Moniz Bandeira e a emergência da América do Sul

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Num artigo em Outras Palavras, historiador especula sobre os processos que estão levando a região a deixar de ser quintal dos EUA e buscar influência global

Num cenário internacional repleto de riscos e oportunidades de transformação, é um prazer deparar com textos que iluminam fenômenos geopolíticos relevantes. A revista eletrônica Outras Palavras publica hoje um destes. Num ensaio curto, mas riquíssimo em dados e considerações, Luiz Alberto Moniz Bandeira, um gos grandes mestres da historiografia brasileira contemporânea, lança hipóteses sobre o surgimento da América do Sul como ator político capaz de influir de modo ativo nos assuntos internacionais.

É algo de que de poucos suspeitavam há vinte anos, quando a região parecia cumprir seu destino de quintal dos Estados Unidos. Tornou-se, porém, uma possibilidade cada vez mais real. Basta observar a desenvoltura do Brasil nos temas e fóruns globais, a atuação da Argentina e Venezuela no cenário regional e o próprio recuo de Washington – inclusive junto a aliados tradicionais, como a Colômbia pós-Uribe. Seria pretensioso resumir o artigo de Moniz Bandeira em poucos parágrafos. Vale a pena, porém, ressaltar algumas de suas hipóteses:

1. Para o autor, o grade processo por trás do surgimento de uma América do Sul geopoliticamente ativa é a grande expansão populacional e econômica iniciada do Brasil rumo a seu interior – e, portanto, aos vizinhos hispânicos –, há cerca de 35 anos. Fronteiriço a dez das doze nações sulamericanas, o Brasi passou o século 19 e a maior parte do 20 povoado quase apenas em torno de seu litoral – como nos tempos da Colônia. A partir dos anos 1970, ainda no período da ditadura, inicia-se a busca de espaços rurais e urbanos nas regiões menos ocupadas. Do ponto de vista econômico, ela é atravessada pela tentativa desastrada de construção da Transamazônica. Nas relações internacionais, seu marco é a oposição bem-sucedida, por parte do general-presidente João Baptista Figueiredo, à tentativa de intervenção norte-americana no Suriname, em 1981. (continua)

2. A marcha da sociedade e da economia rumo aointerior leva a diplomacia a desconcentrar-se do Sul e se voltar para o arco de países que se estende da Bolíva às Guianas, abrangendo 80% das fronteiras terrestres brasileiras. Por iniciativa de outro general-presidente, Ernesto Geisel, o embaixador Rubens Ricupero articula, em 1978, a celebração do Tratado de Cooperação Amazônica. Ao mesmo tempo, o fim das ditaduras no Cone Sul reduz as tensões entre o Brasil e Argentina, forte3mente influenciadas pelas rivalidades militares. Os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín articulam no início dos 1980 o Mercosul, que será decisivo para a constituição sulamericana.

3. Nas décadas de 1990 e 2000, há uma crescente tensão entre o esforço para constituir a América do Sul, em váfrias frentes, e a tentativa norte-americana de criar a ALCA, um bloco comercial que desconstruiria a região e reduziria Brasil e Argentina ao que o autor chama de “províncias avançadas do Império”. Por volta de 2002, a situação parece muito favorável aos EUA. Brasil e Argentina enfrentam graves crises financeiras (no segundo caso, com desvastação profunda da economia e condições de vida). Bolívia e Equador vivem a ascensão do movimento indígena (que os governos tentam reprimir cruamente). A Colômbia está virtualmente sob intervenção norte-americana e o Paraguai sofre uma série de tentativas de golpe de Estado. Para o autor, a ideia de viabilidade de continente, como sujeito geopolítico, é susentada então pelo eixo Brasil-Venezuela. Dado curioso: como Bresser Pereira, num outro artigo publicado recentemente, Moniz Bandeira lembra que a aproximação com Hugo Chávez foi consolidada e aprofundada por Lula. Mas seu iniciador for Fernando Henrique Cardoso.

4. Nos anos mais duros, a América do Sul manteve-se ativa ao conseguir resolver por meios pacíficos crises políticas. Brasil e Argentina evitgaram os golpes no Paraguai. Brasília (junto com Washington) agiu para encerrar rapidamente a guerra que irrompeu, em 1995, entre Peru e Equador, envolvendo disputa de fronteiras. Em 2002, FHC articulou com Lula (já eleito, mas não empossado) o fornecimento de um navio de gasolina à Venezuela, para enfrentar uma ameaça de desestabilização de Chávez.

Passada a crise, porém, a construção da América do Sul já não tem caráter defensivo. Brail e Venezuela articulam o financiamento de um conjunto de projetos de infra-estrutura (principalmente energética e viária) que terá grande impacto integrador. A ALCA é liquidada em 2005. Em 2004, constitui-se a União de Nações Sulamericanas, Unasul. Os ventos já sopram em outra direção.

5. Num resgate importante de um passado nem tão próximo, Moniz Bandeira especula sobre a origem das pretensões brasileirask de influir no cenário internacional. Ele as localiza na origem lusitana. Numa hipótese apenas arranhada neste ensaio, mas desenvolvida com riqueza de dados e argumentos em um de seus livros (Brasil, Argentina e Estados Unidos: da Tríplice Aliança ao Mercosul), o historiador sustenta que o Império Brasileiro não foi “um simples sucessor do Estado português”, mas “o próprio Estado português que se trasladou para a América do Sul”, adaptando-se mas conservando “sua constgrução institucional, a hierarquia, as leis civis, os métodos administrativos, o estilo político, o instrumental bélico e diplomático, com experiência internacional e vezo de potência”.

Vale lembrar que o pequeno Portugal foi o primeiro Estado-Nação da Europa a expandir-se além do continente e que já em 1854 um diplomata francês chamava o Brasil de “Rússia tropical”. As pretensões de hegemonia na América do Sul foram presente e explícitas no século 19. Declinaram por algumas décadas após a Guerra do Paraguai (que o Brasil perdeu para a Argentina, na interessantíssima interpretação de Moniz Bandeira), para resssurgir com a industrialização dos governos Getúlio e Juscelino e adquirir força crescente desde então.

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O estudo tem, possibilemente, lacunas. Sua interpretação sobre o papel do governo FHC, na relação com a ALCA, é benevolente demais. Esquece, por exemplo, o afstamento do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que comandava no Itamaraty as críticas aos planos dos EUA. O ensaio, além disso, está sequer menciona a participação da sociedade civil na resistência ao projeto de Washington – algo hoje explicitamente ressaltado tanto pelo próprio Samuel quanto pelo chanceler Celso Amorim. A dimensão ambiental da ação geopolítica também não aparece – uma pena, poruqe o projeto de integração em curso afeta ecossistemas riquíssimos, como Amazônia,Andes e Pantanal; e porque outras formas de integração são possíveis.

Mas a grandeza do texto de Moniz Bandeira está, inclusive, em estimula o debate sobre o que, de resto, seria impossível tratar em apenas doze páginas. A leitura, mais que indispensável, é profundamente estimulante.

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