Crise global: a alternativa da China e o que ela diz ao Brasil

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Ao investir em infra-estrutura e serviços públicos, e estimular aumento expressivo dos salários, país sugere caminho oposto à “austeridade” europeia.

Por Antonio Martins

Ao escrever, na semana passada, sobre o sistema chinês de trens de alta velocidade, a correspondente do New York Times, Keith Bradsher, não escondeu sua admiração. Apenas cinco anos depois de inaugurada, relatou, a rede já tem quase dez mil quilômetros. Serve mais de cem cidades. O número de passageiros transportados — 54 milhões por mês — já é duas vezes maior que o de usuários dos aviões. As viagens são confortáveis, silenciosas, extremamente pontuais. O serviço atrai tanto executivos quanto operários. O preço das passagens não oscila ao sabor do mercado: políticas públicas definiram que elas deveriam custar, desde o início, no máximo metade das tarifas aéreas. Não sofreram reajustes, desde então. Como os salários industriais duplicaram, o serviço tornou-se cada vez mais popular. Os trens trafegam quase sem assentos vazios. Em Changsha, metrópole emergente no sudeste do país, de onde a repórter escreveu, a estação já tem 16 plataformas, e está sendo duplicada.

Keith não parecia preocupada com o debate de políticas macroeconômicas. Mas seu texto é uma excelente descrição das escolhas que têm permitido à China, há cinco anos, manter-se a salvo crise internacional e executar, de quebra, projetos estratégicos ousados. Vale examinar este movimento, por pelo menos dois motivos: a) ele contrasta com as políticas “de austeridade” que estão sendo adotadas em boa parte dos países ocidentais (especialmente na Europa), com consequências sociais desastrosas; b) ele demonstra que o Brasil não precisará adotar o caminho europeu, ao contrário do que sugerem, com frequência, os analistas conservadores.

O exame das opções adotadas pela China, após 2008, está presente num outro texto recente: uma análise dos últimos dados macroeconômicos do país, feita por Jim O’Neill, para a Agência Bloomberg. O’Neill é insuspeito de simpatias pelo regime chinês: trabalhou por quase vinte anos no megabanco de investimentos Goldman Sachs, chegando a ser seu economista-chefe (entre 2001 e 2011). Porém, arguto e pragmático, foi um dos primeiros economistas a perceber a importância das chamadas “economias emergentes”. Em 2001, cunhou o acrônimo BRICS.

No artigo da semana passada, ele ironiza: a China “vai desapontar os pessimistas novamente. […] A ‘aterrissagem forçada’ [de sua economia] ainda não aconteceu, e os indicadores recentes levam-me a duvidar (não pela primeira vez) de que venha a ocorrer. […] Desde que acompanho o país, inúmeros céticos têm previsto seu colapso. Talvez seja hora de vê-los com ceticismo…” Mas o que leva O’Neill a tais provocações?

Linhas de trem de alta velocidade, construída quase dez mil quilômetros em cinco anos

Linhas de trem de alta velocidade: quase dez mil quilômetros construidos em cinco anos

A China, diz ele, realizou com grande êxito uma transição notável, a partir de 2008. O dinamismo de sua economia apoiava-se, até então, numa notável capacidade de exportação. Seu superávit externo equivalia a 10% de seu PIB. Esta vantagem, porém, poderia converter-se em catástrofe: a queda do consumo provocada pela crise, em todo o mundo, tendia a golpear as vendas externas chinesas, com grande impacto sobre produção e emprego.

A saída foi uma importantíssima mudança de foco. A China não deixou de exportar (e, inclusive, de melhorar o perfil de suas exportações, que se tornaram mais sofisticadas). Mas adotou duas medidas audaciosas. Primeiro, um gigantesco pacote de estímulo a obras de infra-estrutura e serviços públicos. Quase 600 bilhões de dólares foram destinados a esta finalidade — em contraste com a atitude da maior parte dos governos ocidentais, que se concentrou em salvar bancos falidos. A vasta rede de trens de alta velocidade é um dos resultados deste esforço. As obras de mobilidade foram complementadas pela construção de diversas redes de metrô, nas grandes metrópoles. A correspondente do New York Times nota que, hoje mais da metade das grandes máquinas de escavação de túneis para trens urbanos opera na China.

Em paralelo, houve estímulo ao aumento dos salários. Os chineses deveriam consumir o que antes era exportado, pensaram os planejadores. Em determinado período, esta visão evoluiu para uma atitude inesperada. Os dirigentes do Partido Comunista apoiaram discretamente, em meados de 2010, uma onda de greves operárias. O superávit externo caiu para 2% do PIB. Porém, salários mais altos e serviços de infra-estrutura de alta qualidade estão produzindo mudanças nítidas na qualidade de vida dos chineses, aponta Keith Bradsher. Em Changsha, ela entrevistou pessoas que quase não podiam visitar familiares, devido à longa duração da viagem. Com as novas linhas, alguns trajetos, que exigiam um dia antes dos trens, podem agora ser cumpridos em duas horas. É quase inevitável um paralelo com o Brasil, onde as distâncias também são continentais. Que efeitos sociais teria, num país de intensa migração interna, um transporte ferroviário eficiente que ligasse as capitais do Sudeste às do Nordeste?

Mas o caso chinês torna-se ainda mais relevante quando se examina o novo debate sobre a crise econômica, já em curso no Brasil. Entre a mídia e os partidos conservadores difundem-se, com intensidade crescente, as ideias de que o país viveu anos de “gastança” do Estado; e de que medidas “populistas” tornaram inevitável um “aperto de cintos”, após as eleições de 2014.

O exemplo asiático sugere que há espaço para formular uma proposta de sentido oposto. No esforço para reduzir desigualdades seculares, o Brasil precisa de um choque de investimento em serviços públicos e infra-estrutura. Significa transformar a qualidade das redes públicas de Educação, Saúde ou incentivo à Cultura; e multiplicar os investimentos em Mobilidade Urbana, Transportes de longa distância, Habitação, Urbanização das periferias, Saneamento, Despoluição de rios, Energias renováveis e limpas.

O cumprimento destas tarefas geraria uma mobilização nacional capaz de estimular outras transformações indispensáveis. Por exemplo, geração de ocupações qualificadas; ou estímulo a formas participativas de democracia — para que a decisão sobre os investimentos não fique limitada aos circuitos que unem empreiteiras e legislativos.

Este conjunto de ações exigiria mudar a agenda política nacional, radicalizando a “inclusão social” iniciada na última década e dando-lhe novo sentido. Não se trataria mais de “integrar” novos contingentes ao padrão de desenvolvimento atual; mas de questioná-lo e, em muitos casos, inverter seus rumos (por exemplo, o estímulo ao uso do automóvel). Requer enorme esforço — para imaginar as bases do novo projeto, as forças sociais que poderiam apoiá-lo, as equações políticas necessárias para torná-lo viável.

Mas é este, precisamente, o estímulo implícito na experiência recente da China. Ela demonstra que o debate brasileiro não precisa ficar restrito à opção entre manter as conquistas já alcançadas e retroceder aos tempos do neoliberalismo. É possível ousar um novo passo — e realizá-lo com êxito.

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8 comentários para "Crise global: a alternativa da China e o que ela diz ao Brasil"

  1. Carlos disse:

    Essa porcaria dessa China também constrói tudo com capital e mão de obra especializada europeia ou americana e financiamento idem. A Rússia só ajuda em petróleo, gás e outras matéria primas e armas. Balela, pensar que a China caminha pelas próprias pernas! O povo continua mais pobre que o nosso, face a a população e os salários irrisórios que o ocidente paga para manufaturar seu produtos. Estão aí de exemplos a Apple, HP, Nyke e por aí vai. E os carros são só montados naquele país! O motor do JAC, por exemplo, é Toyota, o resto quem quiser que imagine de onde vem…

  2. Concordo com você!!

  3. Por esse tipo de pensamento, estamos onde estamos. “deve ser muito bem estudada pois é necessário muita confiabilidade tendo em vista a alta velocidade,é necessário muito planejamento e tecnologia.”
    Isso requer estudos, e esses estudos fazem bem a qquer país. A China investiu no povo, e isso é um começo de uma evolução que vão durar anos, enquanto a gente está parado no tempo pensando “Será?”.
    Fica a dica!!

  4. A China apesar de diferente com o Brasil pelo seu modelo politico e caracterissticas geográficas e climáticas tem uma economia planificada com muita responsabilidade social apesar de muitos Chineses serem carentes de muitos serviços básicos.O Brasil precisa de maior investimento em serviço público e infra-estrutura aliada a uma participação maior da sociedade no que concerne avaliação de custos, confiabilidade, custo de manutenção, operação, definição das necessidades reais perante a sociedade. Não há dúvida que o metro subterraneo ou de superfície em paises com alta densidade demográfica ,japão ,Europa , China é uma solução inevitável principalmente levando em consideração o consumo de energia,velocidade , tempo etc quando comparado com outros tipos de transportes de massa, todavia a manuteneção e operação deve ser muito bem estudada pois é necessário muita confiabilidade tendo em vista a alta velocidade,é necessário muito planejamento e tecnologia.

  5. Igor disse:

    PARABÉNS companheiro pelas informações e análises aqui contidas.
    Que o sistema econômico chinês foi muito mais eficiente a dar respostas a crise (vale dizer, ocidental), não há dúvidas. O problema é a tal “equação política” citada no texto. Numa democracia burguesa como a nossa, com um legislativo cheio de pessoas com a mentalidade tacanha (do tipo dos comentaristas que me antecederam), que quando não são mal intencionadas são medrosas, e com um sistema que impede qualquer mudança política significativa por parte de seus atores, quase todos atrelados ao poder econômico, fica difícil imaginar que chegaremos no nível chinês. Mas vale a luta. Há braços, Igor

  6. Luiz disse:

    Meu caro autor,
    condições macroeconômicas distintas exigem soluções distintas. Essa comparação entre China e Europa é fajuta no momento que não se compara as situações marcoeconômicas destas duas regiões

  7. Marilza disse:

    Logicamente o Brasil nao investiu o tanto que a China…principamente no desenvolvimento de sua propria tecnologia, exemplo: construçao dos trens e metros, a China adquiriu tecnologia propria e nao depende mais da Europa. Todavia, nao podemos esquecer que a China desenvolve um capitalismo de Estado, abusa do dumping. Além disso, seu mercado interno é incomparavel, este fato, mantém o aquecimento da economia. Isto nao quer dizer que o poder aquisitivo de todos os chineses aumentou, hoje existe uma grande desigualdade social na China. Além disso, um grande problema de legitimidade sindical…Para as multinacionais que se instalaram na China, elas podem explorar uma mao de obra barata, logicamente isto cria empregos, todavia a maioria sao empregos precarios. A China sofre de falta de desenvolvimento sustentavel, existem grandes escandalos ambientais, todas denuncias sao censuradas e escandalos abafados…além de dar prisao! Nao sei se a China seria um modelo a ser seguido pelo Brasil se levarmos em conta todos esses fatores! O Brasil ja alguns anos vem investindo em infra estrutura, isto também contribui a resistir a crise internacional, pois criou muito empregos e aqueceu também sua economia. Basta comparar com os dados do governo FHC para ver que o Brasil hoje investe mais em infraestruturas e aumentou o poder aquisitivo do conjunto da populaçao, muitos salarios triplicaram. Todavia, a falta de infraestrura é tao grande que o esforço do governo deve ser redobrado, principalmente para garantir serviço publico de qualidade. Ou seja, nao precisamos de modelos exogenos, precisamos de ter uma visao sistêmica do desenvolvimento e ano desprezar nosso patrimônio ambiental.

  8. Glaucia da Fonseca Pereira disse:

    É incrível como o óbvio passa despercebido no Brasil! O que temos? Uma indústria automobilística? NÃO. Apenas Montadoras de veículos estrangeiros cujos modelos, características técnicas e tudo o mais já chegam aqui definidos. Ficamos apenas com os preços elevados e a poluição ambiental E ainda com a disputa do Sul e Sudeste pela hegemonia. Quais os planos para resolver a condição de pobreza, de miséria do Norte, do Nordeste regiões que foram polos de desenvolvimento do Brasil Colônia? O que está definido para a Região Centro-Oeste onde até hoje só vemos a exploração de minérios cujo destino desconhecemos? E este país de dimensão continental por que não dispõe de uma rede ferroviária que, associada ao transporte rodoviário, marítimo etc, permita o escoamento da produção sem os transtornos dos excessos de cargas revelados pelas condições das rodovias e dos caminhões? Poderia me extender sobre o assunto mas deixarei para outra oportunidade.

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