Estado punitivo ou Estado protetor?

Ao ceder aos instintos de vingança, Estado abandona vítimas da criminalidade. Projeto propõe ampará-las — com assistência às famílias de policiais e detentos assassinados e proteção a quem é alvo ou testemunha de atos criminosos

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Vivemos em um país onde o discurso punitivista parece ter virado uma espécie de muleta para quem não quer ou não consegue solucionar algum problema social. Do “Pacote Anticrime” à Lei de Abuso de Autoridade, passando até mesmo por questões como a LGBTfobia e o racismo, não são raros os exemplos em que as autoridades públicas e a grande mídia colocaram a ampliação do Direito Penal como a solução mágica para questões complexas do nosso país.

O histórico do uso do Direito Penal como solução para os problemas brasileiros, porém, já deveria ter nos mostrado que o punitivismo está longe de ser um caminho racional para as profundas questões sociais do Brasil. Num país com mais de 700 mil pessoas presas, quase todas pobres e periféricas, majoritariamente negras e encarceradas por motivos menos graves como crimes contra a propriedade e pela Lei de Drogas, seguimos com um dos piores índices de criminalidade e violência do mundo, sem qualquer perspectiva de melhora.

Vale dizer que o próprio ambiente carcerário acaba por contribuir para o aumento dos índices de criminalidade no país. Afinal, foi neste cenário de total abandono estatal que surgiram as principais facções que hoje aterrorizam as cidades brasileiras. É nas prisões que jovens sem perspectivas de melhora de vida aqui fora são jogados em extrema vulnerabilidade no colo destas mesmas facções, alimentando um ciclo de pobreza e criminalidade sem fim.

Mas não é nestas figuras que foco este meu texto. Queria focar este artigo numa figura que parece sempre oculta quando se discute a criminalidade. Uma figura que jamais será discutida enquanto o foco do debate for o Direito Penal. Por isso, meu foco neste texto vai para a figura das vítimas dos crimes.

E, pra iniciar esse debate, é preciso que se diga uma obviedade: o Direito Penal não atende às vítimas dos crimes. O foco exclusivo do Direito Penal, como o próprio nome diz, é a pena, a punição do agente que tenha cometido o crime. É claro que numa sociedade cada vez mais afeita a soluções violentas, que cada vez mais vê seus desejos de vingança incentivados por mídia e autoridades, o Direito Penal parece cumprir bem com os anseios populares. Mas, falemos a verdade, dada a sentença penal pelo juiz, resta apenas o abandono estatal à vítima.

Desse modo, vemos que o poder público acaba falhando nas “duas pontas da criminalidade”: não consegue reduzir as taxas criminais, porque o sistema penal se tornou uma máquina perversa que alimenta a própria violência; e também não consegue amparar as vítimas da criminalidade, pois aposta todas as suas fichas no Direito Penal, um ramo do Direito que ignora a vítima para focar apenas no agente criminoso.

Sobre o primeiro ponto, não me aprofundarei por não ser este o foco do artigo aqui escrito, mas vale dizer que a solução deste passaria por uma série de reformas no sistema de segurança pública e no reconhecimento da interdisciplinaridade do combate às causas do crime, compreendendo-se que a redução da violência não é só um “caso de polícia”, adotando-se políticas sociais e econômicas de redução de desigualdades e garantias de direito.

Quanto ao desamparo da vítima, especialmente em um país com mais de 60 mil mortes violentas por ano, já passamos da hora de criar uma verdadeira rede de proteção social às pessoas que tenham passado por experiências traumáticas de crimes. Felizmente, um primeiro passo pode ter sido dado nessa direção.

Trata-se do PL 796/2019[1], um projeto de autoria do Deputado Federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) que institui diretrizes para a prestação de auxílio, proteção e assistência às vítimas de violência. O PL, de forma bastante abrangente, tem foco especial na reparação do dano que vítimas de qualquer tipo de crime possam ter sofrido, seja ele financeiro, físico ou psicológico. Além disso, o PL se preocupa em abarcar não só as vítimas, mas também seus familiares e dependentes, que muitas vezes sofrem efeitos colaterais dessas violências.

Partindo da premissa de que Direitos Humanos não devem ser seletivos, mas aplicados a todos sem distinção, o projeto também se preocupa tanto com as peculiaridades dos profissionais de segurança pública quanto com as vulnerabilidades de pessoas presas. Assim, o PL traz a preocupação, por exemplo, de garantir bolsas de estudo a filhos de policiais que tenham morrido ou ficado inválidos por conta de violência sofrida no serviço, assim como também obriga o Estado a indenizar familiares de pessoas que tenham morrido na prisão.

O projeto ainda vai além, garantindo maior proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, assistência jurídica para recebimento de auxílios e pensões, outros tipos de indenizações estatais e até mesmo a responsabilidade estatal em arcar com custos de enterros em casos de violência letal.

Assim, pode-se dizer que o PL inova ao trazer dois grandes novos pilares tão necessários para o debate acerca da criminalidade no Brasil, ambos voltados totalmente para as vítimas: a reparação do dano e a noção de responsabilidade estatal sobre todo e qualquer crime. Num país acostumado a ver autoridades com as mãos sujas de sangue tentando lavá-las com declarações cada dia mais cínicas, um projeto que reconhece a responsabilidade do Estado para com as vítimas de violência pode ser um ótimo começo para as demais mudanças que o Brasil tanto precisa na área da segurança.


[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192107

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2 comentários para "Estado punitivo ou Estado protetor?"

  1. Joma disse:

    A EDUCAÇÃO COM QUALIDADE PARA TODOS(SEM RESTRIÇÃO), SERIA O MAIOR COMBATE À CRIMINALIDADE NO BRASIL.
    Mas a Educação de qualidade pra todo mundo, não tem sido prioridade neste país.

  2. Joma disse:

    EDUCAÇÃO = CHAVE DA PROSPERIDADE PARA UMA NAÇÃO QUE SE QUER DESENVOLVIDA

    O setor privado é o motor do crescimento, o governo é o condutor e a educação é o combustível que aciona o motor. Não tenhamos a mínima dúvida de que a educação é a melhor maneira de sair da miséria econômica e social em que o país se encontra. Há que focarmo-nos na revisão de todas as escolas(ensino básico, médio e superior) e comprometermo-nos a educar todas as crianças e adolescentes – educá-las sempre com qualidade. Os professores desempenham um papel crucial – combinam naturalmente toda a sua sapiência(ciência, tecnologia, engenharia, matemática, etc.) com empatia. Há que fortalecer a alfabetização e a numeracia nas séries iniciais e elaborar uma ótima transição da escola para o trabalho por meio de orientação profissional direcionada. Este país deve investir nas gerações futuras, não apenas porque é simplesmente a coisa certa a fazer, mas também porque não fazê-lo é uma receita para a pobreza, a desigualdade e a instabilidade.
    Onde estão os projetos de Educação para este país? Nem o executivo nem o Legislativo estiveram ou estão presentes na apresentação de verdadeiros projetos de educação.

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