Onda de greves na China: outra receita contra crises

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Uma série de paralisações sacode a grande fábrica do mundo, recebe surpreendente apoio do Partido Comunista e revela: redução de direitos não é a única atitude diante das turbulências financeiras

Quase avassaladora, nas décadas de 1980 e 90, a noção de que Europa, América do Norte e Japão constituem um “primeiro mundo” a ser admirado e imitado sofreu contínuo desgaste, no início do século 21. Primeiro, China e Índia tornaram-se os novos polos do dinamismo econômico. Depois, nações como Brasil, Rússia, Irã, Turquia, Indonésia, África do Sul, Egito, Venezuela e Argentina ampliaram influência na geopolítica de suas regiões (reduzindo o peso das antigas “potências globais”) ou reivindicaram espaço (caso dos chamados BRICs) na cena mundial. O universo da cultura foi sacudido pela repercussão do cinema iraniano e chinês; da música do Brasil e da África; da culinária mexicana, indiana ou tailandesa.

Nesse exato instante, parece estar em curso uma nova ruptura, talvez ainda mais significativa. Diante da crise financeira e seus desdobramentos, a Europa está se curvando às políticas de redução dos direitos sociais e corte de serviços públicos que costumavam ser impostas aos países do Sul. Surpresa ainda maior: a periferia resiste e, em alguns casos, adota rumo oposto. É o que está acontecendo com os trabalhadores chineses.

Uma onda de greves agita, desde maio, a “grande fábrica do mundo”, o país de onde vem, provavelmente, a maior parte dos aparelhos elétricos e eletrônicos que você usa. Na província costeira de Guangdong, um grande polo industrial e exportador, houve 36 grandes paralisações, entre 25 de maio e 12 de julho. Embora disputas trabalhistas na China sejam mais comuns do que se pensa, a nova onda caracteriza-se pela duração mais longa das greves e pelo fato de visarem multinacionais — particularmente, as japonesas.

Os protagonistas são trabalhadores e trabalhadoras muito jovens, quase sempre migrantes oriundos de regiões rurais mais pobres (uma comparação com as primeiras greves do ABC paulista, no final dos anos 1970, é tentadora…). Há 120 milhões deles, na indústria chinesa. Mas quem cruza os braços agora é uma geração distinta da que foi atraída em massa para os polos industriais costeiros, há vinte anos. Frequentou escolas técnicas, tem acesso à internet e celulares, aspira à vida (e ao consumo) urbanos.

“Os chefes nos mandaram voltar às máquinas, mas ninguém obedeceu”. No dia seguinte,

o sindicato oficial tentou impor a disciplina, também sem sucesso

As paralisações são pacíficas, mas corajosas. “Assumimos o turno no horário normal, mas ao invés de trabalhar caminhamos pela fábrica, por oito horas”, contou ao The Guardian (ver matéria em nosso dossiê), no início de julho, Zhang Liwen, uma migrante de 21 anos que participou da greve na Denso, uma indústria que fornece autopeças para Honda e Toyota. “Os chefes nos mandaram voltar às máquinas, mas ninguém obedeceu”. No dia, seguinte, ela relata, também o sindicato oficial — na China, eles adotam postura disciplinadora — pressionou pelo fim do movimento. Foi inútil.

“Ninguém nos conta quem está liderando, porque a chefia descobriria e aplicaria punições. Ninguém também nos disse que haveria greve, até o momento em que ela começou”, relatou ao Guardian uma colega de Zhang. Mais do que qualquer liderança, o que certamente impulsiona as paralisações é o sucesso dos que lutam. Em alguns casos, os grevistas conquistaram aumento de 47% nos vencimentos. Diversos municípios elevaram o salário-mínimo local em 20%.

Pede-se mais autonomia sindical. O direito de eleger os líderes de fábrica constou de diversas pautas de reivindicação. Mas não parece haver nada comparável às revoltas operárias da Polônia dos anos 1980, que se voltaram contra o Estado “socialista” e deflagraram uma espiral de pressões políticas que levaria ao fim do regime. Ao menos até o momento — e aqui está a segunda grande novidade — o Partido Comunista, para o qual as revoltas sociais são normalmente tabu, está estimulando discretamente as greves.

Embora sem se referir ao movimento de forma direta, o jornal oficial Diário do Povo afirmou em editorial, numa das edições de julho, que o país precisa “ajustar-se a um novo mercado do trabalho”. Já o primeiro-ministro Wen Jiabao foi explícito. Ao visitar, no mesmo mês, o canteiro de obras de uma nova linha de metrô na capital, Beijing, ele dirigiu-se a operários migrantes e afirmou: “O trabalho de vocês é glorioso e deve ser respeitado por toda a sociedade. Os migrantes precisam ser atendidos e protegidos. O governo e a população deveriam tratá-los como seus filhos”.

O tom paternalista sugere que o primeiro objetivo de tal postura é tático. O governo não quer, é claro, tornar-se alvo dos trabalhadores em luta contra empresas multinacionais. E descobriu, como destaca a revista Economist (também no dossiê), que já não precisa temer a fuga dos investidores. São eles que hoje necessitam estar próximos tanto da mão-de-obra quanto do imenso mercado chinês…

Beijing não parece disposta a seguir as receitas ortodoxas, segundo as quais

o caminho para relançar a economia é reduzir o preço do trabalho e tornar o país mais competitivo

O segundo objetivo da liderança chinesa é mais profundo e está intimamente relacionado ao debate sobre as saídas para a crise global. Ao contrário do FMI e dos governos europeus, Beijing não está disposta a seguir as receitas ortodoxas, segundo as quais o caminho para relançar a economia é reduzir o preço do trabalho e tornar o país mais competitivo.

O caminho chinês parece ser o inverso. O governo convenceu-se de que a economia mundial poderá viver um período relativamente longo de crescimento reduzido ou retração. Aposta que seria tolo continuar cumprindo, nesse novo cenário, o papel de fornecedor mundial de produtos industriais baratos e trabalho precário. Vislumbra outro projeto, e nisso pode estar em sintonia com os grevistas. Busca estimular o consumo interno, para sustentar a produção.

Construir um novo cenário implica, em primeiro lugar, promover certa distribuição de riqueza. Nas últimas décadas, o crescimento da economia chinesa esteve quase inteiramente baseado em altíssimas taxas de investimento pelas empresas e Estado. A participação dos salários na renda nacional caiu de 61% para 53%, entre 1990 e 2007. A produção podia ser escoada graças ao enorme espaço que os produtos baratos made in China consquistaram no mundo.

Agora que o mercado internacional está encolhendo, é preciso elevar o consumo dos chineses. Nos dois últimos anos — antes das greves, portanto — os salários médios já cresceram em torno 16% ao ano. Em média, um operário chinês ganha, por hora, pouco mais de 5% dos vencimentos de um norte-americano. Mas esta realidade está se alterando rapidamente, e em algumas regiões do país os salários já são superiores aos pagos na Tailândia e Filipinas.

Os novos tempos significam, também, uma China mais voltada para si mesma. Há, inclusive, razões demográficas para isso. A população chinesa está envelhecendo. A faixa etária entre 15 e 29 anos, na qual são recrutados os operários, já começou a diminuir, e definhará mais, nas próximas décadas. É cada vez mais difícil encontrar novos braços nas áreas industrializadas — o que aumenta o poder de luta dos trabalhadores. Em busca de mão-de-obra, as empresas estão se deslocando para o interior.

Por trinta anos, as estrelas da economia foram três regiões costeiras: a da própria capital, Beijing, ao norte; no centro, o delta do rio Yangzi, onde está Shangai; ao sul, a região de Guangdong.  Nos últimos anos, porém, a vedete passou a ser Changqing. Está às margens do rio Yangzi, como Shangai — mas a 2,5 mil quilômetros da costa. É o centro de uma região de 28 milhões de habitantes, cujo PIB creceu 19% nos últimos doze meses. Tem atraído grandes empresas nacionais (como a automotiva Chang’an, que fabrica sozinha metade da produção  de veículos do Brasil) e a HP (que instalou na cidade dez linhas de produção de laptops).

Busca-se, por um lado, mão-de-obra mais dócil que os inquietos trabalhadores do litoral. Calcula-se que haja, no interior, um exército de reserva de cerca de 70 milhões de pessoas. Mas ninguém vai a Chongqing para exportar: a infraestrutura viária ainda é débil, e tornaria os custos exagerados. . As empresas desejam, acima de tudo, estar em contato com um mercado consumidor pobre porém muito afluente — e que reúne 1/5 da população do planeta…

Não é apenas um movimento das forças do mercado. O governo age, há algum tempo, para reduzir a precariedade no trabalho. Ainda vigora um sistema semifeudal de passaportes internos (hukou), que reduz os direitos dos que migram. Para ter acesso aos serviços públicos (inclusive Saúde e Educação para os filhos), eles devem abrir mão da gleba de terra que têm no interior. Considerada útil pelas autoridades, nos tempos de mão-de-obra abundante (por reduzir as reivindicações às autoridades urbanas), a legislação é um entrave à formação de trabalhadores estáveis e qualificados. Foi ligeiramente atenuada em 2008. Os migrantes conquistaram direitos em relação a seus empregadores, um fator que teria contribuído de modo significativo para a atual onda de greves.

Não parece que a China esteja buscando uma alternativa ao capitalismo. Mas há beleza e potência

em qualquer projeto rebelde — e as greves parecm abrir portas para o futuro

Os dados disponíveis não sugerem que a China esteja buscando uma alternativa ao capitalismo. Tanto o tipo de indústria que ela continua desenvolvendo quanto sua infraestrutura (Chongqing é conhecida como a “cidade vertical”, por seus arranhacéus, que imitam os norte-americanos; o aeroporto está sendo quadruplicado; um dos grandes projetos em andamento é uma autoestrada de alta velocidade, até Shangai) sugerem que o país busca um lugar ao sol, na ordem vigente. Se possível, o melhor lugar ao sol… E os trabalhadores que cruzam os braços reivindicam, basicamente, consumir o que produzem.

Mas há beleza e potência em qualquer projeto rebelde. Que atitude abre portas para o futuro? A dos governos europeus, incapazes de defender o Estado de bem-estar que foi por décadas exemplo de relações sociais menos selvagens? Ou a dos operários migrantes chineses, dispostos a desafiar o papel que a ordem internacional lhes pretende impor?

No plano prático, o significado da onda de greves é igualmente importante. No início do ano, tornou-se evidente que as turbulências financeiras haviam recomeçado, e apareciam sob a forma de crise fiscal dos Estados. O velha receita de reduzir direitos e investimentos públicos ressurgiu. Foi aplicada, em diferentes graus, na Grécia, Espanha, Portugal, Irlanda, Reino Unido, França, Alemanha [leia, a respeito, “Outra vida para Drácula?”, de Ignacio Ramonet em Outras Palavras]. Afirmou-se, mais uma vez, que era a “única saída”. É história da carochinha, mostram agora as greves vitoriosas na China e as políticas de redistribuição de renda e fortalecimento do mercado interno, que lá estão sendo ensaiadas.

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5 comentários para "Onda de greves na China: outra receita contra crises"

  1. Rodolfo disse:

    A China é realmente intrigante. Tenho a impressão que tanto a esquerda e a direita, cada uma a seu modo, se enganam quando taxam a China atual como ”capitalista”.
    Adam Smith em Pequim…

  2. Andréia Tamanini disse:

    Excelente análise e perspectiva dos fatos!
    De fato, o governo da China, ele mesmo, resolvendo puxar o coro dos seus descontentes trabalhadores, consegue, de um lado, tirar o seu da reta no que diz respeito a macular-se ao arcar, para o Estado, com o peso de disciplinar de cima para baixo sua economia, que pretende mostrar-se aberta, moderna e atraente para o investimento estrangeiro; e, de outro, encarregar — ou, pelo menos, incluir — as próprias empresas estrangeiras o fomento do crescimento de seu mercado interno. Muito interessante, realmente. Obrigada pelo texto!

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