Psiquiatria: braço armado da opressão cotidiana?

Medicalizar o sofrimento é naturalizar a vida sob o capitalismo. Como se houvesse droga para o trabalho precário ou a impossibilidade de cultivar vínculos. Mais que resistir, há que converter a raiva em força política – e reencantar as lutas sociais

Imagem: Paula Scotter/the Perspective Project
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Por Alberto Cordero Martín em El Salto | Tradução: Maurício Ayer 

“A psiquiatria é o braço armado de um estilo de vida.” Assim diz a resenha de uma reportagem sobre o aumento do consumo de drogas psicotrópicas na população espanhola de “psiquiatrizadxs em luta”. Retomo a força dessas linhas para escrever estas breves palavras sobre psiquiatria e política.

A psiquiatria é política, ninguém que tenha lido essas palavras anteriormente deve estranhar isso. Às vezes vou a colóquios de saúde mental e alguém exclama “aqui estamos nós falando de saúde mental, não de política”, mas a verdade é que sempre que falamos de saúde mental estamos falando de política. A indiferença calculada que povoa estas palavras só serve a quem tem o poder de manter os despossuídos sob sua bota, não a quem quer o poder de mudar tudo. Abre caminho para a reação e o ódio que se acomodam na violência tornada habitual. É só quando vemos os botões negros florescendo em uma arena de luta abandonada, quando somos tomadas por uma mistura incendiária de medo e raiva.

Aí está, também, nossa melhor arma. Uma raiva que abra fissuras em todas as fibras da credulidade. Nossos corpos – os corpos das amarradas, das supermedicadas, das encarceradas – contam histórias, murmuram contos de batalha e resistência, são profundamente políticos. Gravaram em nós a sangue e fogo que a psiquiatria é política.

Apresentam-nos fóruns, notícias, artigos de opinião (de opinião!) que nos dizem que os muros que encerram as ilusões, os desejos, a insônia, onde confluem o castigo e a dor e uma constante ruptura dos nervos, de onde a alegria não brota, mas foge… não é algo político. Que encher minha vizinha do quinto andar que tem uma ordem de despejo com ansiolíticos não é nada mais que ciência, também o fato de que minha avó tome um rivotril antes da ceia de natal não é porque a instituição familiar é um tentáculo capitalista que sufoca a privacidade, não, é porque você tem um desequilíbrio e viemos aqui para fazer ciência. Porém, sua hegemonia começa a se desgarrar, o saber profano que habitava as sombras das contradições cotidianas nos fez repolitizar a tristeza e entender que o assédio a nossas vidas é a política da psiquiatria. Algumas de nós entenderam que nossas tristezas nada mais são do que política tornada carne, alma, sofrimento psíquico.

A psiquiatria é o braço armado de um estilo de vida, aquele que nos diz que nossos problemas se devem a não sei o que da dopamina no seu cérebro – o que isso teria a ver com você trabalhar em empregos precários por jornadas desumanas e ainda não conseguir o bastante pra viver! O que teria a ver com o fato de que a predação se tornou um hábito e flui através do tecido social, calando fundo até o osso. A psiquiatria é também o braço armado desse estilo de vida que nos deixa sem tempo, que nos rouba o tempo, no qual é impossível gerar vínculos com os quais enfrentar a dor e com os quais cuidar de nós mesmas de forma horizontal. A saturação da vida cotidiana torna impossível levantar-se no campo de batalha sem cafeína pela manhã e dormir sem o diazepam que à noite desfaz a meada de nervos que emaranhou a hostilidade do dia a dia. É também o braço armado que nos obriga a dar mais quando é impossível, a sobreviver quando a vida se torna escura e tensa, quando nos esquecemos de viver para seguir em frente em uma vida destinada ao crescimento. Sedimenta-se sobre isso uma vida desencantada, na qual só há espaço para a mera resistência.

Mas o desencanto também flui entre nós outras com essa tarefa de repolitizá-lo e por aí também passa a tarefa de reencantar as lutas sociais. Sabemos que nem todos os muros resistem ao passar do tempo, que os transbordaremos tarde ou cedo. Que falta apenas um grupo que exploda isso pelos ares. Que, da mesma forma que a psiquiatria é seu braço armado, sabemos que a angústia é perigosa e, como diria o SPK [Sozialistisches Patientenkollektiv], não hesitaremos em fazer da doença uma arma.

Sabemos que aqueles que diziam que “a psiquiatria não é política” queriam que seguíssemos queimadas, mas não ardendo de raiva. Sabíamos que não é que a psiquiatria não fosse política, é que eles não queriam nos ver politizadas e contra eles. Hoje, porém, alguns tomam partido por dinheiro e outras o fazemos por amor. Não querem que conjuremos, que confabulemos, mas continuaremos conspirando nas sombras e nos organizando para que eles terminem na lata de lixo da história. Eles sempre criaram seu mundo. Agora o nosso está em guerra aberta para criar outro mundo em que não brinquem com nossas lágrimas.

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Um comentario para "Psiquiatria: braço armado da opressão cotidiana?"

  1. hans drager disse:

    Para mim, é incompreensível o motivo pelo qual você usa o link da Wikipédia como fonte de informações sobre o SPK, quando há uma fonte autêntica de informações sobre o SPK, ou seja, sua página inicial multilíngue http://www.spkpfh.de . Será que isso talvez tenha a ver com o fato de que no SPK NÃO foi feita nenhuma distinção entre as chamadas doenças mentais e as doenças físicas? Há até uma seção em português https://www.spkpfh.de/index_portugues.htm : ela diz, entre outras coisas:
    Lançar uma pedra em um centro de comando do capitalismo é uma coisa. Mas transformar uma pedra renal em atividade é o mesmo. Nós temos que proteger-nos contra pedras renais! Doença como uma arma revolucionária. A ação tem que ser desenvolvida a partir do sofrimento. É o médico que tem que ser atacado, ele é mais tangível que um míssil. A doença, no entanto, também pode liquefazer a pedra, e pode corroe-la. O calor coletivo e a febre impõem-se contra a força da natureza potencializada, seja a forma a qual ela adote. O alvo do ataque: o médico, ele é o centro de comando. A guerra contra os médicos é o principal ponto estratégico, sem esta guerra contra os médicos nunca pode haver nenhum fim da opressão e nenhum início da libertação em nenhum movimento de libertação, em nenhum! Sem esta guerra contra os médicos nunca pode haver utopatia, isto é: a espécie humana.

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