Educação pública de coturno

Em Goiás, escolas da rede estadual são “militarizadas” por meio de parcerias com a polícia, onde se exige até “contribuição voluntaria” dos alunos. Seria esse o projeto de Jair Bolsonaro para a educação? Professora alerta para os riscos de só “ensinar a obedecer”

.

Miriam Fábia Alves entrevistada por Luís Eduardo Gomes

Do pouco que se sabe do projeto de educação do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para a educação — além da perseguição a professores supostamente doutrinadores –, desde a campanha ele defende a implementação da educação militarizada na rede pública. Como isso será feito, ainda é uma incógnita, se ampliando a rede de colégios militares administrados pelo Exército — como o Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) — ou se incentivando a militarização das redes estaduais. Este último um processo que já vem ocorrendo há pelo menos duas décadas no estado de Goiás, tendo sido acelerado nos últimos anos e ampliado para outros estados.

Para entender como tem funcionado as escolas goianas sob administração da Polícia Militar local, o Sul21 conversou na última semana com a professora Miriam Fábia Alves, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFGoiás) e integrante da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Ao lado da professora Mirza Seabra Toschi, da Universidade Estadual de Goiás, e da pesquisadora Neusa Sousa Rêgo Ferreira, ela é autora do artigo “A expansão dos colégios militares em Goiás e a diferenciação na rede estadual”, publicado em julho de 2018 pela revista acadêmica Retratos da Escola.

Miriam, que esteve em Porto Alegre na última semana para participar de uma banca de mestrado e de seminários na Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que as escolas militares estaduais têm sido utilizadas pelo governo goiano praticamente como uma peça de propaganda: são mais limpas, estão com a infraestrutura em dia, os alunos têm notas melhores.  “Isso mexe com a comunidade. Em Goiás tem muita gente querendo mais escola militar. Do outro lado, o que não se conta é o que se faz para chegar a isso”, diz.

Ela destaca que os colégios militares cobram uma contribuição voluntária dos alunos e têm recebido verbas prioritárias do governo estadual, além de os cargos de chefia ocupados por militares possuírem remuneração muito acima daquela destinada para os profissionais da rede de educação em posições análogas.

As primeiras seis escolas estaduais militares foram criadas em Goiás em 2001, na gestão do governador Marconi Perillo (PSDB). As próximas dezoito escolas estaduais militares só seriam criadas em 2013, quando o tucano estava no primeiro de seu segundo ciclo de dois mandatos. Até 2018, foram criadas mais 42 escolas do tipo, totalizando o atual número de 60. Quando é que mais se criaram escolas? No ano que antecede a eleição. Em 2013 e 2017″, salienta Miriam.

Atualmente, essas escolas não fazem mais um processo seletivo por meio de prova, como já fizeram no passado, tendo passado a adotar o sorteio. Mas Miriam afirma que acaba ocorrendo um processo de seleção pelas exigências feitas aos alunos. “Contribuição voluntária é a palavra usada, mas a gente tem vários relatos de que essa contribuição não é tão voluntária assim. O uniforme é muito caro”, diz.

Regimento das escolas goianas prevê uniformes militarizados e que alunos batam continência | Foto: Divulgação

regimento dos Colégios de Polícia Militar de Goiás prevê até sete variações de uniforme que os alunos devem utilizar, a depender da situação. A primeira variação, por exemplo, consiste em uma boina marrom, túnica branca, camisa branca manga longa, gravata marrom vertical, cinto marrom de nylon, calça marrom, meias na cor preta, sapatos pretos — para meninas, determina saia-calça marrom (com comprimento à altura dos joelhos), sapato social preto (feminino), gravata marrom de laço, meia de seda cor da pele. O regimento é claro ao dizer que todas as peças deverão ser adquiridas “pelos próprios interessados”, sendo o não comparecimento com o uniforme em condições adequadas considerado uma transgressão.

O regimento desses colégios determina também que uma série de funções de comando devem ficar a cargo de membros da Polícia Militar do Estado de Goiás, como o diretor, que recebe a alcunha de Comandante e deve ser, de preferência, um tenente-coronel, o sub-comandante — cargo a ser ocupado por um major –, o chefe da Divisão Disciplinar, o chefe da Divisão de Ensino e o chefe da Coordenação Pedagógica. Cabe ao chefe da Divisão Disciplinar, por exemplo, determinar, por meio de um parecer, se um aluno poderá ou não ser rematriculado em uma escola a partir de seu comportamento disciplinar e ético.

Escolas estaduais, por lei, não podem expulsar alunos, então a punição máxima que eles podem receber é uma suspensão de dois dias, mas os estudantes são avaliados durante o ano letivo a partir de avaliações periódicas de bom comportamento ou transgressões. Entre essas transgressões estão atitudes como mascar chiclete e não portar a gente escolar, consideradas como leves, até “promover ou tomar parte de qualquer manifestação coletiva que venha macular o nome do CPMG”, considerada grave.

“Qual é a educação que nós queremos? Queremos formar soldados? Essa é a ideia da escola militar. Ela ensina a obedecer, a ser Polícia Militar. Mas a própria polícia tem muitas dúvidas, por exemplo, em relação ao tal do voto de obediência que eles fazem”, questiona a professora.

Confira a seguir a entrevista com Miriam Fábia Alves.

Miriam Fábia Alves tem pesquisado o processo de implementação de escolas militares em Goiás | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Goiás tem sido um laboratório de práticas a serem exportadas para o resto do Brasil. Ensino militar nas escolas, a cessão da administração escolar para Organizações Sociais (OSs). Qual é o impacto dessas medidas na educação do estado?

Miriam Fábia Alves: Eu gosto de brincar que a gente está colecionando lixo tóxico e ainda exportando para outros lugares. Esse tema das escolas militares em Goiás é muito sensível, porque você tem diferentes olhares sobre isso, é uma questão que mexe com muita gente. Quando nós, os educadores, compreendemos eu preciso de uma pessoa de fora, um externo, para administrar a escola, isso traz um problema muito grave. É para mim mais grave ainda quando eu digo: ‘Polícia, entra e toma conta da gestão da escola’. Quem não entende a educação acha que a gestão é algo descolado do fazer escolar. Não, a gestão escolar é uma atividade meio para aquilo que é educação, para aquilo que é o educar.

Goiás tem feito experiências maléficas neste aspecto. Na minha avaliação, aquilo que não deveríamos fazer com a educação. A tentativa de implementação das organizações sociais na gestão das escolas já deriva desse modelo de militarização, que você precisa ter um outro fazendo a gestão da escola. Então eu posso contratar uma empresa. Goiás trabalha um pouco nisso. Não deu certo nas escolas de educação básica a implementação das OSs. No entanto, em Goiás, as escolas técnicas do estado foram entregues às OSs e está o caos.

Sul21 – Quais as consequências dessas medidas?

Miriam: Vamos pensar a militarização. Eu tenho trabalhado muito com esse tema. Orientei uma mestranda que acabou a dissertação em novembro passado, uma profissional da rede estadual que trabalha com as escolas militares, acompanhou a implementação e fez a sua pesquisa sobre isso. Quais são as consequências de você entregar para a Polícia Militar a gestão da escola? As propagandas do governo têm dito que é tudo de bom. Por quê? Porque seria uma escola que funciona, com disciplina, os alunos respeitam os profissionais, têm boas notas no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]. Essa é a propaganda. E precisa ficar muito claro, isso mexe com a comunidade. Em Goiás tem muita gente querendo mais escola militar. A comunidade quer essa escola.

Do outro lado, o que não se conta é o que se faz para chegar a isso. Primeiro, nós temos no País a polícia que mais mata jovem. A minha pergunta é sempre assim: como que uma polícia que mata tanto vai cuidar da educação desses mesmos jovens? Eu estou falando da escola pública, quem está na educação pública brasileira de educação básica são os mais pobres. Aqui tem uma questão que para mim é muito grave. Outra coisa das consequências é: qual é a educação que nós queremos? Queremos formar soldados? Essa é a ideia da escola militar. Ela ensina a obedecer, a ser Polícia Militar. Mas a própria polícia tem muitas dúvidas, por exemplo, em relação ao tal do voto de obediência que eles fazem, o preço que se paga por ser policial e ter que obedecer. Imagina numa escola, na formação da juventude. Não estou falando do adulto, que é outra coisa. Estou falando dessa formação básica, fundamental. Você forma um indivíduo para obedecer.

Para além disso, essa escola é seletiva. Ela cobra uma mensalidade. Contribuição voluntária é a palavra usada, mas a gente tem vários relatos de que essa contribuição não é tão voluntária assim. Então, quando eu cobro alguma coisa, eu já tiro da escola uma parcela da população que não pode pagar. O uniforme é muito caro. Essa é uma escola que exige um domínio do corpo dos adolescente, meninos e meninas, que é um negócio extremamente conservador. O que pode e que não pode. O regimento da escola é para a gente voltar aquilo que tem de mais conservador na educação. Isso tem um impacto também em como nos compreendemos o papel do estudante. Isso tudo também altera a relação da escola com os profissionais. Se nós lutamos arduamente, desde a redemocratização, para a gestão democrática, para a eleição dos diretores, para a eleição dos coordenadores, agora eu coloco um comandante, e é esse termo que se usa, e ele administra a escola com a lógica militar.

Sul21 – É feita uma seleção de alunos?

Miriam: Tínhamos. Uma parte das vagas era destinada aos filhos dos militares. E aí tinha prova. Só que isso foi gerando uma série de problemas e a escola aderiu ao sorteio.

Sul21 – O colégio militar do Exército tem uma seleção. Implementarem uma seleção também nas estaduais?

Miriam: Nós tivemos problemas com a seleção e agora estão implementando o sorteio. Porque essa é uma escola pública estadual, não pode negar o acesso. Essa é uma luta histórica. O direito à escola é um direito dos adolescentes e jovens. O Ministério Público interviu para que se fizesse sorteio. Mas, mesmo assim, você já seleciona os alunos que entram naquela escola e quem pode estudar ali.

Sul21 – Essas escolas têm funcionado como uma peça de propaganda?

Miriam: A gente publicou um texto no ano passado em que discutimos justamente isso: como a lógica é perversa e cria uma diferenciação na rede. A escola militar é o que todos querem. E as outras? As outras estão abandonadas em infraestrutura, em contratação de professores, de profissionais efetivos, nas condições de funcionar. Enquanto as militares contam inclusive com facilitação da parte do governo estadual, que concede, por exemplo, uma reforma necessária que uma escola da rede gasta um século para fazer. Eles conseguem. Além disso, eles têm o dinheiro da contribuição voluntária, por exemplo, para cuidar da hotelaria da escola. Então, a escola militar sempre está bem-cuidada, a quadra está coberta, as salas funcionam, a tecnologia e o laboratório funcionam. Claro.

Outra coisa que é importante ressaltar, dentro da escola vai um conjunto grande de profissionais para fazer a gestão dessa escola. Eles colocam para dentro um conjunto de militares que vai cuidar da disciplina, que vai cuidar da administração da escola, todos eles com remuneração. Também a gente cria uma diferenciação muito grande na forma de gerir. Eu te pago e você faz o serviço de graça. Como funciona isso? Agora mesmo no Distrito Federal, uma repórter do O Globo me ligou e eu falei para ela: ‘Queria te fazer um desafio, queria que você descobrisse quanto é que os policiais militares e os bombeiros no DF estão ganhando para fazer a gestão da escola?’

Sul21 – Ganhavam quanto?

Miriam: A gente tem as funções comissionadas de diretor e vice-diretor, isso é o que estava na legislação até julho, quando a gente fez a pesquisa. Um diretor da escola militar, o chamado Comandante, ganha por dois turnos mais R$ 3,5 mil [salienta que este número provavelmente já foi reajustado desde o fim da pesquisa], além do salário dele como militar.

Sul21 – E quanto ganha um diretor normal?

Miriam: Uma escola estadual com menos de 150 alunos não concede ao diretor o direito de receber gratificação. O que se paga em função gratificada nas escolas estaduais que têm remuneração para o diretor, condicionada ao porte, ou seja, a quantidade de alunos naquela escola, os turnos que ela funciona, em dois turnos varia de R$ 975 a R$ 1.625. E o cara me ganha três mil e quinhentos contos. Sabe quanto ganha um auxiliar da divisão de ensino, que vem da polícia, R$ 1,4 mil [além do salário como PM].

Sul21 – Esse é um cargo equivalente ao quê?

Miriam: É um cargo de quem ajuda na disciplina dos alunos, olha pátio.

Sul21 – É alguém que sai do serviço policial?

Miriam: Sai do serviço. Convenhamos, para os policiais é muito melhor você cuidar de adolescentes em uma escola.

Sul21 – Os governos de Goiás têm projeto para a educação fora os colégios militares? 

Miriam: Em Goiás, a gente precisa de uma escola que dá certo. É preciso dizer para a sociedade o que eu estou fazendo. E o que está dando certo? Eu apresento a escola militar como uma escola que dá certo, e o resto da rede que se vire. Mas eles têm projeto. Na pesquisa, a Neusa olha como vai mudando o alunado da escola. Ela analisou uma escola do município de Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital, uma cidade bem pobre, com uma condição bem ruim. Muda o alunado, quem estava na escola não fica.

Então, eu atendo um alunado cada vez mais classe média, baixa, mas classe média, que, por exemplo, não tem condição de pagar uma boa escola para o seu filho. Eu faço educação para esse grupo. Para a pobreza mesmo, o projeto de educação é mais aligeirado, não gasta nada, culpabiliza os estudantes, culpabiliza os professores. Eles têm projetos, o que eles querem é manter essa população na condição de desigualdade, acirrando a desigualdade educacional.

Sul21 – O projeto do Bolsonaro, ao defender as escolas militares, é esse também?

Miriam: O Bolsonaro eu não sei se tem projeto. Ele, não. A gente está num momento que se pergunta: O que eles querem? Eu tenho certeza que eles querem fazer terra arrasada porque querem desmontar o pouco que nós fomos conseguindo com muita luta nos últimos anos, com todos os problemas que nós tivemos. Um processo, por exemplo, de ampliação da inclusão, de transparência do gasto público, dos conselhos, dos fóruns, da inclusão nas escolas, de uma valorização dos professores com o piso. Aqui no RS, tem a Agenda 2020 que diz que os professores estão ganhando muito. É absurdo.

Há um processo criminoso do atual governo de deslegitimar o trabalho educacional feito por instituições muito sérias. O trabalho das universidades, das escolas de educação básica, com todos os problemas. Vai ser professor na periferia de Porto Alegre, na periferia de Goiânia ou de São Paulo. Vai entender o que é isso. É criminoso quando o governo joga tudo fora. Porque eu estou comprometendo a formação e educação de uma geração, de duas gerações. Isso é uma coisa que cada vez mais a gente tem que dizer não, que não pode ser assim. E derruba e o que o atual governo quer colocara no lugar? Eu leio os documentos governamentais e não consigo vislumbrar, quais são as metas do governo? Alfabetização acima de tudo e educação domiciliar para 31 mil famílias? Não tem outra coisa. Qual é o plano de governo? Não de discutiu nas eleições. O que será do ensino médio? Eu tenho muitas dúvidas. E as universidades? Pensa a função social da UFRGS, a população que ela atende, a pesquisa que ela produz, as vidas que ela salva no hospital, o que ela desenvolve de pesquisa na área de agricultura. Isso tudo está sendo jogado na lata de lixo como se fosse nada.

Miriam questiona a falta de projeto para a educação do governo Bolsonaro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – E o que vem no lugar?

Miriam: É a minha pergunta. Me conta, cadê, onde eu leio? Não tem nem escrito. E entre o escrito e o realizado tem um caminho imenso. Os caras desconhecem a burocracia de funcionamento das instituições. Então, assim, acho que a gente está num momento que nos deixa com muitas perguntas e eu tenho absoluta certeza que não é a escola militar que vai resolver o problema educacional brasileiro, não é passar nos testes que vai resolver o problema da educação brasileira, ter nota boa no Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes] e no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], não é só ensinando português e matemática, empobrecendo ainda mais a formação daqueles que precisam da escola para ganhar uma formação mais ampliada. Tudo isso está em disputa. Qual é o projeto de educação que nós temos? Que disputa nós vamos fazer? Aí que eu acho que temos que juntar os colegas da educação superior e básica e ir para luta, senão vamos perder tudo. A minha agonia é que vamos perder tudo.

Leia Também: