Cinema: Faroeste alienígena e o poder da imagem

Western. Suspense. Comédia. Sci-fi. Terror. Sob a roupagem de blockbuster, Não! Não olhe! reflete sobre o poder do olhar para desvendar, mas também falsear o mundo — e a busca de sentidos na 7ª Arte: fama, obsessão estética e salvação

.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

De quando em quando surge um filme que revisita criativamente toda a história do cinema, questionando de quebra a natureza do meio ou, pelo menos, da sua indústria. É o caso de Não! Não olhe!, de Jordan Peele, que realiza isso sob a roupagem de um blockbuster divertido e envolvente, em cartaz nos cinemas do IMS.

A começar pelo cenário. No interior da Califórnia, num fim de mundo chamado Agua Dulce, o jovem negro O.J. Haywood (Daniel Kaluuya) mantém com o pai um rancho de criação e adestramento de cavalos para produções cinematográficas, comerciais e circenses, vizinho a um parque temático que mimetiza uma cidade do Velho Oeste. É nesse vale desértico que uma estranha chuva de objetos atinge e mata o pai de O.J.

Na cena seguinte – a desastrada filmagem de um comercial com um cavalo dos Haywood –, a irmã de O.J., Emerald (Keke Palmer), explica à equipe que seu tataravô foi o jóquei negro do cavalo que galopa na célebre sequência de fotos de Eadweard Muybridge de 1878, tida como precursora do cinema. “Ele foi o primeiro tratador de cavalos, dublê e ator do cinema”, diz ela. É um sutil deslocamento de foco, sugerindo uma abordagem da história do cinema a partir de suas bordas.

Mistura de gêneros

Desses elementos iniciais – rancho no meio do nada, cidade cenográfica, estranhas chuvas de objetos – constrói-se uma narrativa que trafega com desenvoltura (para não dizer desfaçatez) entre uma porção de gêneros: western, suspense, drama, comédia, ficção científica, terror.

No universo meio atemporal de Agua Dulce, ao mesmo tempo primitivo e fake, o astro é um caubói de origem asiática (o coreano Steven Yeun, de Minori e Em chamas), Ricky “Jupe” Park, que na infância, como ator mirim, sobreviveu à destruição de um set de filmagem por um chimpanzé enlouquecido (na verdade, um ator encarnando um chimpanzé).

Aliás, a imprevisibilidade do animal (cavalo, macaco, louva-a-deus…), esboço de revolução dos bichos, é um subtema que percorre o filme, sublinhando a ameaça alienígena. Esta acaba por se revelar não uma nave, mas um ser vivo.

Mais do que as referências diretas a filmes específicos (de E.T., na cena do cumprimento entre o chimpanzé e o menino, ao pôster do faroeste Um por Deus, outro pelo diabo, dirigido e estrelado por Sidney Poitier), o interessante, a meu ver, é a discussão sobre a tecnologia da imagem. Como o ser alienígena cria um campo de força que desliga todas as formas de energia, o cineasta veterano Antlers Holst (Michael Wincott) fabrica uma câmera artesanal, movida a manivela, e filma em película, num retorno às origens do cinema. E depois do fracasso de todo aparato eletrônico, o que acaba registrando a imagem do alienígena é uma espécie de polaroide rústica de parque de diversões.

O eixo dramático-narrativo principal, que unifica a mistura de gêneros e as mudanças de tom, é a questão do olhar, presente já no título. A visão como revelação da verdade, mas também como seu falseamento. Muybridge criou, a partir de fotos fixas, a ilusão do movimento, graças à persistência da imagem na retina. O cinema, como brincou Brian De Palma, é “a mentira a 24 quadros por segundo”. O próprio alienígena se disfarça de nuvem, de nave, de arraia voadora, antes de se revelar como uma espécie de anêmona ou água-viva gigante.

Poder da imagem

Há portanto no filme, embutida na ação incessante, uma reflexão sobre o poder da imagem. Emerald, a irmã descolada, quer filmar o alienígena para vender o vídeo, ir ao “programa da Oprah”, ganhar muito dinheiro. O veterano Antlers Holst tem uma tamanha obsessão estética que arrisca a vida subindo a uma montanha para captar o fenômeno aproveitando a fugaz “luz perfeita” (a “hora mágica”). Já o técnico Angel Torres (Brandon Perea) quer usar as imagens para “salvar o mundo”. São, de certo modo, três concepções distintas do sentido do cinema. Jordan Peele parece dizer que abraça, ao mesmo tempo, as três.

Para além de todas as leituras possíveis, o novo filme de Jordan Peele é uma aposta no cinema como espetáculo popular, com um poder de encantamento análogo ao dos primeiros tempos, o que vale por um manifesto nesta época em que as salas de exibição sobrevivem a duras penas no confronto com a internet e o streaming. A propósito: Não! Não olhe! é um filme para ser visto no cinema, de preferência numa sala com projeção e som de primeira. Não cabe na tela do computador, muito menos na do celular.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *