Cinema: cada um com seu diabo

Estreia suspense argentino O diabo branco, passado na província de Tucumán. Lá, jovens descobrem assassinatos estranhos e habitantes em transe. Nas entrelinhas, um passado histórico sangrento que dizimou povos indígenas

Cena de O diabo branco
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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Um filme de terror argentino é algo raro no circuito exibidor brasileiro. Só isso já justificaria o interesse por O diabo branco, que está entrando em cartaz em cinemas de São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. Mas, longe de ser apenas uma curiosidade exótica, essa coprodução Argentina-Brasil, além de oferecer um suspense eficaz, toca em cicatrizes escondidas da história do continente e traz uma curiosa proximidade com recentes produções de terror brasileiras, como veremos.

Primeiro longa-metragem dirigido pelo ator Ignacio Rogers, O diabo branco tem uma produção modesta e parte de um esquema narrativo bastante recorrente: o do grupo de jovens que vai curtir um feriado em algum lugar paradisíaco e se depara com a irrupção do sobrenatural.

No caso, quatro amigos de Buenos Aires (duas mulheres e dois homens) viajam de carro para um chalé numa região de mata e montanha na província de Tucumán. Antes mesmo de chegar, descobrem à beira da estrada pequenos e estranhos monumentos fúnebres. O velho truque de semear sinais de alerta no início da narrativa, dirá o espectador tarimbado. Mas calma.

O sol vai se pondo e quando chegam ao seu destino a atmosfera de estranhamento se adensa: o dono dos chalés, com quem precisam pegar as chaves, mostra-se lacônico e um tanto esquisito, e insiste para que conheçam o lago que fica ali perto.

Sangue sobre a terra

Faltou dizer que, ainda na sequência dos créditos, um prólogo mostrava um homem ensanguentado e de roupas rasgadas, fugindo pela mata com um olhar alucinado, e depois o mesmo homem sendo sangrado, de cabeça para baixo, numa espécie de ritual. A última imagem da sequência é a do sangue do homem empapando a terra. Mas em seguida voltamos a ver o homem perambulando sem rumo pela mata e avistando uma placa iluminada com lâmpadas elétricas em que está escrito: El diablo blanco.

Sabemos desde logo, portanto, que no lugar em que os amigos portenhos foram passear ocorreram no passado fatos sangrentos que, de alguma maneira, ainda reverberam.

É disso que se trata. Ao situar nessa terra irrigada pelo sangue do passado sua trama de suspense e horror, Ignacio Rogers canibaliza e adensa o cinema americano do gênero que, confessadamente, o influenciou, de A hora do pesadelo e Sexta-feira 13 a A bruxa e Corra!.

Quem se envolve mais profundamente com o lugar e começa a suspeitar que a população local está presa a uma espécie de transe macabro duradouro é o líder da turma de forasteiros, Fernando (Ezequiel Díaz), que acaba sendo considerado suspeito de um assassinato, o que faz com que os quatro amigos fiquem retidos ali.

Aos poucos vai ficando claro para Fernando e para o espectador que praticamente todos os habitantes da região fazem parte da reiterada maldição que atravessa os séculos. Manipulando com eficácia as elipses temporais e espaciais, o diretor nos deixa em dúvida quanto ao grau de envolvimento do próprio Fernando, e até mesmo quanto à hipótese de ele ter cometido aquele e outros assassinatos.

Passado obscuro

O diabo branco seria um mero entretenimento honesto e descartável se não revolvesse um passado obscuro que muitos argentinos prefeririam ignorar ou esquecer: os massacres de povos indígenas ocorridos no interior do país antes, durante e depois das guerras de independência. A província de Tucumán, ao que parece, foi um dos epicentros desse extermínio.

E é nesse ponto que o filme se aproxima de exemplares recentes do cinema brasileiro de horror, que vão buscar nos fantasmas do passado escravocrata a matéria-prima de seus pesadelos.

É o caso de O diabo mora aqui (2015), de Rodrigo Gasparini e Dante Vescio, e de O nó do diabo (2018), de Ian Abé, Gabriel Martins, Ramon Porto Mota e Jhésus Tribuzi. Para completar, há outro filme com diabo no título dirigido por um quase brasileiro, o nova-iorquino Antonio Campos, filho do jornalista Lucas Mendes: O diabo de cada dia (2020). Aqui, a origem do mal é o fanatismo religioso, mesclado com as guerras em que os EUA se envolveram no mundo. Enfim, cada qual com seus próprios diabos.

Estreias brasileiras

Dois importantes longas-metragens brasileiros estão entrando em cartaz nos cinemas: Piedade (2019), de Claudio Assis, sobre o qual escrevi brevemente quando pré-estreou num drive-in, e o documentário Mangueira em 2 tempos (2020), de Ana Maria Magalhães. Ambos são belos, contundentes e mais atuais do que nunca.

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