Mel e luz: palavras para o futuro

A riqueza (ainda subaproveitada) do Teatro Slam. Incisivas, mas sem perder o humor, duas poetas-atrizes narram perrengues de artistas e trovam a mulher negra; em gritos e sussurros, denunciam o estupro e os sonhos roubados nas quebradas

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Por Eleilson Leite, na coluna Literaturas dos Arrabaldes

As poetas slammers Luz Ribeiro e Mel Duarte estrelaram um espetáculo cênico juntas. Trata-se de Stand up poetry – palavras para o futuro, com direção da atriz Naruna Costa, do Espaço Clariô, do grupo Clarianas e também da Globo. A apresentação que ficou em cartaz apenas um final de semana de setembro no Itaú Cultural, em São Paulo, chama a atenção pelo ineditismo, originalidade e pelo talento dramático das poetas, ambas com experiências cênicas, mas que agora têm o talento de atrizes devidamente valorizado. Em três apresentações, Mel e Luz levaram mais de 700 pessoas ao teatro e prometem seguir apresentando o espetáculo numa temporada que pode se estender até 2023. Conhecidas nacionalmente como poetas e também por trabalhos em publicidade, não faltarão convites para as duas excursionarem pelo Brasil. Tendo a luxuosa direção de Naruna, essa procura será intensa.

Stand up Poetry certamente estará nas principais listas dos melhores do ano. O espetáculo é denso tanto pelo conteúdo literário quanto pela performance das atrizes-poetas. Com cenário despojado em função da estética do slam que rejeita ornamentos, Luz e Mel se valem apenas de um figurino que tem poucas, mas certeiras variações, além de projeções de vídeo na tela. Os solos são intercalados com performances em dupla. As duas atuam juntas para abordarem as questões relativas ao trabalho de poetas como os reiterados pedidos de atuação sem a devida remuneração, o perrengue da pandemia, o protagonismo da mulher negra de quebrada e o racismo. Juntas, também, elas dão uma bem-humorada aula sobre o slam: origem, formato, regras, papel do jurado e da plateia.

Separadamente, as atrizes abordam situações reais engraçadas de suas vidas, mesmo quando elas tratam do racismo, machismo e assédio sexual. Luz é a primeira a fazer o solo sob às luzes da ribalta. Com muita desenvoltura e o flow que lhe é característico, ela discorre com leveza e sarcasmo sobre sua religiosidade. Nascida evangélica, cresceu temente à Deus, literalmente. Ainda jovem, casou-se com um sujeito sob à bênção do pastor. O casório pouco durou, pois, o cônjuge se mostrou um crápula. Ela se livrou do traste e se aproximou do candomblé, estimulada por um amigo. Sob essa religião de matriz africana ela tocou sua trajetória na qual não faltaram problemas, mas seguiu abençoada pelos orixás e feliz da vida, a ponto de disputar com o marido quem dá a melhor caixinha de natal para os trabalhadores da coleta de lixo.

Já Mel falou de duas coisas que lhe renderam inúmeros constrangimentos e situações engraçadas também. Um foi seu apreço pela maconha. Desde a adolescência ela já era usuária do bagulho e quando fez 18 quis sair de casa na busca por mais liberdade para fumar seu baseado. Certo dia, ao rever a família, descobriu que a mãe também gostava da cannabis. Seu vínculo com a matriarca de quem herdou toda africanidade que lhe veste ganhou um grau de afeto ainda maior, o que explica a reiterada menção que faz à figura materna no espetáculo e na vida. Seu pai, o renomado grafiteiro Ozi, também é citado com devoção.

O segundo tema abordado por Mel é o seu nome. A poeta passou toda a sua existência explicando que não se chama Melissa e que não é a Mel Lisboa, famosa atriz global que nenhuma semelhança física tem com ela, mas que frequentemente é alvo dessa incômoda associação. São inúmeras as situações embaraçosas que ela relata, desde a resistência do escrivão em registrá-la com tal nome até as cantadas baratas que sofre devido à abundância de adjetivos relacionados ao néctar que lhe serve de nome.

Os solos das atrizes acabam por justificar o nome do espetáculo como stand up, pois é cômico e, embora sejam histórias reais e pessoais, guardam uma boa margem de improviso e elas exploram bem essa possibilidade interagindo com a plateia com muita habilidade. Mas a parte engraçada fica por aí. Os dois terços seguintes do espetáculo giram em torno da poesia de ambas e dos conteúdos que exploram na literatura que produzem. Mel e Luz seguem leves e soltas na apresentação, no diapasão do slam: assertivas, porém sem perder a ternura. As duas atuam mais juntas na parte final da apresentação com destaque para a reflexão que fazem sobre racismo que pesa, especialmente, contra a mulher preta. Os solos passam a ser a apresentação de poemas. Entre vários falados, há dois que são clássicos: Verdade seja dita, de Mel Duarte e Menimelímetros, de Luz Ribeiro.

São dois poemas que foram produzidos na efervescente cena do slam, por volta de 2016, quando o cenário político no Brasil estava tenso em virtude do golpe parlamentar que sofreu a presidenta Dilma Rousseff. O impeachment só foi possível devido a ascensão de forças políticas de extrema direita que passaram a tomar as ruas desde junho de 2013, num movimento que desembocou na eleição do atual (e ainda) presidente da República cinco anos depois.

Mel e Luz estavam surgindo naquela época, mas ganharam muito destaque rapidamente devido à qualidade de suas composições e a força de suas performances — algumas contam com milhões de visualizações na internet. Participavam de inúmeros slams e tinham um para chamar de seu: o Slam das Minas que replica em SP uma experiência semelhante surgida no Distrito Federal em 2015. O coletivo que tem antologia publicada e muito prestígio na praça, é também composto pelas poetas Pam Araújo e Carol Peixoto.

Os dois poemas acabaram entrando na prestigiada antologia As 29 poetas hoje, organizada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda, publicada em 2021 pela Companhia das Letras, obra na qual as Mel e Luz participam com quatro poemas cada uma. Mel já havia publicado Verdade seja dita em Negra Nua e Crua (Editora Ijumaa, 2016) e na sua antologia Colmeia ( Editora Casa Philos, 2021). Já Menimelimetros foi publicado pela Luz Ribeiro no livro Estanca – Espanca (Edições Quirino, 2017). Trata-se, portanto, de poemas com ampla difusão em livro, além da disseminação viral na Internet e viraram hits das autoras.

Verdade seja dita

O poema de Mel Duarte que virou um manifesto contra o estupro surgiu, pelo que me consta, no Slam da Resistência na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, ainda em 2015. No ano seguinte ela participou com o mesmo poema do Rio Poetry Slam que rolou na FLUPP – Festa Literária das Periferias no Rio de Janeiro. Tido como o maior campeonato de slam da América Latina, o evento consagrou a autora com o primeiro lugar. Há uma terceira performance do poema na internet, mas com o Slam das Minas numa apresentação na Casa das Rosas durante o campeonato de slams que acontece no Encontro Estéticas das Periferias, na edição de 2018. Ou seja, Verdade seja dita rodou bastante na internet e sua versão falada é muito mais potente do que a escrita. Isso é muito comum na poesia composta para slam. Não por acaso, Heloisa Buarque de Hollanda colocou links para que os leitores tenham contato também com os poemas em vídeos, acessando-os por meio de QR Code impresso no livro.

Verdade seja dita é para se falar alto e, em certas partes, gritando. E assim a autora o faz. A voz é a parte do corpo que ela mais usa, diferente de Luz Ribeiro em Menimelimetros, como veremos adiante. O poema é dividido em três partes como etapas de uma luta. A poeta se dirige a um estuprador: “você que não mova sua pica para impor respeito a mim” é o segundo verso do poema. Ela se refere ao violador ora com repúdio: “Canalha!”; ora com repulsa: “Carniça!”. Entre um tom e outro há um recuo reflexivo: “(…) em todos os lugares do mundo/ mulheres sofrem com seres sujos/ que utilizam da força quando não só, até em grupos/ praticando sessões de estupros que ficam sem justiça”.

Na parte final do poema, ela desloca o eu lírico para a primeira pessoa do plural em clamor: “até quando teremos que suportar/ mãos querendo nos apalpar”. Na última estrofe ela desenha o perfil político do estuprador: “filhos dessa pátria/ mãe gentil?”, sugerindo se tratar dos autodenominados patriotas de verde e amarelo que ocupam a Avenida Paulista e a orla de Copacabana em patacoadas cívicas. No verso seguinte, a referência é ainda mais direta: “enquanto ainda existirem Bolsonaros”, se referindo, na época ao então deputado federal que fez apologia do estupro num embate com a também deputada Maria do Rosário, um episódio bem conhecido do famigerado presidente.

Mel termina o poema com os versos: “sou filha da luta, da puta/ a mesma que aduba esse solo fértil/ a mesma que te pariu”. Entendi aqui que ela quis dizer que, tendo ela a mesma origem de seu algoz, pode muito bem aniquilá-lo. Ou seja, ela insinua um ato de vingança contra um violador, gesto que fica ainda mais explícito na performance falada. No espetáculo, porém, ela troca o nome de “Bolsonaro” por “capitães do mato”, algo que me surpreendeu. Primeiro porque, com essa troca, ela introduz um elemento de racismo que não há diretamente no poema; segundo porque o contexto político de eleição em que vivemos seria propício para colocar o presidente na mira da ira da poeta e da plateia presente.

Melimelímetro

O poema de Luz Ribeiro fala dos conflitos a que estão submetidos os meninos que transitam nos becos e vielas das periferias e favelas. Podemos lê-lo como uma versão em poesia falada da canção Meu Guri de Chico Buarque, atualizada e com lugar de fala. É um poema narrativo com traço épico. É longo também: 16 estrofes, mas que são passíveis de serem faladas nos três minutos como determina a regra do slam.

Melimelimetro é experimental a começar do próprio título que é um neologismo que faz a junção de menino com milímetro numa referência ao diâmetro do cartucho utilizado pela Polícia Militar (9 milímetros) que virou também sinônimo de arma. Há várias passagens em que a autora faz trocadilhos: “nunca tiveram reforço – de ninguém/ mas reforçam a força e a tática/ do tráfico mais um refém”. Em outra passagem ela diz: “é chamado de função/ queria casa mas é fundação”, numa referência à Fundação Casa onde são internados os meninos que cometem atos infracionais em medida de privação de liberdade.

Como no poema de Mel, Luz se dirige a alguém, porém, o tom é diferente. Ela se expressa com ironia e desdém para um suposto pesquisador acadêmico: “quando ceis citam quebrada nos seus tcc’s e teses/ ceis citam as cores das paredes natural tijolo baiano?”. Buscando seguir esses “meninos mapa”, ela imprime um ritmo acelerado e tenso ao poema como se estivesse em meio aos estreitos corredores comuns em favelas. Esse ritmo leva a própria poeta a se movimentar em cena. No espetáculo, Naruna encontrou uma solução muito interessante, ao colocar Luz falando o poema andando pelos corredores da plateia até voltar ao palco de onde ela parte no início da performance.

Na metade do poema, o pesquisador sai de cena. Ela segue discorrendo sobre os meninos que trocam o “peixinho” (pipa pequena) pelo “aviãozinho” numa referência ao trabalho reservado aos garotos na cadeia de produção e circulação de drogas na quebrada. Diz que a ausência de ônibus para o centro da cidade é uma demarcação: “isso parece um sinal”. E fala dos sonhos roubados dos meninos: “um pirulito, um picolé/ um pai, uma mãe/ um chinelo que lhe caiba nos pés”. “É tudo coisa de centímetros”, afirma no verso que inicia a estrofe. E aí pode estar a chave de leitura dos versos finais do poema.

Em mais um experimento com a textura das palavras, ela faz a seguinte elaboração poética: “seus centímetros não suportam 9 milímetros/ porque esses menino/ esses menino sentem metros”. Se associarmos esses versos finais com os da segunda estrofe, podemos lê-lo como uma resposta: “[você] sabe de quantos metros ele despenca/ quando uma bala perdida o encontra?”. Luz Ribeiro consegue conferir a um poema de slam uma complexidade interpretativa, mostrando que nesse gênero de poesia também cabe experimentação sintática e morfológica.

Teatro Poesia

A realização do espetáculo Stand up poetry – palavras para o futuro responde a uma expectativa que o slam gera sobre o potencial performático da poesia. A performance é algo intrínseco ao slam e há um dado muito relevante que acentua essa dimensão cênica da disputa de poesia falada. O slam surgiu no Brasil dentro de um teatro. O primeiro torneio foi o ZAP – Zona Autônoma da Palavra, em dezembro de 2008, na antiga sede do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos no bairro da Pompeia, zona oeste de São Paulo.

A responsável por esse pioneirismo é a atriz-mc Roberta Estrela D’alva, que é uma inspiração para toda a geração que se formou desde então. Além de atriz, Roberta é produtora e ativista. Ela criou o Slam Br que é o campeonato nacional que ajudou a expandir o slam pelo país. A estimativa é de que existam mais de 300 comunidades de slam no Brasil. Roberta também é pesquisadora. Ela fez um mestrado publicado em livro pela conceituada Editora Perspectiva: Teatro Hip Hop e deve estar em vias de concluir um doutorado, se já não o fez.

Luz e Mel fazem esse tributo a Roberta, mais de uma vez citada no espetáculo. Elas acabam por seguir a tradição iniciada pela fundadora do ZAP. A fronteira entre o slam e o teatro é muito tênue, e eu arriscaria propor que o espetáculo não deveria ter a denominação de stand up. Poderia ser Teatro Poesia ou Poetry Theater se quiser manter a grafia em língua inglesa. Stand up é o que menos tem na apresentação e reduziria a dramaturgia que é um componente muito relevante da obra.

O fato é que Stand up poetry é um êxito e valorizou a teatralidade do slam. Invertendo os passos da Roberta Estrela D’alva, Luz e Mel, de poetas passaram a ser atrizes. Assim como Roberta é atriz-mc, elas são atrizes-poetas. Conseguiram dar um passo a mais em suas carreiras já bem-sucedidas. Juntas, elas se reinventaram quando a pandemia deixou quase tudo em suspenso. Elas se projetaram para o futuro. Parafraseando o subtítulo do espetáculo, mel e luz são palavras para o futuro.

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