Cara ou Coroa e o quotidiano dos Anos de Chumbo

Ugo Giorgetti rompe com sisudez dos filmes sobre ditadura e produz crônica colorida, multifacetada e sem clichês sobre período

 

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Por José Gerado Couto*

A memória histórica (livros e filmes sobre um determinado período), a exemplo da memória individual, costuma ser bastante enganosa: tendemos a ver de modo chapado, contínuo e linear aquilo que era desordenado, contraditório, multifacetado.

A época da ditadura militar, consagrada no clichê “anos de chumbo”, em geral aparece nos filmes assim: uma tensão permanente, rostos taciturnos, punhos crispados, discursos inflamados, um perigo em cada sombra. Aliás, a julgar por nosso cinema, era sempre noite. Parafraseando (e invertendo) Drummond, não havia manhãs naquele tempo.

Uma exceção, até agora, tinha sido O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, mas ali havia um álibi: era o período visto pelos olhos de uma criança. Artifício semelhante tinha sido usado por John Boorman em suas lembranças de Londres bombardeada na Segunda Guerra, em Esperança e glória, e por Marcelo Piñeyro em sua visão da ditadura argentina, em Kamchatka.

Só as crianças tinham o direito de ser felizes e despreocupadas. Os “adultos” tinham que ser carrancudos, combativos, para não ser acusados de levianos ou alienados.

Pois bem, entrou em cartaz dia 7 de setembro, salve, salve, uma crônica de época bem mais matizada, complexa e, ao mesmo tempo, saborosa. Estou falando de Cara ou coroa, o novo filme de Ugo Giorgetti.

Ambientado em 1971, portanto auge da ditadura, é, paradoxalmente, o filme mais leve e menos sombrio da recente produção do diretor (que inclui os melancólicos O príncipeBoleiros 2 e Solo).

Há várias razões para isso. A principal é a fina percepção histórica do cineasta, que pode ser conferida nesta sua deliciosa entrevista à escritora e cantora Natalia Barros. Giorgetti sabe distinguir: uma coisa era a ditadura, com tudo o que implicava de nocivo ao país e aos indivíduos; outra coisa era a vida de cada dia no período em que ela vigorou.

Arte e política

Outro trunfo do diretor foi ter-se valido de suas memórias pessoais. Sem nunca ter sido um militante “da ativa”, ele viveu aquela situação política pelas beiradas, recebendo ocasionalmente seus ecos e estilhaços, mas envolvido com outras preocupações. E assim são os personagens de seu filme: jovens às voltas com pequenos projetos, desejos, obstáculos. A questão política acaba entrando na vida deles de modo quase fortuito.

O personagem em torno do qual gira toda a trama é um diretor de teatro (o excelente Emilio de Mello) que tenta a duras penas encenar peças de vanguarda e manter unida sua trupe. Por suas situação de simpatizante de um grupo clandestino, ele precisa arranjar abrigo para dois militantes perseguidos e acaba envolvendo seu irmão mais novo (Geraldo Rodrigues) e a namorada deste (Julia Ianina), que por acaso é neta de um general (Walmor Chagas).

A intriga político-policial nunca se sobrepõe à observação dos personagens e seus dramas particulares. O frescor do filme vem muito do ímpeto de liberdade e experimentação (estética, existencial) que move suas criaturas e que se choca com três ordens de constrições. Uma, evidente, é a própria repressão política, com sua ameaça de prisão, tortura e morte. Outro obstáculo é a estreiteza de espírito da própria esquerda, retratada a um passo da caricatura na figura do militante stalinista. Por fim, a barreira talvez mais terrível de todas: o conservadorismo moral e político impregnado na sociedade e encarnado no admirável personagem do tio taxista (Otávio Augusto).

Em meio a isso tudo há espaço para o desejo, o amor, o riso. O filme tem a observação sutil e o humor irônico que Giorgetti herdou das comédias sociais italianas de Monicelli, Risi e Germi. Há cenas especialmente memoráveis, como a da festinha alternativa em que vai parar, atônito, o militante stalinista; ou a breve passagem em que o taxista elogia com admiração alguém que aparece na TV e que descobrimos em seguida se tratar de… Paulo Maluf. Giorgetti está afiado e inspirado como nunca. Ou melhor, como sempre.

*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.

Para ler as edições anteriores da coluna, clique aqui.

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