Aborto legal: porque defendê-lo

Nota técnica do Ministério da Saúde que anulava obstáculos ilegais da era Bolsonaro para o abortamento foi inviabilizada pela gritaria conservadora. Apesar do revés, garantia dos direitos das mulheres precisa seguir sendo prioridade

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Na quarta-feira passada (28/2), a Nota Técnica nº 2/2024 foi publicada pelas secretarias de Atenção Primária à Saúde (Saps) e Atenção Especializada à Saúde (Saes) do Ministério da Saúde (MS). Por meio do documento, anulava-se uma norma do governo Bolsonaro que restringia o aborto legal até as 21 semanas de gestação – uma barreira em claro desacordo com o Código Penal de 1940, que não prevê qualquer limite nesse sentido.

A Nota se dedicava a demonstrar a “fragilidade científica das premissas conceituais” e a “ilegalidade frente ao Código Penal” do édito bolsonarista. Além disso, basicamente reafirmava as orientações para o aborto legal até então postas, sem ampliar as situações que o permitem. Contudo, no dia seguinte, uma avalanche de manchetes mentirosas em meios de comunicação conservadores coordenadamente a caracterizaram como “uma medida do governo Lula para liberar o aborto até os 9 meses de gravidez”. Em menos de 24 horas, o MS decidiu revogar a Nota Técnica.

A opção pela meia-volta é particularmente amarga por ocorrer em um momento tão próximo do 8 de março, data histórica da luta feminina por emancipação. Entidades científicas e do movimento sanitarista, como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), a Frente pela Vida (FpV) e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), bem como grupos feministas, se posicionaram em defesa da Nota Técnica, ressaltando que “a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos é fundamental para a promoção da saúde das mulheres e para a redução das desigualdades de gênero”.

O posicionamento do Cebes, em particular, ressalta que “a Nota Técnica destaca-se por sua excelência técnica e compromisso com a defesa dos direitos humanos, reunindo as mais robustas evidências científicas, os aspectos legais, constitucionais e de Direitos Humanos que fundamentam a atenção integral e humanizada à população feminina”. Por isso mesmo, avaliam lideranças e especialistas ouvidas por Outra Saúde, o embate não pode se encerrar com a revogação da Nota: após um esforço tão apropriado dos técnicos do Ministério, é imperativo defender – e ampliar – as possibilidades de aborto legal no país.

As distorções da direita conservadora

Rafaela Pacheco, médica e diretora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e de Comunidade (SBMFC), aponta que, para lançar o turbilhão de ataques que fragilizou a posição da Nota Técnica, os setores conservadores e religiosos de direita recorreram a um expediente de distorções sobre o aborto legal, hoje permitido no país em casos de violência sexual, risco à vida materna e anencefalia fetal.

A primeira dessas distorções, ela explica, é a de que haveria uma motivação técnica para restringir a idade gestacional em que é autorizada a interrupção da gravidez. Assim como ressalta a recente Nota do MS, a médica indica que não há evidências científicas de que o abortamento – nas formas e com os métodos previstos pelo Brasil – seja particularmente mais arriscado após as 22 semanas de gestação. Uma restrição do tipo corre o risco de violar o direito de escolha de muitas mulheres e meninas, conta Rafaela.

É preciso “compreender que a realidade impede muitas mulheres de reconhecerem uma gravidez em curto período de tempo. Sabemos que o trauma da violência sexual pode levar a um estado de negação, bloqueio emocional e disfunção hormonal, dificultando o reconhecimento da gravidez”, esclarece uma nota divulgada pelo Cebes sobre a importância de garantir a possibilidade de abortamento mesmo em meses mais adiantados da gestação. 

O Cebes, como lembrou a Outra Saúde sua diretora Ana Maria Costa, foi uma das entidades que entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal em 2022 para tentar anular o manual revogado pela Nota Técnica da última quarta-feira.

Outra das falsificações propagadas é a ideia de que a Nota Técnica estaria expandindo as possibilidades do aborto legal no país, quando na verdade ela “nada mais que ajusta a posição do Estado brasileiro a tudo que ele já é signatário, como tratados que combatem a mortalidade materna e outras convenções”, diz Rafaela Pacheco.

“O que estava na nota técnica não era nada novo. Não era nenhum avanço em relação ao aborto, era simplesmente a revogação do retrocesso produzido pelo governo Bolsonaro, a defesa dos direitos já adquiridos”, complementou Rosana Onocko-Campos, presidente da Abrasco e membro da operativa da Frente Pela Vida. 

Ana Maria Costa contextualizou que, apesar de o aborto legal estar autorizado pela legislação desde 1940, a uniformização da oferta do procedimento de forma gratuita só começa a tomar forma depois da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), no fim da década de 1980.

Por onde começar

Em seus posicionamentos, as entidades apontaram diversas frentes, além da suspensão de restrições inconstitucionais, em que a institucionalidade brasileira precisa avançar para resguardar o direito ao aborto legal. Nesse sentido, a Nota Técnica do MS já teria significado um importante primeiro passo, com a Articulação de Mulheres Brasileiras avaliando que ela “representa avanços significativos na garantia de um atendimento humanizado na rede pública de saúde”.

Por sua vez, o Cebes denota que o documento acerta ao “enfatizar a importância da educação permanente em saúde para a qualificação dos profissionais e a promoção de uma cultura de respeito aos direitos sexuais e reprodutivos”, além de “reconhecer a violência sexual como um grave problema de saúde pública, com impactos físicos, psicológicos e sociais devastadores, e estabelecer diretrizes claras para o seu enfrentamento”.

Em seu posicionamento, a SBMFC deu ênfase à “importância da capacitação dos profissionais de saúde em relação ao tema do aborto legal e seguro, bem como da criação de protocolos e diretrizes claras baseadas em evidências científicas que garantam o respeito aos direitos das mulheres e a qualidade no atendimento prestado”. 

“A atuação da Atenção Primária à Saúde é essencial na promoção do acesso ao aborto legal e seguro e os profissionais de saúde têm o dever de garantir o acesso à informação, à orientação de serviços relacionados ao aborto legal, além de oferecer acolhimento e cuidado às mulheres que optam por interromper uma gravidez”, continuou a sociedade científica.

Semelhante demanda levantou a Frente Pela Vida, que se manifestou “pela urgente necessidade de orientações assertivas sobre a realização do aborto legal e, no âmbito da rede SUS, atualização das informações técnicas necessárias”.

Ousadia para avançar

Para cumprir com todas essas necessidades urgentes, que as especialistas consideram ser primariamente uma questão de Saúde Pública e não mera “pauta de costumes”, o governo não poderá ser tão submisso em relação às batidas de pé dos elementos conservadores. “A gente não pode fazer política só se submetendo às posições dos aliados. Os aliados são conjunturais, os princípios são permanentes. Como estratégia e como tática, está errado”, pesou Rosana Onocko-Campos.

Um primeiro passo poderia ser a republicação da Nota Técnica, como exige a nota da Articulação de Mulheres Brasileiras. Isso seria o mero “ajuste histórico de uma subversão que houve desse debate nos últimos anos”, avalia Rafaela Pacheco.

No entanto, em uma perspectiva de longo prazo, fundamental mesmo seria criar as condições para ampliar o direito à interrupção voluntária da gravidez, “inclusive começando a pensar em outras modalidades de acesso a esse abortamento e avançando na descriminalização do aborto”, diz Rafaela. Ela cita a constitucionalização do direito ao aborto, aprovada na França nesta semana, como um exemplo de medida que salvaguardaria mais firmemente essa possibilidade.

Além disso, completa a diretora da SBMFC, seria imprescindível a garantia de “tratamento clínico no período mais precoce possível para diminuir os danos da gravidez indesejada, treinamento das equipes de saúde para uma abordagem integral às meninas e mulheres nessa situação, e acesso legal à mifepristona”, medicamento comprovadamente seguro para o abortamento e recomendado pela própria Organização Mundial de Saúde, mas que até hoje é proibido no Brasil.

“A sociedade brasileira está desafiada a refletir sobre as propostas políticas que, em nome de valores morais, impõem restrições aos direitos e serviços de saúde”, como diz a nota da AMB – e o atual Ministério da Saúde, como mostra a Nota Técnica tão bem avaliada por entidades científicas, já reúne o nível de formulação capaz de abrir uma porta para a ampliação do bem-estar das meninas e mulheres do país.

“O Estado brasileiro está em falta com as mulheres”, resumiu Ana Maria Costa, e só poderá solucionar essa dívida tendo firmeza e ousadia na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos.

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