Queimem os utopistas!

Em A Nova Ordem, de Bernardo Kucinski, um Brasil ficcional — e familiar. Um desvairado governo fecha universidades e confina indesejados em campos de concentração. Enquanto as ruas são tomadas pela miséria, subversivos são atirados ao mar

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Por Jean Pierre Chauvin |Arte: Caroline Oliveira

“- Impossível! Protesta outro jurista, presidente da OAB.
– Na Nova Ordem tudo é possível, retruca o catedrático”.[1]

Salvo episódios de improvável síntese, um dos dilemas que mais perturba os sujeitos, ainda capazes de sentir e refletir, reside na antiga oposição entre idealistas e materialistas. Se traçássemos um arco temporal dos socráticos aos chamados pós-modernos, localizaríamos diversos nós de aparente insolubilidade, pois o plano metafísico parece irreconciliável com o mundo concreto, em que raros lucram, alguns sobrevivem e a grande parte infravive. 

Ao lado dessa dicotomia, que envolve formas antagônicas de conceber o mundo, as coisas e os homens, há outra. A de que o trabalho se divide rigorosamente entre quem pensa e quem bota a mão na massa. Provavelmente é esse pseudoargumento que continua justificar a distância que parte dos chamados intelectuais toma em relação ao outro, o não-intelectual, a massa, o povo. Faltou recordar ao homem que se crê notável que a sua postura é tão antiga e excludente quanto a dos iluministas, do final do século XVIII, que pretendiam indicar o caminho iluminado aos demais, incapazes de pensar.

Creio que é também disso que se trata A Nova Ordem, de B. Kucinski, texto entregue para a Alameda Editorial em janeiro e publicado há dois meses. Aqui trafegamos em outra via divergente: Para alguns, o ano de 2019 sinalizaria o tempo de ajuste de contas do povo, supostamente mal-acostumado, em relação ao governo; para outros, chegamos com potência máxima à era da desfaçatez, mal disfarçada no discurso que se pretende ordeiro, moderno, isento e confiável (a despeito das cenas lamentáveis com que certas figuras encompridam a impaciência alheia). O fato é que, se esta neocolônia fosse uma nave-mãe (porque pátria já deixou de ser), precisaríamos advertir os tripulantes que o discurso em nome do país do futuro, pelo menos desde 2014, implica negar o passado e fingir que as crises do presente não sejam responsabilidade direta de quem tanto lutou para derrubar a proposta de antes e chegar ao poder, a vociferar contra a corrupção e a semente comunista, e em favor da nação – quase tão livre quanto o mercado e os homens de bem que pretendem fazer disso, território, plataforma para o mercado externo.

Na primeira página, que leva o nome do autor, há uma curiosa ilustração: três listras retangulares, de alturas, comprimentos e cores diferentes. Duas delas, mais longas, cercam o retângulo central, de tom mais claro. Nas páginas finais do livro é que se pode encontrar uma possível explicação para ela: “O general Fagundes senta-se. O baterista rufa seu tambor. Os dois soldados se adiantam com passos cadenciados, postam-se na frente do coronel Humberto, batem os calcanhares e passam a arrancar suas dragonas, seus galões, suas fitas de condecorações (pp. 158-159)”.

Ao lado da ficha catalográfica, há duas epígrafes, com quem o livro dialoga. Numa delas, o narrador de Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley) defende a pré-seleção dos elementos, em uma sociedade planificada em que a tensão entre as classes sociais teria sido equacionada graças aos métodos de condicionamento in utero. Para os episódios de mal-estar haveria a ingestão do Soma, substância que devolve ao indivíduo a fluidez que acompanha a vida lisa, sem sobressaltos nem angústias. A segunda epígrafe saiu de 1984 (de George Orwell), em que o regime totalitário do Grande Irmão conta com propaganda maciça, dispositivos de vigilância e polícia do pensamento.

O que A Nova Ordem tem em comum com aqueles? O fato de que, mesmo numa sociedade de regime autoritário – que tivesse sido bem-sucedido em limar diferenças, dar sumiço aos “indesejáveis” e disfarçar a miséria econômica das ruas, viadutos e marquises de banco – continua a haver imprevisibilidades. É justamente a diferença, a pluralidade de concepções, estilos, ideologias, ações e modos de sentir que pode assegurar à humanidade o que a diferencia dos autômatos e a coloca em posição de relativa superioridade sobre os animais, ditos irracionais.

Dentre os vinte e dois capítulos, o primeiro é um dos mais longos e impactantes. Trata-se da reunião de um grupo de intelectuais de vários ramos do saber, reunidos numa instalação denominada “fábrica”, por seus captores. A cena é impactante e sumariza os efeitos produzidos pela “Operação Cátedra”, cujo alvo, como logo se adivinha, são as universidades e institutos de pesquisa. Por sinal, se há uma coisa em que transparece o talento dos agentes está em criar siglas de impacto, dispostas em Éditos federais, além de dar nomes divertidos a projetos trágicos, a exemplo da “Operação Capela”[2] ou “Ação Solidária”[3]. O que seriam os tais Éditos? A maior parte deles equivaleria, em termos utilizados hoje, a Decretos sem o amparo da constituição. Um dos mais nefastos é o Édito “3/2019 [,] que obriga todo brasileiro ao completar 18 anos a abrir uma conta bancária denominada Conta-Pessoa, contraindo para tal fim um empréstimo no mesmo banco e agência, denominado Empréstimo-Pessoa” (ANO, p. 12).

Nas linhas finais do primeiro capítulo, há um dos vários diálogos premonitórios do romancista. O leitor, que desconfia de youtubers e aposta nos livros, na tentativa de aprimorar sua criticidade, pode examiná-lo por conta própria:

– O que vai acontecer conosco? Pergunta um catedrático ainda jovem, aproximando-se do coronel.
– Quem é o senhor? Pergunta o Coronel.
– Sou reitor da Universidade Federal de Santa Catarina.
– As universidades federais não existem mais, retruca o coronel (ANO, p. 18).

Três tempos são evocados pela narrativa: o discurso eugênico, a eliminação dos diferentes e miseráveis, o controle da mente (subversiva) e a eliminação de corpos no mar, os campos para “aprendizagem” e “trabalho” e o uso das “fábricas” para experimentos, lembram as táticas e práticas dos nazistas, na década de 1940. Os argumentos empregados pelas personagens colam-se ao discurso militar, convencionado com os programas de cooperação dos Estados Unidos, entre as décadas de 1960 e 1980. As justificativas apresentadas pelos encarregados é levar os programas de extinção da coisa pública e o extermínio de pessoas estão muito próximas do que se ouve neste país, com renovada virulência, nos últimos cinco ou seis anos.

Analogamente, as ações estão situadas em três ambientes, alternando-se com a mesma simetria temporal, o que permitiria repensar o que significa a ilustração em três faixas, já mencionada. A rua, a fábrica e os apartamentos de Marilda e o da falecida Germana compõem o universo restrito por onde transitam as figuras caricatas do romance. Mas seria um romance? Ensaio? Panfleto? Ou uma obra cujo gênero não se pode precisar, justamente por que a linguagem importaria muito mais que a composição dada ao volume? Que linguagem seria essa? Porventura seja mais adequado falar em linguagens: uma delas, centrada nos diálogos eventuais entre o ex-engenheiro (e morador de rua) Angelino, em suas transações minúsculas com Zacarias, que paga quase nada pelos livros (proibidos no país sob o regime da Nova Ordem), em aparente diálogo com a distopia de Ray Bradbury, Fahrenheit 451. Outra, entre Marilda e seu marido (Ariovaldo) ou seu amante (Fagundes) – fã de Stálin e Pinochet. A terceira, entre os homens que compõem as forças militares.

Esse modo de ler parece ser produtivo. Sugere que, ao seu modo, o narrador finge aderir aos argumentos das figuras de papel, cujo discurso soa tanto mais familiar quanto mais assustador, à medida que as páginas se sucedem. Em meio ao cenário desolador das ruas, tomadas por miseráveis e dependentes químicos, Angelino retém um santinho com mensagem de esperança: “O reino da Igualdade está chegando. A nova ordem tem seus dias contados. Deus não criou a Terra para alguns. Deus criou a Terra para todos. Os bancos têm parte com o maligno” (ANO, p. 32).

 No que sobrou do Brasil, do lado de cá da ficção, uns nos chamam de esquerdistas. Não por acaso, a palavra é travestida no romance de Kucinski. A certa altura, Ariovaldo, militar carreirista, afirma um de seus mantras: “Esmagar os utopistas é prioridade absoluta da Nova Ordem” (ANO, p. 38). Além do soro da verdade, versão aperfeiçoada do pentotal (substância importada dos EUA), Ariovaldo considera arregimentar psicanalistas, que se infiltrariam em consultórios, para detectar pacientes com potencial desviante. Afinal, a tarefa mais importante era “[…] desbaratar a subversão utopística. Defender o sistema financeiro é um dos objetivos nacionais permanentes da Nova Ordem” (ANO, pp. 58-59).

A exemplo do que sucede no mundo real, toda operação de controle depende não apenas da eficácia resultante das técnicas de castigo e extermínio, mas de ferramentas que assegurem precisão ao catalogar os inimigos do Estado. Daí o papel das empresas, que “[…] cederam os dados [dos clientes e alunos] sem cobrar um tostão. Só tiveram que pagar pelo software israelense que identifica subversivos e gays pelo rastreio de palavras chaves trocadas pelo WhatsApp” (ANO, p. 65). Finalmente, num país moderno que se preze, há que se aderir integralmente à inovação tecnológica e seus macetes:

O capitão sinaliza a uma operadora do fundo da sala, que acessa um power-point, e retoma explicação: – Senhores, como podem ver pelo gráfico, cruzando os dados do patrimônio familiar com a ideologia do pai, identificamos um grupo de 2.000 utopistas filhos de famílias ricas para os quais propomos um programa de reeducação (ANO, p. 67).

 Para justificar ações controversas, porventura questionadas pela imprensa ou, mesmo por países vizinhos, lá está a pseudociência de cunho behaviorista: os utopistas “[…] da baixa classe média, têm estrutura psíquica semelhante à do criminoso comum, são movidos pela frustração e a inveja dos que possuem mais, ao passo que os nascidos em famílias tradicionais rebelam-se contra a autoridade do Estado, que para eles tem significação análoga à autoridade paterna, em especial, porque estamos falando de famílias patriarcais” (ANO, p. 68). Em meio aos progressos do programa, o capitão Ariovaldo e o major Humberto são promovidos, graças à iniciativa de torná-lo mais econômico e eficaz:

[…] em virtude do sucesso da operação Quimera os trabalhos da fábrica serão incorporados oficialmente ao organograma das Forças Armadas e ganharão sede própria: o tão almejado centro, já projetado. Vai se chamar Departamento de Operações da Inquisição, subordinado ao Centro de Operações de Defesa Interna (ANO, pp. 82-83).

 Para os ideólogos da Nova Ordem, o enxugamento dos gastos é um dos pilares do país do futuro. No romance, chama atenção o “Édito 16/2019 da Nova Ordem”, relacionado ao “fechamento” dos “institutos de pesquisa […], [d]o CNPq, a CAPES e o Ministério da Ciência e Tecnologia”, já que:

A Nova Ordem considerou desperdício de recursos públicos investir em pesquisa científica e tecnológica, depois da venda da Embraer à Boeing americana, da cessão da base de lançamento de foguetes de Alcântara à NASA e da transferência das jazidas do pré-sal às multinacionais de petróleo (ANO, p. 89).

Não nos esqueçamos dos religiosos que, vez ou outra, contrariam os interesses de políticos, militares e latifundiários. Foi o caso do Padre Bartolomeu, que não reconhece o perigo ao topar com um “senhor simpático que sentara ao seu lado […] entabulando uma conversa banal” (ANO, p. 135). Tão verossímil quanto a vida fora dos livros, o destino da personagem é ignorado. Porém, o melhor de A Nova Ordem está por vir. Graças à tenacidade, disciplina e ambição do carreirista Ariovaldo, soros e suplícios poderão ser expedientes superados. É chegada a hora de recorrer à máquina, para desumanizar os sujeitos, com o fim de torná-los dóceis, passivos, a ponto de fazerem “o que lhes for ordenado sem contestar” (ANO, p. 150).

Não se trata de leitura de entretenimento. A Nova Ordem mostra que a literatura é capaz de desmitificar os lugares-comuns daqueles que optaram por se postar acima e/ou contra o povo, sem reconhecer nele a sua porção. Independentemente do modo com que a narrativa venha a ser chamada (será um romance distópico? Será panfleto? Será um ensaio com vistas a estimular a resistência democrática?), o livro esmaece os limites entre verdade e verossimilhança e reduz as margens entre a estética e a ética. Não deixa de ser um manifesto em forma de livro ou, melhor dizendo, um romance-manifesto. Resta saber se, a essa altura dos acontecimentos no país, seria necessário advertir o leitor de que ele não está diante de um manual em defesa da (relativa) ordem; mas de uma obra literária que denuncia as táticas de extermínio, desnuda o estado de exceção e demonstra como os argumentos inconsistentes andam a par com o pensamento estreito e a linguagem rebaixada para aquém do nível medíocre. 


[1] B. Kucinski. A Nova Ordem. São Paulo: Alameda Editorial, 2019, p. 15.

[2] “É só com os padres que ele [sargento Messias] tem que lidar; os pastores evangélicos estão fora da Operação Capela. São de confiança. Tanto assim que a Igreja Universal virou oficial” (ANO, p. 98).

[3] “ – Que tal Operação Resgate?, diz o general. Ariovaldo, que vinha trabalhando a operação como altamente secreta, está espantado, não sabe o que dizer. Finalmente, balbucia: – Com todo o respeito, general… creio que operação não soa bem, é uma expressão militar” (ANO, p. 124).

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