Os yuppies também surtam

“Toni Erdmann” propõe um conflito de gerações invetido, onde filha integrada confronta-se com pai, hippie tardio. Filme apresenta obra de Maren Ade, diretora marcante e original

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“Toni Erdmann” propõe um conflito de gerações invetido, onde filha integrada confronta-se com pai, hippie tardio. Filme permite conhecer obra de Maren Ade, diretora marcante e original

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Toni Erdmann, da alemã Maren Ade, que concorre ao Oscar de filme estrangeiro depois de ter conquistado uma porção de prêmios em festivais como Cannes, San Sebastián e Toronto, pode ser descrito como uma comédia amarga sobre o nosso tempo. Mas, como veremos, é muito mais do que isso. Ainda estamos em fevereiro, mas já se pode dizer sem medo que é um dos grandes filmes do ano.

O público carioca poderá ter o privilégio adicional de ver os dois longas anteriores da diretora, Floresta para as árvores (2003) e Todos os outros (2009), programados para as próximas semanas no Instituto Moreira Salles. É uma rara oportunidade de presenciar a gênese e o florescimento de um cinema forte e original.

Descompasso geracional

No centro de Toni Erdmann há a relação desencontrada entre um pai e sua filha. O pai, Winfried Conradi (Peter Simonischek), é um velho professor de música meio amalucado, uma espécie de hippie tardio, remanescente de outros tempos e valores. Sua filha Ines (Sandra Hüller), ao contrário, é uma executiva enérgica, totalmente integrada no capitalismo global: seu trabalho, para uma firma de reengenharia empresarial, consiste em demitir empregados e transferir unidades de produção para países onde a mão de obra é mais barata. Atualmente ela está em Bucareste, na Romênia, mas amanhã poderá estar em Xangai ou em Cingapura.

Esse conflito geracional invertido (o pai é libertário; a filha, uma serviçal do lucro capitalista) revela-se logo numa das primeiras cenas, em que Ines, momentaneamente de volta à Alemanha, participa de um almoço de família na casa da mãe, separada de Winfried. Olhando a filha à distância, a mãe comenta com o ex-marido como a moça está se dando bem na sua firma, conquistando cargos, poder e dinheiro. Ele responde: “Onde foi que erramos?”

O descompasso entre pai e filha ganha contornos tragicômicos quando ele resolve visitá-la de surpresa em Bucareste. Usando um disfarce ridículo (peruca ensebada, dentes tortos postiços), apresenta-se com a identidade de Toni Erdmann nas mais diversas ocasiões (encontros de trabalho, jantares, recepções), no mais das vezes constrangendo Ines, mas ocasionalmente obrigando-a a entrar no jogo e confrontar seu próprio modo de vida desumanizado, em que até mesmo as diversões não passam de meios de “maximizar sua performance” profissional.

Teatro da sociedade

Um dos modos de ler Toni Erdmann é apreciar esse balanço dialético entre um teatro social conservador, em que cada máscara serve para reafirmar uma posição de poder, e um teatro de desafio e subversão, fundado no lúdico e no cômico. Dito assim, poderia soar como algo esquemático, como uma “mensagem” preconcebida. Nada disso. O que confere um frescor irresistível ao cinema de Maren Ade é justamente a sensação de que nada estava escrito de antemão, de que as coisas vão acontecendo “naturalmente” diante da câmera, como um presente contínuo.

Há o tempo todo uma atmosfera de instabilidade, de incerteza, que vem muito da utilização de uma câmera na mão que parece não saber muito bem o que vai encontrar pela frente no próximo movimento. Mesmo nos planos supostamente fixos a câmera nunca está totalmente imóvel, nunca aprisiona a imagem e os personagens.

A impressão, ao mesmo tempo angustiante e libertadora, de que “tudo pode acontecer” atinge o ápice na passagem do brunch de aniversário no apartamento de Ines. A partir de um contratempo minúsculo e banal ao extremo – a tentativa de tirar pela cabeça um vestido muito justo – cria-se uma situação crescentemente absurda, desconcertante, que deve ser uma das sequências cômicas mais extraordinárias do cinema contemporâneo.

Essa parece ser uma estratégia narrativa constante do cinema de Maren Ade: uma abordagem aparentemente prosaica que faz estalar como pequenas ou grandes epifanias os momentos de humor, de violência ou de poesia.

De resto, os personagens não se prestam a nenhuma redução programática, seja ela política, sociológica ou psicanalítica. Winfried/Toni não é apenas um libertário, é também um chato de galochas, um homem ao mesmo tempo sublime e ridículo em sua busca do autêntico através do falso. E Ines tampouco é apenas uma insensível máquina de produzir e ganhar dinheiro. As criaturas de Maren Ade têm nuances, fundos falsos, facetas opacas. Mais que isso: parecem em permanente construção, como aliás todo mundo. Por isso são tão vivas.

Floresta para as árvores

As características indicadas acima – instauração de um presente contínuo, câmera inquieta, personagens inacabados, narrativa prosaica com relâmpagos poéticos – estão presentes, ao menos em embrião, desde o primeiro longa-metragem da diretora, Floresta para as árvores, centrado numa jovem professora (Eva Löbau) vinda do interior, às voltas com uma classe problemática de adolescentes, com a indiferença dos colegas e, sobretudo, com sua própria solidão e inadequação. Ela tenta a todo custo virar amiga íntima de uma vizinha solteira a quem espia pela janela. Acaba se tornando um estorvo, um ser patético e comovente como Toni Erdmann, mas por motivos quase opostos.

Realizado como desdobramento de um projeto de conclusão do curso de cinema, Floresta para as árvores conquistou prêmios no Sundance e em Buenos Aires e revelou ao mundo uma cineasta promissora.

Todos os outros

A boa expectativa se confirmou no longa seguinte, Todos os outros, que retrata um jovem casal alemão durante uma temporada de verão num vilarejo da Sardenha, onde o rapaz (Lars Eidinger) talvez faça a restauração de uma casa antiga.

Abordagem original de um motivo recorrente da literatura e do cinema – o casal em crise longe de casa –, o filme desenvolve uma das grandes virtudes da diretora, a de filmar as sutis mudanças de humor e sentimento dos personagens, as transformações do clima entre eles. No jogo erótico-amoroso, é tênue às vezes a separação entre o lúdico e o pueril, entre o sentimental e o pegajoso, entre o humor e o constrangimento. Maren Ade, com a cumplicidade ativa de seus atores, capta justamente essa fronteira instável, em que o sentido de cada gesto depende do estado de espírito de quem o presencia ou recebe.

Mais do que nunca está presente aqui o enganoso prosaísmo da abordagem da diretora, que só faz acentuar o impacto do que ela própria chama de “momentos cinematográficos”. Um personagem tromba violentamente com uma porta de vidro, outro se joga por uma janela: movimentos inesperados que, no entanto, parecem surgir naturalmente das situações. E os resultados das ações não são os que esperaríamos, por estarmos habituados a certos esquemas narrativos e dramáticos. A vida sempre escapa por todos os lados nos filmes de Maren Ade, que terminam invariavelmente em aberto ou, mais ainda, em suspenso.

Entre outros prêmios, Todos os outros ganhou dois Ursos de Prata em Berlim, o prêmio especial do júri e o de melhor atriz (Birgit Minichmayr).

“Ameaça” hollywoodiana

Vista em conjunto, a filmografia até agora pouco numerosa, mas robusta, de Maren Ade mostra um cinema crescentemente complexo, em termos de construção narrativa e de recursos de produção, mas que mantém um olhar pessoal e intransferível, uma sensível marca autoral. A Paramount planeja agora fazer uma versão americana de Toni Erdmann, com Jack Nicholson como protagonista. É difícil prever o que sairá disso, mas há o temor de que, ao apossar-se do enredo original, os novos produtores tentem enquadrá-lo em esquemas e fórmulas conhecidas, arruinando a alquimia singular de Maren Ade. É só uma hipótese, mas não seria a primeira vez em Hollywood.

 

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