Sem renda básica, 10 milhões podem perder o negócio

Micro e pequenos empreendedores que não se enquadram nos critérios do benefício de R$ 600 aprovado pelo Congresso poderão fechar as portas. Muitos terão de se expor a trabalhos precários nas ruas, ou recorrer a empréstimos a juros altíssimos

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Por Thais Lazzeri, na Repórter Brasil

A pedagoga Ana Claudia Silva, de 35 anos, está confinada em casa, em Arujá, no interior de São Paulo, com os três filhos. Teme o impacto do novo coronavírus na saúde e também no orçamento da família, que vinha principalmente de sua loja virtual de itens de educação. De uma semana para outra, o negócio estacionou e, ao lado do marido, deparou-se com um dilema: com a queda nas vendas, a única maneira de conseguir dinheiro seria o companheiro romper o isolamento e voltar a dirigir carros de aplicativos. “Mesmo correndo risco, ele vai para a rua. E ainda tem passageiro que dá nota baixa porque ele usa luvas e máscara”, queixa-se.

Assim como a família de Ana Claudia, pelo menos outros 10 milhões de microempresários e microempreendedores (MEI) do país encontram-se nesta encruzilhada, segundo a economista brasileira Monica de Bolle, da universidade norte-americana John Hopkins. Estão em um “limbo”, já que não se encaixam nas medidas econômicas anunciadas pelo governo, que contemplam famílias que ganham até três salários mínimos (R$ 3.135) ou pequenas empresas que faturam mais que R$ 360 mil ao ano.

“É um escândalo. O governo não fez nada até agora para nenhuma dessas pessoas e muito pouco para os que estão ainda mais vulneráveis”, diz a economista. Isso porque existem cerca de 4 milhões de MEIs que recebem mais de três salários mínimos e cerca 6 milhões de pequenos empresários com faturamento também maior do que isso.

Fortemente impactados com a crise provocada pelo coronavírus, esses microempresários esquecidos também terão mais dificuldades para se recuperar após a tormenta. “Eles não têm como fazer reserva. As emergências econômicas sempre estiveram ali, mas agora a escala é outra”, afirma Adriana Barbosa, empreendedora social da plataforma Preta Hub.

Esses microempresários, que vão deixar de vender, também vão deixar de comprar. O impacto, escalonado, será em todas as camadas — atingindo primeiro o micro e o pequeno, mas também empresas maiores. “Por isso o governo precisa, obrigatoriamente, fazer um aporte gigantesco para manter a economia estimulada. Sem esquecer, claro, dos recursos para saúde e tecnologia. Porque não adianta trabalhar em uma frente e deixar a outra descoberta”, afirma a economista Ester Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, citando o governo americano que anunciou um pacote de mais de U$ 1 trilhão.

“Essa é uma crise sanitária e econômica, não tem como dissociar uma da outra. E o governo responde com total incompetência tanto no entendimento da gravidade quanto no atraso de uma resposta”, afirma Bolle. Ela e outros economistas estão trabalhando nos bastidores para ajudar a concretizar medidas emergenciais. “Nossa atuação tem sido com o Congresso porque o Executivo morreu.”

O Congresso aprovou nesta segunda-feira a proposta de renda básica emergencial, que prevê pagamento, por três meses, de R$ 600 por trabalhador informal, limitado a dois da mesma família, para aqueles com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou renda mensal familiar de até três salários. Mães que são chefes de família têm direito a R$ 1.200. O texto deve ser sancionado nesta terça (31) por Bolsonaro.

Se esse voucher não contempla o microempresário, o recém anunciado pacote de R$ 40 bilhões para pequenas e médias empresas também não o tira desse limbo. “Os R$ 600 socorrem o empresário, mas não a empresa. No caso dos que trabalham por conta própria, eles continuam sem assistência direta por parte do governo”, diz Marco Antonio Rocha, professor de economia da Unicamp.

Inviabilidade e carência total

No momento, o governo estuda uma proposta de oferecer empréstimos para empresas pagarem salários de trabalhadores por até dois meses. Se aprovado como está, o pacote, no entanto, atenderia apenas pequenas e médias empresas, com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões, deixando de fora microempresários e autônomos que são MEI. O ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu a inclusão dessas categorias de trabalhadores, mas nenhuma decisão foi tomada ainda.

Assim, sem ajuda concreta do governo até o momento, aceleradoras de impacto, ONGs e empresas sociais focadas nas periferias estão unindo esforços para fortalecer esse empreendedor e mitigar o impacto socioeconômico e sanitário que recai sobre ele. Um desses projeto é o Éditodos, um fundo que reúne 12 entidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador e capta recursos com grandes empresas.

“Uma parcela grande desses empreendedores, quase 70%, saiu da última crise econômica, em 2015, com carência de capital de giro. Muitos, com dívidas. Então a gente não está falando, apenas, de inviabilidade do negócio e não ter crédito frente ao coronavírus, mas que essa população vai ser jogada para uma carência total se não agirmos”, afirma Rocha, da Unicamp.

A Repórter Brasil pediu, com insistência, posicionamento do Ministério da Economia, mas as questões enviadas não foram respondidas.
O dia a dia de quem o governo não vê

Em meio à pior crise econômica que já viveu, a poesia sobrevive em Luci Soares, de 46 anos. “O grande e o pequeno tiveram que romper a vida, as histórias.” Luci, que por décadas foi faxineira e fazia um extra vendendo doces, entrou para o circuito da Fa.vela, onde teve aulas de empreendedorismo. Um ano depois, alugou uma lanchonete no asfalto — na parte de baixo da comunidade Aglomerado Serra, na zona sul de Belo Horizonte. Lá, fazendo juz à mineirice, atendia das 6h às 19h os dois públicos – da favela e os de fora – com pão de queijo “sempre quente” e café. Com o giro, conseguia um pró-labore de até dois salários mínimos, suficientes para as contas da casa. “Depois do corona, estou parada. Não entra nada [de dinheiro], e eu ainda tenho o aluguel.”

Mulher, negra, periférica, mãe, arrimo da casa, empreendedora com pouco capital de giro é o perfil mais comum do nano e pequeno empreendedor em todos os cantos do país. Quem seguiu e segue sozinha – a depender da boa vontade do governo. “Sendo muito otimista, uma micro ou pequena empresa, liderada por jovens, que tiveram mais acesso à informação e educação financeira, tem capital de giro de 27 dias. O restante não tem reserva e não sabe o que fazer”, diz Fernanda Ribeiro, presidente Afrobusiness Brasil, que capacita profissionais negros. E continua: “Além dos desafios normais, essa mulher ainda enfrenta o machismo e o racismo. Isso afeta muito a saúde mental dos empreendedores.”

As famílias que vivem com menos de dois salários mínimos representam 23,9% do total de 60 milhões de famílias. E mais de 70% vivem com até R$ 5.724. Além da desigualdade de renda, pesa sobre estes grupos a maior parte do trabalho informal. “O que a gente vê são bancos aumentando limite, para o pobre se endividar mais. Você precisa ter uma leitura crítica disso”, diz João Souza, da aceleradora Fa.vela e morador do Conjunto Santa Maria, em Belo Horizonte.

Uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que 79% da população prevê que será será muito afetada pelo coronavírus A estratificação de renda feita na pesquisa, diz o advogado Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, mostra que quanto maior a renda, maior a capacidade de mantê-la e maior a chance de seguir trabalhando de casa. Enquanto 60% das pessoas com rendimento de até dois salários mínimos afirmam que não vão conseguir trabalhar de casa, a expectativa de seguir de forma remota por quem ganha mais de dez é de 25%.

“Não tem home office para quem vende produto na rua”, diz Paulo Rogerio, da aceleradora Vale do Dendê, em Salvador (BA). O cenário do impacto provocado pela pandemia em Salvador, diz ele, é particularmente dramático porque afetou os três setores base da economia local: turismo, serviços e entretenimento. E, esse empreendedor, afirma Rogerio, vai ter dificuldade para acessar crédito “longe do eixo Faria Lima”, em alusão à avenida paulista de negócios milionários.

A empreendedora do setor alimenticio Aline Araújo, conhecida como Aline Chermoula, de 36 anos, precisou retomar um serviço de marmitas saudáveis delivery, que já não oferecia mais, para lidar com a crise. Todos os serviços de buffet contratados ou em vias de assinatura de contrato foram cancelados. “A crise mudou todos os planos para empresa e para a vida pessoal, porque está tudo ligado. Fazer marmita dá mais trabalho e a renda é menor, mas não tive outra opção”, diz a mãe de duas crianças pequenas. “Não posso permitir que meu negócio não dê certo”.

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