desconhecido, e que logo desaparecia sem deixar traço.3

Os encontros, a princípio furtivos e sem contar ainda necessariamente com o grupo todo, dos protagonizantes oito profissionais bem-sucedidos (todos, homens e mulheres, trabalhavam, e não pouco)4 aconteceram no bar da piscina ou algum outro bar dos mais próximos à beira-mar. Se a aproximação foi facilitada pelo fato de os quatro casais morarem em uma mesma cidade (Belo Horizonte) e acabarem por descobrir conhecidos comuns assim como alguns mesmos elementos muito semelhantes de um circuito de frequentação e lazer urbanos, o começo sem-graça e entrecortado das primeiras conversas a dificultava muito e não foi sem algum esforço que eles superaram a desesperada certeza, entre cinquentões, de que é muito improvável uma nova amizade que valha realmente a pena, já sendo trabalhoso o bastante (isto é: consumindo demasiado tempo útil) manter as antigas – além, é claro, da inevitável e complexa rede familiar.

Não era difícil, assim, simplesmente falar de pessoas conhecidas comuns ou de assuntos aparentemente anódinos como outras férias, futebol mineiro, cinema, televisão, internet (com suas múltiplas entradas): Netflix, YouTube, Facebook… Mas, movidos inexoravelmente por um inconfesso desejo de confronto de poder, eles acabaram por manifestar sinais inequívocos (ainda que nem sempre explícitos) dos valores em torno dos quais suas vidas estavam organizadas: dinheiro, dinheiro, dinheiro, reconhecimento científico, viagens e, em uma escala menor, tempo livre ou ócio. Não seria difícil adivinhar a pertinente crítica recíproca que se endereçavam veladamente os dois tipos extremos de profissionais burgueses: para os executivos (ou altos funcionários do Legislativo e do Judiciário) o tempo livre de um professor universitário do Estado era não só relativamente improdutivo, como também não gerava o dinheiro suficiente para adquirir os bens e serviços (como aquelas férias precisamente) que dão sensação de poder e sabor à vida; para os funcionários de Estado (ou profissionais liberais) com algum tempo livre, as mercadorias de luxo consumidas pelos executivos serviam apenas como sucedâneos – certamente emblemáticos de poder e status – de um desfrute deleitoso da existência impossibilitado a quem jamais tem tempo

para perder.5 Mas, através de uma diferenciada escala social burguesa, reverberava a – obsessiva, mas (como se por pudor) jamais explicitada – mesma palavra de ordem produtiva: mais trabalho, mais dinheiro, mais bens, mais tecnologia, mais artigos científicos, mais viagens (de negócios científicos ou outros), mais reconhecimento, mais, mais e mais6.

Deixando-se conduzir sonambulicamente por uma imperceptível mas imperativa – espécie de segunda natureza neutra e multiforme – necessidade de criar uma rotina qualquer, os quatro casais (em composições numéricas variadas) passaram, depois da primeira semana, a se reunir todos os dias a partir das duas da tarde no – distante apenas uns quinhentos metros da pousada pela praia – Bar do Francês. Eles passaram a exercer ali diariamente uma comensal convivência onde – como deipnosophistae comuns e tropicais – eles podiam conversar bebendo e comendo. A conversa, porém, podia sem nenhum problema se esgarçar indefinidamente até desaparecer, pois o marulho das ondas era coberto quase continuamente por música de rádio FM baiana (ou algum CD de MPB ou pop) e ainda pelo murmúrio, como se mimeticamente marinho, das vozes que vinham de outras mesas (ao fundo o ruído quase inaudível de gaivotas se sobrepunha por vezes ao de outros bares mais distantes). O silêncio, assim, incomodava menos e criava também ocasiões favoráveis a interrupções do estar grupal em escapadas mudas e solitárias (ou a dois) pra uma nadada no mar ou mesmo – e sobretudo depois das nadadas pra secar um pouco a pele – meramente estar um pouco ao sol e não sob a amena e civilizada sombra produzida pelos tetos de palha da grande cabana que constituía o bar.

Mas as conversas não deixavam de ser de algum modo essenciais àquele programa de férias, pois era ali que eram contadas as coisas vistas ou feitas em passeios e caminhadas assim como outras formas ordinárias de ocupar lazerosamente o tempo em um lugar outro que a cidade onde se mora. Assim como o registro fotográfico – elemento imprescindível e constante das viagens turísticas tornado hoje muito fácil e imediato com as câmeras dos celulares e iphones (que podem também postar rapidinho as fotos de “felicidade individual” da grande coluna social eletrônica que é o Facebook) – as conversas confirmavam enquanto fenômeno a máxima pascaliana de que “curiosidade é apenas vaidade”, ou seja: só se viaja por mar pra conhecer coisas novas porque é possível depois contá-las como tendo sido vistas ou experimentadas pelo euzinho vaidoso que toma a palavra.

Dissimulada pelo cansaço ainda impregnado nos nervos e pelo mínimo de civilidade que aconselha alguma lúdica negligência no trato de jogos e passatempos, a competitividade não tardou a se manifestar nas vestes de gala moral da “melhor ocupação possível do tempo de lazer” (ou, um pouco mais cruamente, “do melhor rendimento em lazer das horas pagas para isto”), justificando, de maneira algo óbvia mas não menos irônica, seu deslocamento da esfera do trabalho para a do lazer, já assinalado patentemente pelo título mesmo deste ensaio. Seu exemplo mais imediato era o do cumprimento mais eficaz dos roteiros locais do “que há para ser visto e feito”. No contexto mais estrito dos roteiros locais, não só os sight-seeings eram privilegiados como também pequenas especializações como o maior número de horas de observação de paisagens (flora e fauna) submarinas em mergulho nas imensas piscinas naturais que se formavam à beira-mar, ou o maior e melhor número de ondas pegadas a braço livre (“jacaré”) ou deitado em pranchas e não de pé sobre elas (pois entre aqueles mineiros ninguém sabia surfar), ou ainda o maior número de quilômetros andados a pé em um só passeio diário pela praia, ou mesmo quantas vezes se conseguia atravessar a piscina da pousada de um só fôlego sob a água.

Os esportes coletivos – como o futebol de praia (com os ultra-vigiados golzinhos marcados na areia com tocos ou varinhas e sem goleiros), o vôlei e mesmo o futevôlei – simplesmente não eram praticados, devido à dificuldade de reunir num mesmo local e hora todos os participantes em condições de jogar e em número suficiente pra formar duas equipes. Já o frescobol – que parecia exigir mais a cooperação do que proezas que, desequilibrando o companheiro, impedissem a continuidade do jogo – só poderia constituir uma excelência a dois, passível apenas de uma comparação indireta com outras duplas. Mais favorável ao fatal destaque do vencedor (que, ganhando o direito de permanecer na mesa, poderia desafiar indefinidamente o próximo pretendente), o pingue-pongue tinha lugar em uma das cabanas à beira da piscina e era uma das atrações mais concorridas da tarde, formando-se às vezes uma longa e ameaçadora fila de desafiantes do atual vencedor, que, se perdessem, teriam de esperar longamente até ter uma nova e preciosa chance.

Signo imemorial das bodas da “sorte” e do “cálculo” (ou, em outra figuração do casal, do “acaso” e da “astúcia”), ícone aziago da ruína para o viciado em apostar e perder, o baralho continha múltiplas possibilidades de jogos que renovavam a cada partida ou jogada o fascínio do imprevisível. Desde o ameno e sociável buraco (sobretudo se em duplas), permitindo longas e sequenciadas conversas entre as jogadas, até o (necessariamente em duplas) absorvente e teatral (ou mesmo melodramático e gritador) truco, se estendia uma pequena lista dos jogos populares que, se excluía a sofisticação do bridge, podia abrigar o cálculo memorioso da negrinha, a destreza aritmética da escopa de quinze, a perversidade oportuna do mau-mau, a atenção quase física (pra cuja falha o castigo poderia ser penoso) do copo d’água, o senso de ocasião e a ousadia dramática no sete-e-meio e no pôquer, e, enfim, o absorto cuidado de se medir solitariamente com o baralho (ou com a telinha de um ipad ou de um iphone) na paciência.

Como jogos de salão que, além do cálculo, pressupunham o acaso, desta vez acionado pelos dados, figuravam os conhecidos mas sempre reatualizados Banco Imobiliário (ou Monopólio ou ainda Jogo da Vida), Detetive ou Scotland Yard e o há quatro décadas bem-sucedido War. Eles eram acompanhados por outros jogos de sociedade que exercitavam mais puramente (ou seja: sem o concurso explícito do acaso) a memória e a destreza verbal tais como a velha Forca (que podia também ser jogada na areia), a Dedanha e a Leréia, às quais se juntava a modalidade solitária – como a paciência no baralho – das Palavras Cruzadas. Podendo, enfim, assim como estas últimas, serem compartilhados – sobretudo se aumentado o número de peças e o grau de dificuldade –, os quebra-cabeças acionavam antes uma destreza visual e tátil a ser experimentada pela paciência metódica do “ensaio e erro”.

Se o objetivo óbvio em cada um desses jogos era vencer (ou cumprir em menos tempo a meta proposta), a vitória em si, realizando o fim do jogo, era menos buscada do que o estar buscando a vitória, ou seja: do que o próprio estar jogando. Assim, apesar de as ocasionais listas de vitórias excitarem uma instintiva vaidade nos vencedores, os jogos, ao se insubordinarem – em sua gloriosa futilidade – a qualquer fim externo a eles mesmos, funcionavam como mero divertissement que em seu luxo insensato preenchia com mais presteza o lento e irrefreável escorrer das horas, desviando intermitentemente a atenção da de outro modo grave questão prática do “como ganhar mais dinheiro” ou da quase despercebida e imediata questão moral d’“o quê fazer” sabendo-se mortal e sujeito à ação vertiginosamente destrutiva do tempo.

Mas, depois de uns nove dias de estadia, em que a tácita e não oficializada competição pelo “melhor emprego possível do tempo de lazer” ou pelo “maior número de vitórias no maior número de jogos” começou a cansar e a se esvaziar, revelando de súbito sua incômoda bobeira, as férias daquele que agora era um grupo que se reunia ao menos uma vez por dia (às duas da tarde no Bar do Francês) tomaram um rumo bizarro, ainda que não propriamente ameaçador, pois o prazo de duas semanas se esgotaria logo e a volta ao trabalho dissolveria rápido o mal-estar de uma experimentação breve e inconsequente.

Excitada pelo só então explicitado paradoxo irônico do “ranking do lazer, a conversa, em uma tarde indolente e alcoolizada, se encaminhou insensivelmente para uma nova e mais audaz formulação (do modo de viver em férias) que invertia ou trocava o mais pelo menos: quem conseguiria “fazer o menor número possível de coisas” (ou “fazer mais o menos ou o nada” ou ainda “mais não fazer”) ou, em termos ligeiramente mais positivos, quem conseguiria “perder ou desperdiçar mais o tempo de lazer” (ou “o pior ou mais vazio emprego possível do tempo de lazer”).7 A máxima minimalista de Mies van der Rohe: “menos é mais” era assim, em um procedimento “artístico” contemporâneo até certo ponto tornado vulgar hoje (e intitulável, por exemplo, de performance espontânea da preguiça), deslocada dos suportes tradicionais da obra de arte para a irregistrada, anônima e indistinta arte de viver.8

Mas, como seria de se esperar, o mero e despojado repouso, em seu far niente quase literal, se manifestou a princípio como um horroroso e perturbador vazio.9 Era como experimentar ainda em vida, podendo respirar e se movimentar para satisfazer as necessidades fisiológicas elementares, o já estado de morto. O primeiro e mais imediato desejo era o de (pelo amor de Deus!) fazer alguma coisa, e, desta maneira, como as refeições, os banhos, as cagadas/mijadas, as dormidas não poderiam – enquanto mínimo necessário à continuidade – ser de todo abolidos, eles se tornaram uma festa ocupacional e passaram a ser realizados com uma atenção e gosto jamais antes experimentados. Em um dos dias, a coincidência de vários banhos demorados (de até uma meia hora ou quarenta minutos, apesar de toda a ameaça da falta de água no planeta) esvaziou rapidamente a caixa d’água da pousada, levando o sensato proprietário-gerente a adotar uma medida de urgência restringindo a duração de um banho a no máximo dez minutos. Uma espécie de mole e imperturbável desinteresse pelas coisas parecia tornar mais fácil o sono a qualquer hora do dia e alguns eram vistos dormindo profundamente durante horas a fio em uma rede (numa das cabanas) ou à sombra de um guarda-sol na praia.

O dia seguinte ao da proposição radical do “ranking do far niente literal” foi o último em que o grupo se encontrou no começo da tarde no Bar do Francês. Os risos e gargalhadas, diante dos relatos dos recém-nascidos desacertos e incômodos quanto ao “nada fazer”, não dissimulavam – antes acentuavam – o desamparo e miséria dos que descortinavam, por instantes, no caroço mesmo da solidão mortal, um estranho e inconsolável vazio. O próprio desejo de relatar, assim como a vaidade que era seu pressuposto, tinham sido minados por dentro por uma brutal inércia, desqualificando como inadequado e sem propósito – por não dizer absolutamente respeito à diversidade incomparável do que é – qualquer intuito de comparar e estabelecer superioridade.

Dos meios de informação e entretenimento (já abandonada a internet, por preguiça de clicar e digitar, nos ipads e iphones) passaram a ser utilizados apenas aqueles (fornecidos pelo próprio quarto) que permitissem uma recepção passiva – e, no limite, desatenta e indiferenciada – como o rádio ou a TV. Esta, sobretudo, por conjugar imagem e som, era um sorvedouro fácil pra uma atenção cansada do imediato besta das férias e da promessa nunca inteiramente esquecida da volta ao trabalho. O exercício cru da crítica através da mudança de canais por controle remoto era tão raro quanto o seu ponto ótimo: um zapping contínuo e automático que jamais pudesse se fixar em um só canal. Do leque já restrito de canais (pois não havia TV a cabo), apenas um – e, ainda por cima, dos mais tradicionais como Globo, Bandeirantes ou SBT – permanecia, em um ou mais dos quartos, ligado ininterruptamente durante horas e horas de programação, sem que, uma vez deitado na cama, ninguém manifestasse o menor gesto pra mudar de canal, diminuir ou aumentar o volume, ou simplesmente apagar. Era como se a TV funcionasse como mero ambientalizador que suprisse, com o acréscimo da presença humana mimetizada, os enormes buracos entre os cada vez mais raros diálogos entre os cônjuges mudos, imóveis e apáticos como peixes doentes e moribundos no fundo de um aquário abandonado.

O embaralhamento dos horários de sono fazia até mesmo com que algum dos casais passasse horas seguidas na madrugada assistindo, inertes, ao monótono chuvisco do “fora do ar”. O recurso mais eficaz pra desligar ao menos a imagem, tornando a TV uma espécie de rádio antiga (com seus programas ficcionais e ainda não inteiramente dominada pela música e o jornalismo), era meramente descer as pálpebras e mantê-las fechadas. Neste estado de abandono acontecia às vezes de o escuro despovoado ser repentinamente ocupado por imagens e cenas de um entressonho que, usando o som da TV, compunha breves unidades ficcionais tão tolas e absurdas (ainda que não subordinadas às mercadorias à venda) quanto os disfarçadamente hegemônicos comerciais ou propagandas.

O silêncio – interrompido apenas por aqueles diálogos absolutamente imprescindíveis (e, ainda assim, no mais das vezes monossilábicos) em que alguma coisa de ordem prática precisava ser decidida – parecia abrir espaço não só à contemplação assombrada dos objetos mais banais, mas também à rememoração de eventos, coisas e seres há muito dissolvidos na irrealidade fantasmagórica do passado. Mas assim como esta rememoração era fragmentária e aleatória, não conduzindo a nenhuma reconstituição da habitualmente irreconhecível identidade em continuum entre passado e presente, assim também a dimensão do futuro, com o esquecimento progressivo dos projetos que organizam e dão ilusório sentido a uma vida, se tornava rarefeita e chegava às vezes a desaparecer, deixando então irromper soberano um eterno e animalesco presente. A felicidade neutra e indistinta daí advinda (e que mal se deixava nomear como “felicidade”) parecia conter – além da óbvia ameaça de estupidez – a possibilidade ambígua e fugidia de uma revelação.10 O brusco fim do prazo daquelas férias – sacudindo-os, como um despertador civilizatório, da letargia e do esquecimento – impediu, no entanto, que esta possibilidade fosse verificada.11 Sem saberem bem por quê, ao começarem – em um então ingente e silencioso esforço – a arrumar as malas pra voltar, os quatro casais tinham os rostos inundados de lágrimas.

Notas:

  1. Este texto é uma versão reduzida (mas com notas ampliadas), corrigida e atualizada do ‘conto/ensaio’ “O ranking do lazer”, publicado no meu livro Ensaios de escola (Rio de Janeiro: 7Letras, 2003, p. 148-161).
  2. Na crônica paródica “Como tirar férias inteligentes”, Umberto Eco sugere pras férias, em contraposição à leitura de clássicos (como as Afinidades eletivas de Goethe, a Recherche inteira de Proust ou Petrarca em latim) que já deveria ter sido feita no 2º grau, leituras verdadeiramente inteligentes e nunca citadas pelas revistas de cultura antes das férias de verão. O seu primeiro exemplo é o seguinte: “Para quem pretende passar longas horas na praia, eu aconselharia a Ars magna lucis et umbrae, do Padre Athanasius Kircher, fascinante para quem, exposto aos raios infravermelhos, queira refletir sobre os prodígios da luz e do espelho.” (Eco, Umberto, “Como tirar férias inteligentes” in O segundo diário mínimo. Tradução de Sérgio Flacksman. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 100-102, p. 100). Ele cita ainda na sequência as seguintes obras: “o delicioso Kitab al-s’ada wa’Lis’ad, de Abul’l-Hassan Al’Almiri”, “a ótima coletânea completa da Patrologia de Migne”, “o Sefer Yezirah, o Zohar”, “Moisés de Córdoba e Isaac Luria”, “o Corpus hermeticum e os escritos gnósticos (melhor escolher Valentino, Basílides é não raro prolixo e irritante).”
  3. Talvez seja estranho pensar que o cansaço e a “depressão” que aparecem como aquele núcleo diamantino e individual de mal-estar insolúvel sejam também um sintoma comum no mundo capitalista contemporâneo, tais como, por exemplo, descritos por Jean Baudrillard, sob a rubrica “cansaço”, em A sociedade de consumo: “Como a nova violência é ‘sem objeto’, este cansaço também é ‘sem causa’. Ele não tem nada a ver com o cansaço muscular e energético. Ele não vem do desgaste físico. Fala-se, é certo, espontaneamente em ‘desgaste nervoso’, em ‘depressividade’ e de conversão psicossomática. Este tipo de explicação faz parte agora da cultura de massa: ela está em todos os jornais (e em todos os congressos). (…) Certamente este cansaço significa ao menos uma coisa (…): é que esta sociedade que se dá e se vê sempre em progresso contínuo em direção à abolição do esforço, à resolução das tensões, a mais facilidade e automatismo, é, de fato, uma sociedade de stress, de tensão, de doping, onde o balanço global de satisfação acusa um déficit cada vez maior, onde o equilíbrio individual e coletivo está cada vez mais comprometido à medida mesma em que se multiplicam as condições técnicas de sua realização. Os heróis do consumo são cansados.” (Baudrillard, Jean, “La fatigue” in La société de consommation. Paris: Gallimard, 1970, p. 291-297, p. 291-292).
  4. Se cada casal é considerado como grupo mínimo e se mesmo subgrupos maiores em tensão (como a entre os que, assalariados burgueses, têm uma super-remuneração em dinheiro e os que a têm em tempo livre) se formam no interior do grupo como um todo, a personagem maior desta estória continua a ser o grupo enquanto tal, o que talvez possa justificar como intencional nesta estória – em seu approach quase sociológico – o baixo grau de individualização e a ausência de diálogos.
  5. Para a definição destes dois grupos básicos (e em tensão) de assalariados burgueses eu me inspirei largamente no livrinho instigante de Jean-Claude Milner, Le Salaire de l’idéal. La théorie des classes et de la culture au XXe siècle (Paris: Seuil, 1997).
  6. Mas – apesar da admissão ocasional de valores como o reconhecimento entre os pares – o incômodo imperativo ético aristocrático de ser sempre o primeiro e ultrapassar-se era caricaturizado no contexto do capitalismo tardio, e convertido, em última instância (já que a glória também só se justificaria finalmente assim), no único valor irrefutável: mais dinheiro, dando o poder de comprar mais…
  7. Quase inconscientemente este exercício irônico de um “modo de existência” aparentemente absurdo evidenciaria um dos maiores problemas do lazer (pensado negativamente a partir da lógica hegemônica do trabalho e da produção): a dificuldade ou impossibilidade de “perder tempo”. Uma formulação sagaz desta questão foi feita já há algum tempo por Jean Baudrillard: “O repouso, a distensão, a evasão, a distração são talvez ‘necessidades’, mas eles não definem neles mesmos a exigência própria do lazer, que é o consumo do tempo. O tempo livre é talvez toda atividade lúdica com a qual ele é preenchido, mas é primeiro a liberdade de perder seu tempo, de ‘matá-lo’ eventualmente, de gastá-lo em pura perda. (É por isso que dizer que o lazer é ‘alienado’ porque ele é apenas o tempo necessário à reconstituição da força de trabalho é insuficiente. A ‘alienação’ do lazer é mais profunda: ela não depende de sua subordinação direta ao tempo do trabalho, ela está ligada à IMPOSSIBILIDADE MESMA DE PERDER SEU TEMPO.)” (Baudrillard, Jean, “Le drame des loisirs ou l’impossibilité de perdre son temps” in La société de consommation. Paris: Gallimard, 1970, p. 238-252, p. 243-244, tradução minha).
  8. Ainda segundo Jean Baudrillard, na imediata sequência do trecho citado na nota anterior: “O verdadeiro valor de uso do tempo, aquele que o lazer tenta restituir desesperadamente, é ser perdido. As férias são esta busca de um tempo que se possa perder no pleno sentido do termo, sem que esta perda entre, por sua vez, em um processo de cálculo, sem que este tempo seja (ao mesmo tempo) de alguma maneira ‘ganho’. Em nosso sistema de produção e de forças produtivas, não se pode senão ganhar seu tempo: esta fatalidade pesa sobre o lazer como sobre o trabalho. Não se pode senão ‘fazer valer’ seu tempo, mesmo que seja fazendo dele um uso espetacularmente vazio.” (Baudrillard, Jean, “Le drame des loisirs ou l’impossibilité de perdre son temps” in La

    société de consommation. Paris: Gallimard, 1970, p. 238-252, p. 244, tradução minha).

  9. Parecia, portanto, conter um grão de inquestionável verdade a conhecida proposição de Pascal de “que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saber ficar em repouso em um quarto.” (Pascal, Blaise, “8. Le divertissement” in Pensées in Oeuvres complètes – Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1954, p. 1137-1148, p. 1138-1139, tradução minha, como também a da epígrafe). Uma formulação mais ácida da inconstância e necessidade de movimento do homem está no seguinte aforismo: “Agitação – Quando um soldado se queixa do sofrimento que ele tem, ou um trabalhador, etc., que eles sejam colocados sem fazer nada.” (Pascal, op. cit., p. 1138, tradução minha).
  10. Um ponto de partida crítico possível (mas que colocaria, por sua vez, novas e inevitáveis questões práticas e morais por seu contorno basicamente negativo) seria a seguinte reflexão de Theodor W. Adorno: “Talvez a verdadeira sociedade se farte do desenvolvimento e deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar, ao invés de se precipitar, com uma louca compulsão, rumo a estrelas distantes. Uma humanidade que não conheça mais a necessidade começará a compreender um pouco o caráter ilusório e vão de todos os empreendimentos realizados até então para se escapar da necessidade e que, com a riqueza, reproduziram a necessidade numa escala ampliada. Até mesmo o prazer seria por isso afetado, visto que seu esquema atual é inseparável da industriosidade, do planejamento, da intenção de impor a sua vontade, da sujeição. Rien faire comme une bête, flutuar na água, olhando pacificamente o céu, ‘ser, e mais nada, sem nenhuma outra determinação nem realização’, eis o que poderia ocupar o lugar do processo, do fazer, do realizar, e, assim, cumprir verdadeiramente a promessa da lógica dialética, de desembocar em sua origem.” (Adorno, Theodor W., “Sur l’eau” in Minima moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca; revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1992, p. 137-138, p. 138).
  11. Assim como Adorno, o pintor e pensador russo Kazimir Malevitch, no opúsculo A preguiça como verdade efetiva do homem, inverte a direção da finalidade na dualidade opositiva e complementar do trabalho e da preguiça (ou inércia): em vez da preguiça ser um simples meio de recomposição das forças para o trabalho, ela passa a ser a verdadeira finalidade deste: no capitalismo a acumulação de dinheiro (baseada na exploração do trabalho alheio) funcionaria como obtenção de títulos de preguiça futura, e no socialismo – com a ajuda das máquinas e da distribuição do trabalho – o trabalho deveria não ser glorificado, mas permitir apenas a sua própria redução, abrindo um espaço maior pra preguiça, que, identificada como o modo de ser de Deus (afinal, depois que criou o mundo, o que estaria Deus fazendo?), constitui a imagem da perfeição para os homens. Mas não apenas o trabalho é uma necessidade econômica a ser satisfeita para a manutenção da vida e a obtenção periódica de uma cota de preguiça, como é ele apenas que permite configurar, pela sua oposição, a preguiça enquanto algo sumamente desejável, tal como ocorre na dualidade complementar latina do negotium e do otium. Como imaginar com alguma verossimilhança a felicidade cósmica imaculada de algum humano que, como um animal que não faz nada (“rien faire comme une bête”), continuamente “flutua na água, olhando pacificamente o céu”, e consegue não se entediar depois de algumas horas? Ou como imaginar, segundo os termos de K. Malevitch, o homem atingindo a perfeição e Deus, justamente quando chega “o momento da plena inatividade”, “o momento da ‘total preguiça’, ou da atividade como contemplação da autoprodução”? (cf. Malevitch, K., La paresse comme vérité effective de l’homme. Traduit du russe par Régis Gayraud. Paris : Éditions Allia, 2013, p. 28).Em uma época como a nossa, em que o grande fantasma é o desemprego (ou a depressão que vem com a aposentadoria), compreende-se bem a irônica solução fantástica, imaginada por H. Bustos Domecq (pseudônimo de Borges e Bioy Casares) em uma de suas Crônicas, de máquinas cuja função seria nada fazer (“Os ociosos”), liberando então os humanos, tão necessitados dele, para o trabalho: “Aqui vai um esboço do Ocioso (…). O monumental artefato cobre a largura do terraço que centra o ponto da usina. Assim, a olho, lembra um linotipo desmesurado. (…) seu peso se computa em várias toneladas de areia; a cor é de ferro pintado de preto; o material, de ferro. Uma passarela em escadaria permite que o visitante o escrute e toque. Sentirá lá dentro como um leve pulsar e, se aplicar o ouvido, detectará

    um longínquo sussurro. De fato, há em seu interior um sistema de condutos pelos quais corre água na escuridão e uma que outra pedra. Ninguém pretenderá, no entanto, que são as qualidades físicas do Ocioso as que redundam na massa humana que o rodeia; é a consciência de que em suas entranhas palpita algo silencioso e secreto, algo que brinca e dorme.” (Borges, Jorge Luis e Bioy Casares, Adolfo, “Os ociosos” in Crônicas de Bustos Domecq/ Novos contos de Bustos Domecq. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Editora Globo, 2010, p. 127- 129, p. 128-129).

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