Dilma apresenta a “Torre das Guerreiras”

Em prefácio para livro de Ana Maria Ramos Estevão, com quem partilhou o cárcere, ex-presidente afirma: “obra narra o trabalho infame dos fascistas voluntários, mas também histórias de rara beleza, de que só a grandeza humana é capaz”

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Por Dilma Rousseff

Dilma Rousseff e colegas de prisão durante a cerimônia de posse em seu segundo mandato, em 2015

Neste ano de 2022, o povo brasileiro retorna às urnas para debater os rumos que deseja para o futuro. Mas, como sempre, as eleições exigem também cuidadosa avaliação do passado, onde repousam os erros que, normalmente, evitamos repetir.

O livro Torre das Guerreiras e outras memórias, de Ana Maria Ramos Estêvão, publicado pela Editora 106 com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, é uma contribuição especialmente franca, íntima e necessária a esse processo.

Presa, torturada e exilada pelo regime militar (1964-1985), a autora nos convida a testemunhar seu monólogo de cura para as “dores congeladas” causadas pela ditadura que se impôs ao Brasil por longos 20 anos, e comungar das feridas persistentes que aquele período deixou em nossa sociedade.

A ex-presidenta Dilma Rousseff, companheira de prisão de Ana Maria durante a ditadura e uma das “personagens” do relato, assina o prefácio do livro, cuja íntegra disponibilizamos aos leitores do Outras Palavras para instigá-los a desfrutar da obra completa. (Fundação Rosa Luxemburgo – Brasil)

Um Passeio pela Memória de Ana Maria

A autora de “A torre das guerreiras”, Ana Maria Ramos Estêvão

Por Dilma Rousseff

Ainda que tenha como tema um período histórico sofrido, de exílios, violência, torturas e perdas humanas, o livro de Ana Maria Ramos Estevão, uma de minhas parceiras de resistência enquanto vivemos intermináveis meses encarceradas no Presídio Tiradentes, em São Paulo, entristece-nos pelas denúncias que voltam à tona, mas não nos deprime. Pelo contrário, consegue ser lírico, de um lirismo improvável, mas que tem o aroma agradável de um relato cheio de sinceridade.

Comove pela honestidade e pela capacidade que a autora tem de, mesmo em meio ao ódio e à brutalidade das torturas com que nós, presos políticos, fomos tratados, encontrar, onde preponderava o sofrimento, pequenas alegrias e motivos para acreditar na humanidade quando a rotina era a banalidade do mal.

Neste livro não há rancor e ressentimento, apenas o desejo de que aquelas tragédias – não apenas a tragédia do país, mas os dramas pessoais a que Ana Maria assistiu e viveu – não sejam esquecidas pelas atuais gerações. Que sejam lembradas sempre para que não se repitam. Como ela mesma afirma, “sinto-me no dever moral de registrar estas memórias, antes que o tempo as apague e não reste nada mais que a lembrança difusa da dor que esta escrita pretende, senão extinguir, ao menos, acalmar.”

Nós, que dividimos a Torre das Donzelas, ou “das Guerreiras”, como Ana Maria decidiu renomear, só temos a agradecer por ela ter adotado a missão de preservar as suas memórias. Parte delas também é nossa. As lembranças deste livro ressaltam e valorizam, em meio à crueldade de uma ditadura que brutalizava suas vítimas, pequenos e grandes gestos de solidariedade e amizade entre militantes muito jovens – tínhamos, a maioria, entre 20 e 25 anos –, todas dispostas a sonhar com outro país e com coragem de lutar por ele.

Com justiça, este livro aponta o dedo acusador também para os que, mesmo sendo civis, participaram alegremente das sessões de sevícias, oferecendo apoio aos torturadores fardados, e que “riam cinicamente enquanto as pessoas sofriam e gritavam. Esse não era o trabalho deles: eram fascistas voluntários”.

Mas também conta a história de rara beleza, de que só a grandeza humana é capaz. “Nunca abrimos mão do riso, da alegria e da civilidade como estratégia de sobrevivência, haja vista que, para garantir o moral elevado, o humor era fundamental. Cantar também era nosso costume. Cantávamos o tempo todo: por tristeza, para avisar das novidades, quando alguém chegava, quando alguém saía. As cantorias estavam sempre presentes”.

Canções que poderiam ser canções de amor, como a de Tânia, que cantava perto da pequena janela para ser ouvida por seu companheiro Gabriel, que, com câncer, estava preso no mesmo local, em cela distante. Todas fazíamos silêncio para que Tânia fosse ouvida pelo marido e, quando, um dia, Ana Maria perguntou por que cantava todas as noites, ela respondeu: “Assim ele me ouve e sabe que estou bem”.

Apesar de pertencer à Igreja Metodista desde menina, onde iniciou sua militância política, Ana Maria, como todas nós, também passou por momentos em que se rendeu ao desabafo do desespero, como quando diz que “na tortura não existe sujeito, ele foi anulado, […] foi rebaixado ao estado de ‘coisa’. […] Deus não existe na tortura, ficamos sós, completamente sós”.

Depois de ter sido barbaramente torturada na Oban e ter passado nove meses na Torre das Guerreiras, a autora deste livro foi presa de novo e ainda sofreu o exílio, durante o qual, pelo menos, teve a alegria de conhecer um ídolo, Paulo Freire, a quem brindou com um jantar tipicamente nordestino.

A brava Ana Maria soube enfrentar o pior, e felizmente está aqui para nos contar, já que muitas não tiveram a mesma chance. Ela explica que “o fio condutor destas memórias é a vida de quem sobreviveu e de quem precisou aprender a mentir para defender a sua vida e a de seus companheiros, mesmo porque, em algumas situações, as pequenas verdades podem ser perigosas”. Sua razão de viver e sua gana de sobreviver ela justifica numa frase que é a perfeita tradução deste livro: “A luta e a esperança, sempre! Viver é muito perigoso, mas é muito bom!”.

Ana Maria não apenas ainda vive como se mantém íntegra, hoje professora da Unifesp e ativista no Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Quem passou pela Torre das Guerreiras foi marcada pelas dores da vida e, claro, pelas imposições do tempo, mas permanecem entre nós o respeito mútuo e o compromisso com a democracia e com a luta por um país melhor.

Boa leitura a todos!

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