A América Latina saindo dos eixos

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Inspirada num coletivo brasileiro, Argentina articula artistas e público em redes que deixam para trás fábrica de frustrações da indústria cultural

Por Jéferson Assumção

A vigorosa experiência brasileira de redes e coletivos de cultura começa a transbordar para a América Latina. Por uma série de elementos culturais, econômicos e sociais, o uso da internet no Brasil tem sido bastante progressista, resultando em articulações e combinações que chamam a atenção internacionalmente. Talvez pela informalidade nuclearmente presente em nossos modos de ser e de fazer, no Brasil a internet ajudou a que a vitalidade e a espontaneidade das ações culturais e sociais se conectassem fortemente, com empoderamento e escala. Um tanto mais formal que a sociedade brasileira, a Argentina vem encontrando a sua maneira de fazer com que essas experiências de antropofagia tropical se adaptem à sua base produtiva cultural local, num esforço louvável de seus gestores públicos.

Foi assim que o Mercado de Indústrias Culturais da Argentina (MICA), realizado de 11 a 14 de abril, na Tecnópolis de Buenos Aires, serviu de palco para a Secretaria de Cultura de la Nación lançar um programa chamado Recalculando. O programa é uma ação do Estado argentino que praticamente replica as práticas e as “tags” das redes e coletivos do Brasil para recombinar a forma como a economia da cultura se desenvolve naquele país. Nessa recombinação estão presentes conceitos de empoderamento, ação horizontal, descentralizada, diversidade cultural, com o objetivo de desenvolver e profissionalizar a música emergente.

A estratégia é a mesma desenvolvida já há sete anos no Brasil com a rede de coletivos Fora do Eixo (FdE) – um dos organizadores do programa argentino esteve em São Paulo conhecendo as experiências da Casa Fora do Eixo e levou para o país vizinho a tecnologia social aprendida com e disponilbilizada pela rede brasileira. A diferença é que em vez de ter vindo da sociedade, autorganizada e descentralizada, o Recalculando é fomentado pela União, com o objetivo de fomentar a conexão de coletivos hoje isolados e com pouca escala em sua ação colaborativa.

Como ocorreu com o programa Pontos de Cultura (que na Argentina se chama Puntos de Cultura) a rede de coletivos Fora do Eixo agora tem servido de modelo brasileiro adotado pelo governo de lá para ativar circuitos regionais e coletivos de artistas em redes mais amplas e com maior poder de ação. A ideia é propiciar pontos de encontros de músicos, gestores, produtores e realizadores visuais de todo o País, constituindo nexos entre coletivos de música emergentes com instituições, empresas e entidades tanto do âmbito público quanto privado. Com o programa, o Estado argentino recombina a experiência brasileira e disponibiliza uma potente ferramenta para a conexão das três esferas que devem ser levadas em conta na vida cultural de nosso tempo: além do Estado e do Mercado, o Comum – potencializado hoje pela internet.

No país vizinho, o governo descobriu que, além da indústria cultural tradicional, precisa apoiar as recentes e inovadoras iniciativas pós-industriais, por seu potencial de distribuição de riqueza, de ampliação de uma visão colaborativa da sociedade e de estímulo a uma cidadania ativa. Como no Fora do Eixo, os resultados econômicos são tão ou menos importantes que a ampliação das visões de mundo propiciadas aos integrantes desses grupos e a possibilidade de concretizar sonhos conjuntos. Assim como o capitalismo gera pobreza (mais que riqueza), a indústria cultural tradicional geral fracasso (muito mais que sucesso). É isso o que se está mudando, seja da sociedade para o Estado (como no caso do FdE), seja do Estado para a sociedade, tal qual ocorre com o Recalculando.

O lançamento do programa também serviu para mostrar o enorme potencial que tem a experiência do Fora do Eixo para se espalhar a outros países latino-americanos. Não apenas o FdE foi citado como exemplo inúmeras vezes nas mesas de discussão sobre economia da música, como foi o centro das atenções em diversas reuniões com selos independentes, circuitos de festivais, produtores e gestores públicos de cultura da Colômbia, México, Uruguai e Bolívia, entre outros. Muita coisa vem por aí, resultado das “conversas infinitas” entre os brasileiros e os hermanos de todo o continente. É a América Latina saindo dos eixos da indústria cultural tradicional para se integrar em modelos mais colaborativos e solidários.

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