Tinhorão e a paixão ranzinza pelo Brasil

Crítico musical deixou-nos, aos 93. Erudito, debruçou-se sobre raízes da música popular, pesquisando em profundidade seus gêneros. Polêmico, criticou influências gringas na bossa-nova e Tropicália. Mas isto não diminui sua obra

Imagem: Marcos Fernandes/CB/D.A Press)
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Perdemos hoje, aos 93, José Ramos Tinhorão. Para começar, é preciso dizer o seguinte: há historiadores e historiadores de música popular brasileira. E há Tinhorão. Dono de um senso quase missioneiro de pesquisador, poucos como ele se aventuraram tanto em acervos embolorados, bibliotecas mal cuidadas, infinitos sebos e a fazer descobertas surpreendentes, como a de que o fado se origina no Brasil e não em Portugal. Mas seu diferencial maior era a capacidade de análise, dotada de rigor e método admiráveis. Marxista de carteirinha, não era o tipo de arrotar teoria, mas de valer-se dela, sem derrapar para ecletismos fáceis. Talvez sua obra mais fascinante seja a trilogia A música popular no romance brasileiro. Em suas páginas, ele nos chama a atenção para um detalhe que a muitos passa despercebido em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, cuja trama se passa nos anos anteriores à Independência. Trata-se do seguinte trecho, na divertida cena da preparação de comemorações religiosas:

“Dispuseram-se as coisas; postou-se a música de barbeiros na porta da igreja; andou tudo em rebuliço: às 9 horas começou a festa”.

A expressão “música de barbeiros” intrigou o historiador. Como um perdigueiro, Tinhorão não apenas descobriu que negros de ganho dedicados ao ofício em barbearias punham-se a compor e a tocar alguns instrumentos, por disporem de tempo livre, como pequenos conjuntos ali formados deram início a uma tradição musical que chegaria ao início do século XX na forma dos regionais do choro.

Mas nem tudo eram flores para nosso herói. “Enquanto eu me metia a historiador, todo mundo achava ótimo”, contava ele. “Aí, eu comecei a fazer uma coluna na Tribuna da Imprensa e falei mal de um disco da Elizeth Cardoso. Antes eu já tinha criticado a bossa nova. (…) Aí comecei a levar pau”, dizia com um sorriso

Em agosto de 1996, tive o privilégio – juntamente com Breno Altaman e Giuliano Cedroni – de fazer uma longa entrevista com Tinhorão, na quitinete em que ele vivia, na rua Maria Antônia, centro de São Paulo. Foram quase quatro horas de uma conversa inteligente, desbocada e divertida, para a Atenção!, uma bela revista de reportagens, lançada antes da difusão da internet, e que vale uma história. Na abertura da entrevista, escrevi o que se segue:

Obsessivo maldito. O apartamento é quase um corredor e surpreende o visitante pela quantidade de discos, revistas, livros e traquitanas que abarrotam as paredes. Coisas raras: edições dos séculos XVIII e XIX, garimpadas em sebos de São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa, velhos 78 rpms e uma infinidade de publicações várias, ameaçadas de vez em quando por uma infiltração do encanamento do vizinho. Uma mesinha, duas cadeiras e um colchonete. ‘Era um lugar provisório quando me mudei para cá em 1980 e acabou ficando provisório até hoje’, conta o dono da casa. É ele, José Ramos Tinhorão, o que inverteu a máxima de Maquiavel, de que é melhor ser temido do que odiado. Acabou antipatizado pelos integrantes dos principais movimentos musicais brasileiros dos anos 1960, da bossa nova ao tropicalismo. ‘Isso é porque eu não faço média’, sentencia o autor de dezesseis livros [hoje são 25] sobre música e cultura popular. Suas pesquisas obsessivas se tornaram referência para os interessados no tema. Aos 68 anos, Tinhorão está fora de sua tradicional trincheira, a imprensa. Vive em São Paulo de uma pequena aposentadoria e dos direitos autorais dos livros que continua escrevendo. Os últimos quatro, aliás, só publicados em Portugal, por falta de interesse das editoras brasileiras [logo depois, a 34 passou a editá-lo aqui]. Com voz pausada e frases provocativas, esse filho de portugueses conta que ganhou o apelido – de uma planta ornamental – quando um chefe de redação tentava se lembrar de seu sobrenome Ramos, aparentado a vegetais. Esse homem que encarna como ninguém o epíteto de maldito, ironiza a tentativa de transformá-lo em folclore e avisa: ‘Eu ainda vou longe!’”

E foi muito. Com o relançamento de suas obras e com as expressivas vendas feitas a programas de difusão cultural para bibliotecas públicas, ele passou a ter razoável folga orçamentária, o que o permitiu se casar novamente e a comprar um apartamento confortável. Anos depois, o Instituto Moreira Salles adquiriu todo o seu acervo, que se encontra restaurado e em grande parte digitalizado. Sou imensamente grato a Tinhorão por ter intercedido, junto à instituição, para que eu pudesse ter acesso ao precioso material, em minha pesquisa de doutorado sobre a imprensa no século XIX.Tinhorão foi realmente único. Para quem desejar conhecer mais sobre ele, além de seus livros, pode buscar a bela biografia ‘Tinhorão, o legendário”, de Elizabeth Lorenzotti (Imprensa Oficial do estado de S. Paulo).

Adeus, meu camarada.

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