"Cachoeira": como esquema operava (e Procurador-Geral se omitia…)

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Em dois textos breves e densos, Luís Nassif narra ligações perigosas do bicheiro com construtora Delta e revista Veja, além da estranhíssima atitude de Roberto Gurgel

Por Luis Nassif, em seu blog

I. Coluna Econômica de 9/5

Pelas primeiras avaliações dos parlamentares que compõem a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) funcionava assim a associação criminosa entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e a construtora Delta.

1. A Delta se habilitava a uma licitação na qual houvesse garantia de aditamento do contrato (isto é, de reajuste posterior do contrato).

2. Tendo essa garantia, apresentava um preço imbatível, muitas vezes inexequível. No caso do aeroporto de São Paulo, por exemplo, o maior lance foi de R$ 280 milhões. A Delta apresentou uma proposta de apenas R$ 80 milhões.

3. Ganhava a licitação e depois aguardava o aditivo. Enquanto isto, a empresa ficava sem caixa para bancar seus fornecedores – de peões de obra a vendedores de refeições e cimentos. Aí entrava Cachoeira garantindo o capital de giro da empresa com dinheiro clandestino, do jogo. Ou com o fornecimento de insumos, através de empresas laranjas. Estima-se que o desembolso diário do bicheiro fosse de R$ 7 milhões, mais de R$ 240 milhões por mês.

4. Quando vinha o aditivo, a Delta utilizava o recurso – legal – para quitar as dívidas com Cachoeira, através das empresas laranja. Era dessa maneira que Cachoeira conseguia legalizar o dinheiro do jogo.

Quando algum setor relutava em fazer o aditivo, Cachoeira recorria ao seu arsenal de escândalos e chantagens, valendo-se da revista Veja.

Foi assim no episódio do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte). Aparentemente houve um conflito entre Cachoeira e o diretor Luiz Antonio Pagot. Providenciou-se a denúncia, destinada apenas a derrubar as resistências de Pagot. Como dizia um bom observador das cenas brasilienses, Cachoeira pretendeu assar o porquinho e acabou colocando fogo na choupana.

O que era para ser um alerta para Pagot coincidiu com a ação do governo de demitir a diretoria do DNIT.

O rastreamento das ações de Cachoeira pela CPMI se concentrará nos aditivos contratuais. E também nos pagamentos efetuados pela Delta a fornecedores. A partir daí será possível identificar o enorme laranjal que constituía o esquema Cachoeira, assim como os esquemas de corrupção nos órgãos contratantes.

Outro trabalho será identificar as reportagens da revista que serviram aos propósitos de Cachoeira. No caso da propina dos Correios, por exemplo, sabe-se que o grampo foi armado entre Cachoeira e o diretor da revista, com vistas a expulsar um esquema rival dos Correios. Detonado o esquema, o próprio Cachoeira assumiu o novo esquema, até ser desmantelado pela Polícia Federal.

Em todo esse processo, foi crucial a ligação do bicheiro com a revista. Foi graças a ela que Cachoeira conseguiu transformar seu principal operador político – senador Demóstenes Torres – em figura influente, capaz de pressionar a máquina pública em favor do bicheiro. E foi graças a ela que intimidava recalcitrantes na máquina pública.

Ontem O Globo saiu em defesa da Veja, com um editorial em que afirma que “Civita não é Murdoch”. Referia-se ao magnata australiano Rupert Murdoch, cujo principal jornal, na Inglaterra, foi flagrado cometendo escutas ilegais para gerar reportagens sensacionalistas.

Em uma coisa O Globo está certo: Murdoch negociava os grampos com setores da polícia; já Roberto Civita negociou com o crime organizado.

II. Coluna Econômica de 13/5

O Procurador Geral da República Roberto Gurgel deve explicações ao país. Mais do que nunca, deve explicações. Duas explicações, aliás.

A primeira sobre os motivos que o levaram, em 2009, a abortar a Operação Las Vegas, da Polícia Federal.

A operação investigava o jogo de bichoem Goiás. Precisou ser interrompida quando as escutas identificaram conversas do senador  Demóstenes Torres e do governador de Goiás Marconi Perillo. Como possuem foro privilegiado, só poderiam ser grampeados com autorização do STF (Supremo Tribunal Federal).

O pedido foi encaminhado pelo Juiz de Primeira Instância e pelos responsáveis pela operação a Gurgel. Recebendo, cabia-lhe dois caminhos: ou arquivava ou dava seguimento.

Não fez uma coisa nem outra. Não encaminhou e, a pedido da própria Polícia Federal, também não arquivou. Sentou em cima.

A explicação de Gurgel não convenceu um especialista sequer. Alegou ele que não encaminhou a denúncia para permitir que as investigações fossem aprofundadas. Ora, se pretendesse aprofundamento das investigações, teria solicitado à PF.

Não o fez. Criada meses depois do congelamento da Las Vegas, a Operação Monte Carlo surgiu em decorrência de investigações do Ministério Público Estadual de Goiás, não de providências solicitadas por Gurgel.

Com chuvas de críticas sobre ele, Gurgel encontrou o pior álibi possível: atribuiu as críticas às pessoas e partidos envolvidos com o “mensalão”.

Trata-se de uma manobra primária, de politizar uma discussão técnica para evitar explicações impossíveis, indigna de um Procurador Geral, que deveria desqualificar as críticas com argumentos consistentes. O único a endossar essa farsa foi o Ministro Gilmar Mendes, do STF, useiro e vezeiro na arte de politizar temas jurídicos.

Com o julgamento marcado para os próximos dias, o “mensalão” já está decidido – seja qual for a sentença final. Gurgel já escreveu seu parecer, os ministros já firmaram sua convicção, não há nada que possa ser feito.

Entre seus críticos existem parlamentares de vários partidos, analistas de várias linhas.

Ninguém coloca em dúvida a honestidade de Gurgel. Mas sua isenção está sob suspeita, sim.

Nos últimos anos denunciou Ministros como Fernando Pimentel, do Desenvolvimento, e Orlando Silva, do Turismo, mesmo dispondo de poucos elementos de acusação. No caso de Orlando Silva, baseando-se exclusivamente em uma reportagem da revista Veja, cheia de incorreções.

Em contrapartida, recusou-se a denunciar Antônio Palocci – sob suspeita de enriquecimento ilícito – e o senador Demóstenes Torres. Não por coincidência, ambos foram essenciais na sua recondução ao cargo de Procurador Geral, o primeiro atuando junto ao governo, o segundo junto à oposição.

O Ministério Público Federal é uma organização modelar, um órgão republicano por excelência. Hoje em dia sua imagem está ameaçada, por culpa do seu Procurador Geral.

Não é caso de ser convocado a dar explicações à CPI. Mas o Ministério Público precisa demonstrar que os princípios de transparência pública se aplicam a ele também. O Conselho Nacional do Ministério Público tem o dever de cobrar explicações plausíveis do PGR.

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4 comentários para ""Cachoeira": como esquema operava (e Procurador-Geral se omitia…)"

  1. Cascata
    Ao contrário do que se diz, é fácil prever o resultado de uma CPI como a do Cachoeira. Basta somar os diferentes vetores conflitantes, pesando as forças das representações e seus elos diretos ou indiretos com os assuntos abordados. No caso específico, essa dinâmica tende a zero.
    Os adversários de Sérgio Cabral, Demóstenes Torres, Marconi Perillo e Agnelo Queiroz (aqui inclusos alguns inimigos da Copa do Mundo) apostam nas punições dos respectivos desafetos, mas não se incomodariam em abandonar o projeto pela absolvição dos próprios aliados. A oposição vê na Delta um atalho para demolir a imagem empreendedora do governo Dilma. O Planalto responde acenando com a esquecida Privataria Tucana. Todos brincam de guerrear, enquanto os bodes expiatórios são preparados para o sacrifício no momento oportuno.
    Parte do PT quer iluminar os bastidores nebulosos do escândalo midiático em torno do chamado “mensalão”, para refrear a ideologização dos votos no STF. Quanto mais aposta nos questionamentos ao procurador-geral Roberto Gurgel, no entanto, mais atiça o corporativismo e o senso de autonomia do Judiciário. Que, por sua vez, possui diversos instrumentos persuasivos contra a exaltação eventual de deputados e senadores.
    Outra ala da esquerda luta para atingir o tal Policarpo Jr e a Veja, seu panfleto reacionário, criando precedente para elucidar os abusos da imprensa corporativa nos últimos anos. Mas a blogosfera está redondamente enganada se pensa que os nobres congressistas abraçarão uma cruzada brancaleônica pela “murdochização” de Roberto Civita. A mídia graúda sabe o que está em jogo ali e mostra que não poupará esforços para desmoralizar os trabalhos da Comissão caso ela afronte certos limites. E, convenhamos, é bem fácil desmoralizar nossos egrégios representantes.
    Faltam poucos meses para o período eleitoral sepultar de vez a CPI e as expectativas que ela criou. Algo que seus protagonistas aceitarão com um suspiro aliviado e a certeza do dever cumprido.
    http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/

  2. Mauricio Rocha disse:

    Governo e oposição se merecem… ambos são criminosos. Desculpe mas "politizar uma discussão técnica" é exatamente o que o PT faz quando trata do assunto mensalão, pois reduz a mera disputa direita X esquerda um caso de corrupção extremamente "técnico". O grande truque desses caras é nos manter, graças a mídia e a pesquisas fraudadas, num sistema basicamente bipartidário. Nos sentimos obrigados a escolher entre PT ou PSDB, ou direitalha X esquerdalha ou Lula X FHC como preferir. País do Marketing.

  3. Ainda tem gente que acha que esse Procurador Geral não precisa ir a CPI, "hora bolas", sua omissão simplismente mudou o resultado de uma eleição, se ele não se omite, o cenário político de Goiás com certeza seria outro.

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