A imperdível volta de Fernando Morais a Cuba

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Aos 65 anos, o escritor mineiro atinge seu melhor nível formal, numa narrativa cinematográfica – além de impagáveis incursões ao humor, como na caracterização de García Márquez como dublê de diplomata internacional

Por Maurício Caleiro de Cinema & Outras Artes

É uma leitura fascinante a que nos oferece o último livro de Fernando Morais, Os Últimos Soldados da Guerra Fria (Companhia das Letras).

A pretexto de retratar a infiltração de agentes castristas entre as organizações terroristas mantidas, em Miami, por cubanos no exílio, o livro oferece um saboroso painel humano e uma introdução realista ao complicado xadrez geopolítico jogado por Cuba e EUA nos estertores da Guerra Fria.

O resultado é um exame aguçado das relações entre o país caribenho e a então maior potência mundial durante o chamado “período especial”, nos anos 90 – em que, ante o colapso soviético, Cuba teve de se reinventar como atração turística internacional para salvar sua economia.

Apoiado em farta documentação, a obra reconstitui a escalada da violência anti-castrista, baseada em violação sistemática do espaço aéreo cubano (para fins propagandísticos ou por mera provocação) e em ataques terroristas a alvos turísticos, visando espalhar o pânico e minar o fluxo de capital estrangeiro na ilha – tudo sob o silêncio cúmplice dos EUA. (Visto sob a perspectiva histórica pós-11 de setembro, o alerta de Fidel Castro a Clinton de que tais ataques tinham de ser combatidos, pois no futuro qualquer país poderia ser vítima deles, soa não só premonitório, mas como mais uma evidência da leniência dos EUA com sua própria segurança interna).

Ápice formal

Aos 65 anos, o escritor mineiro radicado em São Paulo, autor de best-sellers como Olga (1985) e Chatô, o Rei do Brasil (1994), atinge, em termos formais, seu melhor nível, dotando a narrativa de uma estrutura inteligente, cinematográfica, com um começo arrebatador e uma tensão permanente a perpassá-la – além de impagáveis incursões ocasionais ao humor, como na caracterização pícara de Gabriel García Márquez como dublê de diplomata internacional.

A artificialidade de tais estratagemas, no entanto, jamais se evidencia como tal, encoberta por uma aparência de objetividade jornalística e mitigada por um texto informativo porém escorreito, que flui com rapidez. Não obstante tais qualidades, por diversas vezes a narrativa produz sentidos epifânicos que se projetam para além da superfície do texto.O capítulo em que se fornece um retrato do lúmpen terrorista Cruz Léon a partir de sua obsessão pelo Silvester Stalonne do filme O Especialista (1994) é, a despeito da objetividade do texto, um primor nesse sentido, resultando em um pequeno ensaio sobre a banalidade do mal através da ligação entre a ideologia belicistahollywoodiana, a trip egóica de um jovem segurança de boate e a desfaçatez com que este perpetua, por algumas centenas de dólares, uma série de atentados terroristas – que acabam resultado em dezenas de feridos e na morte do turista italiano Fabio Di Celmo.

Mesmo estudiosos de Cuba familiarizados com os principais livros publicados sobre a ilha em inglês, espanhol ou português terão, através da nova obra de Morais – a segunda sobre Cuba, depois do seminal A Ilha(1976) -, uma visão diferenciada da relação entre o poder castrista, o terrorismo cubano made in Miami e os EUA. Isso se deve, sobretudo, ao acesso privilegiado a fontes cubanas, a entrevistas exclusivas com protagonistas do período e ao tratamento criterioso que Morais dispensa às evidências materiais.

Direitos Humanos

Embora não esteja entre as principais temáticas do livro, o bloqueio dos EUA a Cuba (no período em questão, agravado pelas improcedentes e insensatas medidas de endurecimento impostas por Clinton) evidencia-se, uma vez mais, como um ato covarde contra um país e um povo vítimas de uma privação material longa e despropositada, a qual constitui uma grave violação dos direitos humanos.Que tal constatação não justifica a violação de tais direitos por parte do governo cubano é um fato que não a torna perdoável ou menos grave, ainda mais se se leva em conta o disparate de forças em conflito. Tal assimetria se evidencia a todo instante em Os Últimos Soldados da Guerra Fria, notadamente na diferença de postura de cada um dos dois governos ante os acontecimentos e durante as tratativas diplomáticas.

O autor constrói, assim, de forma indireta, por contraste e sem enunciá-la explicitamente, uma denúncia contra uma das mais perversas manifestações de imperialismo ao final do século XX: aquela que opôs uma então toda-poderosa potência militar e econômica a uma ilhota que ousou livrar-se do jugo das potências capitalistas e adotar o socialismo. Não há como não ter lado nessa história.

Reportagem de fôlego

Além de todos os atrativos que o livro oferece para o público em geral, ele deveria ser adotado e estudado nas faculdades de Jornalismo do país, pois oferece o equivalente a um curso de como pautar,

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Um comentario para "A imperdível volta de Fernando Morais a Cuba"

  1. Lúcia Ribeiro disse:

    Sem surpresa, o livro trata dos “podres poderes” dos EUA e da máfia anticastrista. A surpresa está em conhecer os detalhes dos modos operacionais, mas não surpreende sendo obra de Fernando Morais. Confirma o quão são pobres os poderes de quem, como governantes dos EUA (presidentes, senadores, etc.), não toma atitude contra o crime organizado por ser capaz de atrair grande número de votos. Cuba não ocupou o espaço americano para agredir e hoje é vítima; sua “espionagem” consiste em esclarecer o quanto os cubanos são desrespeitados em seu próprio território. Esses ‘cubanos de Miami” continuam servindo a Batista.

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