As revoluções árabes na Espanha

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Por Bruno Cava, do Outras Palavras e Universidade Nômade

Como não ficar otimista quando a geração ocupa em massa as ruas e as praças da metrópole? Quando pessoas como você e eu concluem para si mesmas que chegou a hora da verdade e, diante dos imperativos de seu tempo, agarram a chance de mudança e decidem não largar mais? Quando se permitem a heresia de contagiar-se pelo entusiasmo febricitante das multidões, além de suas vidinhas formatadas e previsíveis, para vivenciar esses dias de aventura e risco e sorriso, em que se provam os verdadeiros sentimentos de amor e revolução?

Estamos em 2011, ano da revolução global. Adeus à velha política, ao velho estado, à velha esquerda. Chega de repetir um physique du rôle abatido, ascético, pessimista. Tchau tchau para narrativas jeremíadas que tanto nos entediam: não haveria saída do estado de exceção, não haveria modo de libertar-se do sistema capitalista, não haveria mais sentido nas lutas concretas. Bróder, sai dessa bad trip!

Desde 15 de maio, centenas de milhares de jovens, nem-tão-jovens e aposentados, de desempregados, subempregados, precários, estudantes e revoltados em geral, enfim, uma multidão de desejos e amores irrompeu nas ruas e praças na Espanha, para exigir democracia real já! Com epicentro nas praças Portas do Sol (Madrid) e da Catalunha (Barcelona), o tumulto se disseminou em mais de 100 cidades espanholas e já alcança outros países do Velho Mundo.

Repetindo uma tendência histórica do século VIII, — quando os primeiros muçulmanos do norte da África atravessaram o Mar Mediterrâneo, — o ímpeto revolucionário dos árabes inundou a península ibérica. De forma semelhante, a revolução se concretizou com um novo modo de sentir, uma mudança de percepção que circula e faísca irrefreavelmente, agitando uma geração que o espetáculo procura sedar todos os dias. Como nas revoluções árabes,ela se desenrola numa mistura de desobediência civil e passeatas, turbinada pelas novas mídias e redes sociais.

A mobilização na Espanha nos últimos dias repercute o dezembro quente italiano, a marcha dos 400.000 em Londres e as recentes conflagrações na Grécia contra a bancocracia. Não há demandas precisas. Parece que a convergência está num desejo de viver noutro mundo, noutro modo de produzir e relacionar-se. Um que não seja nesse sistema vicioso em que poucos políticos, banqueiros e empresários vampirizam o trabalho vivo dos muitos.

Romantismo antissistema? dissolução das grandes narrativas? demasiado genérico?

Esse desejo central pode parecer vago, mas é nisso mesmo que reside a força das revoluções árabes e da onda européia de protestos. Coalhadas dos grupos e discursos mais diversos, torna-se difícil enquadrar e debelar as manifestações. Quem não lembra a angústia da ditadura egípcia ao não encontrar interlocutores entre os revoltosos na Praça Tahrir? Quando, no auge da insurreição, tentava um meio de negociar uma saída reformista, doando os anéis para manter os dedos? Na ocasião, nenhuma instância de representação emergiu das redes em movimento, e isso garantiu que suas demandas fossem mais longe que os prognósticos mais otimistas (e delirantes).

Na Europa, não há um Mubarak ou um Zine Ben-Ali, algum símbolo claro para canalizar o descontentamento, mas existem a classe política e os bancos. Alvo da maioria dos discursos, os europeus simplesmente querem outra coisa além disso. Eis uma percepção bastante aberta e ampla contra “tudo o que está aí” (como diria Leonel Brizola). O desencanto levou-os a contestar inclusive o processo eleitoral (na Espanha, três partidos dividem entre si o poder do estado, um tipo de comodato ideologicamente pastoso). De que adiantam campanhas onde os partidos e candidatos se limitam a repetir bordões com as palavras cidadania, social, humano etc? ou então promessas genéricas para um grupo, uma região, uma causa? Multiplica-se a impressão que as eleições estão se tornando rituais melancólicos: nos restringimos a escolher quem vai decepcionar nos próximos quatro anos.

Todo esse trabalho da multidão não vem não só como resposta à ainda-mais-uma-crise do capitalismo — que, desde 2008-09, vem impondo medidas de austeridade às políticas públicas. Talvez tenham chegado à conclusão, num raciocínio mais ou menos articulado, mais ou menos consciente, que, no fundo no fundo, não exista uma crise do capitalismo, mas que o capitalismo é a crise, — depende dela e só pode funcionar com ela. Em suma, os pobres pagam o pato e os ricos recebem “ajudas públicas” e é assim mesmo. Enquanto isso, a “culpa” é atribuída ardilosamente ao “custo social” e aos “gastos públicos”, isto é, aos pobres, os que trabalham para que tudo funcione. Essa narrativa enviesada tem servido para fortalecer uma direita chauvinista, ressentida e racista, cada vez mais despudorada na sua agenda excludente, contra imigrantes e precários.

Nesse aspecto, a esquerda da Islândia teve o enorme mérito de ser a primeira a claramente recusar e conseguir vencer as “medidas emergenciais”. Nessas horas, elas costumam aparecer na boca de “especialistas” da tecnocracia dirigente, sendo então divulgadas ad nausea pelos meios de comunicação. Porque, na verdade, essas “soluções de contingência” constituem o cerne do capitalismo atual, onde estado e mercado fazem tabelinha ao redor da insegurança do trabalho. Noutras palavras, privatizam o ganho e socializam a perda, concentram a riqueza e distribuem a pobreza, particularizam a bonança e universalizam a crise.

Basta: quer-se democracia real já, quiçá além do estado e do mercado. Se a luta é contra a corrupção, esta não configura alguma exceção ou acidente a ser corrigidos, em busca de um capitalismo mais sustentável ou humano, mas a regra mesma das dinâmicas de representação e exploração do trabalho. Afinal, o capitalismo consiste na corrupção sistematizada.

Aqui no Brasil, a grande imprensa não divulga as multidões na Europa. Se acaba divulgando, — porque até a imprensa internacional começou a cobri-las e é preciso macaquear,— não vacila em encaixá-las em narrativas comportadas, descontextualizando o movimento, escondendo o seu devir revolucionário, a sua pertinência para todos. Foi assim com a Praça Tahrir, as ocupações de Wisconsin e a rebelião de Jirau, — de que pouco ouvimos falar na TV e jornalões. Pois a grande imprensa sabe que, ao mostrar a verdadeira face da revolução, incentivará as pessoas a tomar as praças daqui.

Podemos aprender com a revolução 2.0 em Roma, Túnis, Tahrir, Atenas e Puertas del Sol, nessa dinâmica expansiva tão contagiante e alegre. Aprender como uma cacofonia dos insatisfeitos, vozes dispersas pelo tecido social, convergem na polifonia das ruas e praças. Fora da lógica da representação, todos e cada um exprimem a potência de quem não se conforma em viver subjugado e improdutivo, sem perspectivas para crescer e desenvolver-se. Diante de um arranjo político surdo e autoritário, e cada vez mais intolerante, não dá pra continuar sentado na p0ltrona ante a TV. É preciso sair de casa e determinar-se a exercer um papel ativo, junto de tantos cidadãos tratados como massa de manobra, como meros eleitores e consumidores. Porque a rua é nossa. É tudo nosso.

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Um comentario para "As revoluções árabes na Espanha"

  1. renato machado disse:

    Os movimentos sociais dos indignados com o capitalismo está apenas começando. Está também claro como bem explica o texto quem são os inimigos e que o capitalismo é a própria crise e só pode se alimentar dela.

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