"Relato dos quatro dias em que vivi na rua" (final)

Na quarta noite, depois de conhecer a generosidade da rua, onde ninguém é julgado, grupo budista retirante juntou-se ao movimento Ocupa Sampa, sob o Vale do Anhangabaú

Por Arthur Cursino, no Coletivo Verde

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Na quarta noite, depois de conhecer a generosidade da rua, onde ninguém é julgado, grupo budista retirante juntou-se ao movimento Ocupa Sampa, sob o Vale do Anhangabaú

Por Arthur Cursino, no Coletivo Verde

Quando aquele homem negro de mais de 50 anos, andando com uma bengala por causa da artrite, nos disse que desde o primeiro dia do retiro ele estava olhando e cuidando de nós, senti profundamente o que a palavra compaixão quer dizer.

Ele era chamado de Pai Preto e dizia ser o prefeito da tenda onde muitos moradores de rua ficam. Estávamos lá no fim da tarde do terceiro dia quando caiu uma tempestade de verão daquelas que inunda a cidade inteira. Acomodados embaixo da tenda nós e dezenas de pessoas contemplavam a chuva, me sentia como em uma grande família e me recordo que o coordenador do retiro nos disse com uma voz emocionada:

– Eles nos aceitaram.

Realmente, há três dias sem pentear o cabelo ou trocar de roupa, já parecíamos fisicamente com os moradores de rua, no entanto o que o coordenador se referia era ao nosso estado de espírito. Apesar de sermos de “fora”, os moradores haviam aceitado nossa prática como verdadeira.

Cachorros, crianças, idosos, dividíamos todos o mesmo espaço. Conversei muito com uma senhora simpática, de poucos dentes na boca, que puxou conversa me oferecendo um pedaço de melão. Ela contou que perdeu sua casa por conta de motivos que mal sabia explicar, mas que estava esperançosa porque o advogado já estava providenciando tudo. Ali, observando a simplicidade dela, pensei em como deve ser difícil enfrentar o mundo sem um mínimo de educação. Como ela muito provavelmente foi forçada a uma situação, simplesmente por não entender seus direitos. Não tinha muito a oferecer a ela além da minha plena atenção, algo que desde o primeiro dia buscávamos praticar.

Plena atenção significa estar completamente presente, de coração aberto, sem ser atropelado pelos pensamentos. Significa aceitar cada momento como ele se apresenta, sem se perder nos julgamentos.

Durante o retiro treinávamos a plena atenção durante uma prática chamada de “Conselho”, onde nos sentávamos em roda para falar o que cada um estava sentindo. Para a prática do Conselho era necessário seguir algumas regras: (1) sempre falar a partir do coração, ou seja, o que vier na hora, sem ensaios; (2) escutar com plena atenção e (3) não comentar ou discutir sobre os comentários das outras pessoas.

Cada Conselho aprofundava a experiência, revelando que os sentimentos de cada um eram comuns ao grupo, o que sempre fortalecia muito a prática.

Ainda do terceiro dia lembro-me de mais uma história que me marcou muito. Deviam ser umas dez da noite e eu estava com bastante fome, a Kombi do sopão não tinha passado e a esperança de comer algo diminuía. Comentei com um amigo sobre minha fome e um morador, que dormia próximo a nós, se virou e me deu um pacote com quatro bolachas recheadas.

Bolachas recheadas na rua são um verdadeiro tesouro! Nenhuma instituição doa bolachas recheadas, para consegui-las ele precisou esmolar dinheiro e depois enfrentar o risco de entrar em uma loja para comprá-las, superando a vergonha de ser expulso.

Ele me entregou o pacote e virou novamente para dormir. Alguém estava com fome e ele compartilhou, simples assim, sem exigir palmas ou profundos agradecimentos. Comi duas e dei duas para meu amigo, se me permitem o exagero poético: foram as bolachas mais gostosas que comi na vida.

Passamos a última noite no Anhangabaú, junto com o pessoal do movimento Ocupa São Paulo, que há pouco mais de uma semana tinha começado seu protesto. Foi mais uma noite conturbada, com chuva, frio, gritos e brigas, nada muito diferente do que qualquer outra noite na rua.

Pela manhã do último dia voltamos à tenda a pedido de um morador que nos pediu uma oração de despedida. Apesar de não ser uma prática tão comum no Zen Budismo, oramos de mãos dadas e com todo coração, como se de alguma forma pudéssemos retribuir todo o carinho e confiança que recebemos daquelas pessoas.

Ao meio dia partimos, cada um para seu lado. Foi fácil ficar na rua por quatro dias, sabendo que minha cama macia e chuveiro quente me aguardavam em casa.  Na experiência pude sentir apenas uma pequena fração do sofrimento que é não ter nada, de ser invisível para a sociedade. Posso apenas imaginar o sofrimento que passam essas pessoas todos os dias, sem casa, esperança ou oportunidades.

Hoje, quase um ano depois do retiro, ainda sinto como ele foi marcante para mim. Por conta desses depoimentos no Coletivo Verde as pessoas têm comentado comigo sobre o retiro e sou forçado a relembrá-lo com alguma frequência. O interessante é que sempre que me lembro surgem memórias boas: o carinho dos moradores, as histórias, os sorrisos. Preciso fazer algum esforço para relembrar os momentos difíceis, talvez seja esse o segredo das pessoas que moram na rua: esquecer os momentos ruins.

Uma frase de Seu Bezerra, primeiro morador que falou conosco, resumiu bem o motivo que leva muitas pessoas a fazer da rua sua moradia: “a rua não julga ninguém”. Conversei com pessoas que ali estavam por opção e outras que ali estavam por falta de opção. Percebo que não é possível fazer generalizações e que cada morador tem um nome e uma história únicos, que fazem deles pessoas de carne e osso, como eu e você.

Em um mundo onde cada vez mais se reforça a perfeição como único caminho de vida, perceber minhas fraquezas me fez mais forte; me fez mais humano.

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Leia aqui a primeira parte do relato

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3 comentários para ""Relato dos quatro dias em que vivi na rua" (final)"

  1. Muito bom ler experiência para nos colocar a frente..

  2. Rafael Lauro disse:

    Pois é. Obrigado por compartilhar essa experiência.

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