Pobres Criaturas: A civilização que pesa em nós

Uma análise do filme – com 11 indicações ao Oscar – a partir de Freud e Marcuse. A história de uma Frankenstein é o ponto de partida para refletir sobre desejos e pulsões humanas – e questionar estruturas de poder impostas pela sociedade e a tecnociência

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O filme Pobres Criaturas (2023), dirigido por Yorgos Lanthimos, mergulha em uma narrativa surreal e provocativa que aborda a interseção entre desejo, controle e identidade revelando as profundezas da psique humana. Recebendo 11 indicações ao Oscar, através da jornada de Bella Baxter, interpretada de forma cativante por Emma Stone, o filme expõe as complexidades do amadurecimento feminino em meio a uma sociedade opressora e limitadora.

A trama se desenrola em torno de Bella, uma figura cuja singularidade transcende os limites da compreensão convencional. Ela é uma amálgama de elementos díspares, desde sua própria constituição física até suas interações sociais. Sob a manipulação meticulosa do médico Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), ironicamente apelidado de God (Deus em inglês), Bella é apresentada ao mundo com um corpo modificado, uma maravilha da ciência que abriga em si o cérebro de seu próprio filho. Essa extraordinária peculiaridade física não apenas evidencia a natureza bizarra e surrealista do universo do filme, mas também serve como uma poderosa metáfora para a eterna batalha entre desejo e controle.

Ao carregar consigo o cérebro de seu filho, Bella encarna a fusão de duas existências, duas identidades distintas unidas em uma única entidade física. Essa fusão não só desafia as noções convencionais de individualidade e identidade, mas também lança luz sobre a complexa interação entre maternidade, autonomia e sacrifício. A presença do filho dentro dela não é apenas uma peculiaridade física, mas uma manifestação vívida do conflito interior de Bella entre suas próprias vontades e desejos e as expectativas impostas sobre ela pela sociedade e pelas figuras de autoridade masculina.

Assim, a metamorfose de Bella não é apenas uma transformação física, mas também uma jornada de autodescoberta e empoderamento. Sua existência transcende os limites da normalidade e da conformidade, desafiando as convenções sociais e culturais que tentam enquadrá-la em padrões predefinidos. Nesse sentido, a peculiaridade física da protagonista não é apenas uma característica estranha do enredo, mas sim um elemento central que alimenta a narrativa mais ampla do filme sobre liberdade, individualidade e a busca incessante pelo verdadeiro significado da existência.

Nesse contexto, a análise psicanalítica de Sigmund Freud e a obra Eros e Civilização de Herbert Marcuse emergem como lentes valiosas para compreender as camadas de significado presentes em Pobres Criaturas. Freud, com sua teoria do inconsciente e dos impulsos primitivos, lança luz sobre a dualidade de desejos e pulsões que permeiam as ações dos personagens. Bella, em sua busca pela autonomia, confronta não apenas as restrições externas impostas por figuras como o Dr. Baxter e seu marido Alfie (Christopher Abbott), mas também os conflitos internos entre seus próprios impulsos e as expectativas sociais.

Desde os primeiros momentos do filme, somos apresentados ao embate entre desejo e controle, uma dinâmica que permeia a jornada de Bella, uma figura que encarna a luta pela autonomia em meio a um mundo que tenta restringir seus movimentos. Nesse contexto, podemos enxergar a influência da teoria freudiana sobre o conflito entre o id, o ego e o superego. Bella, com seu desejo livre e desinibido, representa o id, a parte instintiva e impulsiva da psique, enquanto figuras como Dr. Godwin Baxter e Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) representam o superego, impondo restrições e normas sociais à protagonista.

A relação de Bella com seu criador, Dr. Baxter, é especialmente interessante à luz das teorias freudianas. Ele não apenas a molda fisicamente, mas também tenta controlar seus desejos e experiências, refletindo o conceito de complexo de Édipo e a figura paterna como agente regulador do desejo. A constante luta de Bella contra esse controle simboliza a busca pela emancipação e pela realização dos desejos reprimidos. Essa dinâmica também explora temas abordados por Freud em O Mal-Estar na Civilização, investigando as tensões entre impulsos instintivos e as exigências sociais. A figura de Dr. Baxter, moldando o corpo de Bella, ecoa a opressão institucional, evidenciando o embate entre desejo e controle presente tanto no filme quanto na obra de Freud.

Além disso, a obra dialoga com as ideias de Herbert Marcuse sobre a sociedade repressora e a necessidade de uma revolução erótica para romper com as amarras da civilização. Em Eros e Civilização, Marcuse argumenta que a repressão dos impulsos naturais pelo sistema social resulta em uma sociedade reprimida e alienada. Em Pobres Criaturas, vemos essa repressão manifestada nas tentativas de controle sobre Bella por parte dos homens em sua vida, representando as estruturas de poder que buscam subjugar os desejos individuais em prol da conformidade social.

Além disso, Marcuse oferece uma perspectiva crítica sobre a sociedade repressiva e suas estruturas de controle. O filme retrata vividamente a tentativa constante de homens como Dr. Baxter, Duncan e Alfie de subjugar e dominar Bella, refletindo os mecanismos de opressão presentes na sociedade patriarcal. A luta de Bella pela emancipação e autodeterminação é, portanto, um ato de resistência contra essas forças coercitivas.

A jornada de Bella, marcada por descobertas e confrontos com o controle externo, reflete a necessidade de uma libertação erótica, onde o desejo não seja mais reprimido, mas sim celebrado como uma força vital e criativa. A abordagem surreal e provocadora de Yorgos Lanthimos nos convida a questionar as normas estabelecidas e a buscar uma nova forma de existência, onde a liberdade individual e a expressão autêntica dos desejos sejam valorizadas.

A estética do filme, marcada pela combinação de elementos surrealistas e fantásticos, reforça a atmosfera de estranheza e alienação que permeia a jornada de Bella. A direção de arte, o figurino e a trilha sonora contribuem para criar um mundo visualmente impactante, onde o grotesco e o belo se entrelaçam de forma intrigante.

Em suma, Pobres Criaturas é uma reflexão profunda sobre os complexos temas do desejo, controle e identidade. Ao explorar esses aspectos, a obra não só nos convida a refletir sobre o impacto da civilização sobre os indivíduos, mas também nos proporciona uma experiência cinematográfica envolvente e provocativa. No final das contas, destaca-se como uma narrativa que ultrapassa os limites do gênero, oferecendo uma visão penetrante e fascinante sobre os meandros da condição humana.


Referências bibliográficas:

Freud, S. (1930). O mal-estar na civilização. In Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. XXI). Imago Editora.

Freud, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Standard Edition, 4 e 5.

Marcuse, H. (1955). Eros e Civilização. Beacon Press.

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