Memórias coletivas diante do Brasil em cacos

Reconstrução democrática exige valorizar história e patrimônio cultural, propõe ciclo de diálogos. Mais que inventários, caminho é conectar pessoas, territórios e resistências. Mirar os saberes ancestrais e reverter desmonte do Iphan serão cruciais

Arraial Afro-Julino da Comunidade Jongo Dito Ribeiro, na região de Campinas. Imagem: Fabiana Ribeiro
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2º ciclo dos Seminários Cultura e Democracia, realizado entre 12 e16/9 pelo Instituto Cultura e Democracia, Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo. Assista aqui. Na mesa Memória, história e patrimônio cultural, participaram Jurema Machado, Alessandra Ribeiro, Luiz Fernando de Almeida e Márcio Tavares.

Vivemos em uma democracia sob constante ameaça. Uma democracia na qual os legados da escravidão ainda não foram resolvidos, as medidas de reparação não foram compreendidas e as ditaduras são frequentemente louvadas. Diante deste contexto, a segunda mesa dos Seminários Cultura e Democracia alertou sobre a importância da memória, da verdade e da justiça, como elementos-chave para a retomada democrática do país.

Vivemos um experimento de destruição, apontou a arquiteta Jurema Machado, ex-presidenta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Uma volta da sociedade ao estado de natureza, das pulsões, da morte, do desapego às leis, onde cada um pode agir como quiser. Mas não era esse o país que imaginávamos – aliás, ninguém imaginava.

O Brasil era um país idealizado nacional e globalmente. A própria UNESCO iniciou um estudo, nos anos 1950, sobre a construção do Brasil como uma república de diferentes raças em união fraterna. Mas as conclusões do estudo apontaram um país bem diferente: desigual e racista. Nas palavras do escritor Mia Couto: o Brasil era mais sonho do que realidade.

Mas o que o patrimônio histórico tem a ver com tudo isso?

O conceito de patrimônio surge durante o governo Getúlio Vargas, como uma ideia única de construção da identidade nacional. Com o passar dos anos, o conceito foi sendo amadurecido e desconstruído, resultando na criação do Iphan, órgão vanguardista que amplia a ideia do que pode ser preservado. Para além de monumentos, entram no rol da preservação as paisagens, os terreiros de candomblé, as culturas chamadas de patrimônio imaterial, as “memórias dolorosas’ (como os campos de concentração ou nossa versão análoga, o Cais do Valongo). Não podemos negar que tal ampliação, aliada ao arcabouço de normas de proteção, sob um olhar vigilante do Ministério Público, ajudou a construir uma ideia de país menos idealizada.

O desafio que fica é como construir políticas de preservação do patrimônio que vão além de listas e inventários e que se conectem com o território, com as pessoas, com a vida nas cidades, com o meio ambiente.

A História está em disputa

Se é verdade que a História é um campo de batalha, a Comunidade Jongo Dito Ribeiro nos revela que o conceito de patrimônio imaterial é resistência, já que desloca a materialidade da parede para o conhecimento do humano, para os sujeitos.

A historiadora e urbanista Alessandra Ribeiro, mestre da Comunidade, explica que o Jongo é uma forma de expressão e sociabilidade que utiliza o toque de tambores e a dança. Engloba um conjunto complexo de saberes afrodescendentes que remonta ao período da exploração cafeeira e da cana-de-açúcar no Sudeste do país. Em 2005, o Iphan concedeu ao Jongo o título de patrimônio cultural do Brasil.

“Ainda que alguns membros mais velhos do Jongo se perguntassem ‘tá, temos um título… e o que fazemos com isso?’, o que reflete o pensamento de um povo por séculos oprimido e que não o deixou de ser milagrosamente por causa dessa decisão, no geral, ficamos todos muito felizes, porque reconhecer o Jongo como patrimônio imaterial é trazer para o sujeito a importância de sua salvaguarda – de seus saberes e vivências. E essa é uma inversão muito bonita e muito potente, pois reafirma ser possível construir uma política pública por meio das pessoas e dos saberes. É na roda de Jongo que o mundo gira!”, analisa Alessandra.

Para o arquiteto Luiz Fernando de Almeida, que também já foi presidente do Iphan e coordenador nacional do Programa Monumenta, a questão do sujeito é central, já que reafirma o papel da participação democrática, afinal são os sujeitos que criam visões coletivas capazes de influenciar a ação do Estado. Dessa forma, o passado é instrumento de reflexão do presente e construção do futuro. E o patrimônio, seja ele material ou imaterial, deve ser um instrumento de reflexão para se pensar esse futuro.

“O patrimônio representa uma pauta, e devemos nos perguntar que pauta de país estamos construindo. Representa um país amplo? Sim, mas, por outro lado, as políticas de patrimônio não são iguais em todo o Brasil. Existe um desequilíbrio regional”, aponta Almeida. “O patrimônio é ainda muito ausente em localidades de baixa densidade populacional, por exemplo. É preciso deixar claro que onde há gente, há território e onde há gente e território, há patrimônio – e as políticas precisam reconhecer e olhar para isso”.

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