Polêmica: é legal mandar Bolsonaro “tomar no cu”?

Expressa em eventos como o Rock in Rio, ofensa homofóbica revela lógica opressora: ser penetrado é visto como feminino e desonroso. Luta anticapitalista também requer xingar com mais criatividade

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Por Julian Rodrigues, em A Terra é Redonda

Rock in Rio (que rolou entre 27 de setembro e 6 de outubro) foi marcado por muitas manifestações políticas, com um tom crítico ao governo Bolsonaro e seu programa ultraliberal e neofascista.

Em diversos shows, a plateia marcou seu repúdio ao cenário atual gritando: “Ei, Bolsonaro: vai tomar no cu”. Tal desabafo esteve presente em todo o país, pelo menos desde as manifestações estudantis que explodiram em maio.

Na quinta, 3 de outubro, a banda Francisco, el Hombre fez apresentação considerada a mais politizada do Rock in Rio. O vocalista do grupo puxou: “pulando, pulando, quem não pula é miliciano”, deixando a galera enlouquecida. As críticas ao governo Bolsonaro foram a tônica do show, bem como a defesa de Lula Livre.

Mas, quando o público gritou – como vinha fazendo há dias – “Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”, o cantor respondeu. Não titubeou e fez questão de demarcar: “tomar no cu é uma delícia”.

Verdade.

O sexo anal é uma prática que dá prazer para milhões e milhões de pessoas no Brasil – de todos os gêneros, identidades de gênero, orientações sexuais, idades, etnias, etc, etc.

Por que, então, desejar uma coisa tão boa para um governante ao qual queremos repudiar em grau máximo?

Reaprender a xingar

Desconstruir os estigmas, as humilhações e as violências simbólicas cotidianas perpetradas contra as mulheres, negros, LGBTI é parte constitutiva não só da luta anticapitalista – mas também da jornada civilizatória pelas liberdades democráticas.

Os palavrões que aprendemos desde criança são expressão aguda das características da sociedade capitalista, racista, sexista, patriarcal, cisheteronormativa, alicerçada na repressão da sexualidade.

Reparem: sempre sobra para as mulheres, para os gays, para os negros. E estigmatizando o prazer sexual como algo ruim.

“Filho da puta” (o que a mãe do sujeito, ainda que profissional do sexo tem a ver com o que ele faz?); “vai se foder” (foder é sinônimo de fazer sexo, então por que isso seria algo ruim?); “seu viado” (os homossexuais seriam o que há de pior na sociedade!).

“Vadia”, “cadela”, “puta”, “piranha”, “biscate”, “vagabunda” – para as mulheres, todos palavrões são relacionados a uma suposta atividade sexual “excessiva” – no fundo, um ódio misógino pela autonomia das mulheres e seu direito ao próprio corpo.

“Teu corno”, “chifrudo” (ofensa máxima para um “macho”: sua companheira teria ficado com outro homem!).

E, claro: todas as imensas variações relacionadas ao sexo anal. Desde o clássico e onipresente: ”vai tomar no cu” até “arrombado”, “vai chupar uma rola”, “pau no seu cu”, “cuzão”, “bicha louca”, “viado arrombado”, e por aí vai.

Mandar alguém “tomar no cu” é reforçar um estigma machista e antiLGBTI. Não é apenas reiterar um interdito opressor ao sexo anal (algo absolutamente conservador, careta, repressivo). É uma ofensa particular, específica e propriamente  homofóbica.

Homofóbica? Sim. Muito. Totalmente. O sexo anal (passivo) é historicamente associado aos homens gays. É sinônimo de submissão, de degradação moral. Algo desagradável, nojento, pecaminoso.

Reparem que quem “come o cu” está fora do escopo do xingamento (comer viado pode). O feio é “dar o cu”. Porque é algo “feminino”, é quando um homem abre mão do seu status para se igualar a uma “mulherzinha”. Ser penetrado é coisa de mulher. Coisa menor. Homens não devem ser penetrados. Perdem sua dignidade e seu status social.

Por isso, mandar alguém “tomar no cu”, é desejar que essa pessoa seja humilhada, colocada num lugar inferior. É também torcer para que sofra (porque a penetração anal é associada automática e equivocadamente a dor, sangramento, ferimentos).

Prescindimos de uma análise linguística, histórica, sociológica mais aprofundada para entender o papel opressor e discriminatório dos xingamentos que ouvimos e reproduzimos desde criança.

Cu: o último refúgio

Promover a igualdade entre mulheres e homens, a liberdade de identidade de gênero, uma sexualidade livre, os direitos sexuais e reprodutivos é uma agenda a ser ainda, de conjunto, incorporada pela esquerda.

Os homens, principalmente os progressistas, estão chamados a entrar imediatamente e de cabeça nesse debate.

Precisamos discutir os modelos de masculinidade hegemônicos. Enfrentar o machismo e a homofobia, bem como a repressão sexual. Os homens são agentes de opressão e também vítimas do modelo patriarcal heterossexista.

Ao discutir essas questões, em aulas e palestras, sempre provoco: “o cu é o último refúgio da masculinidade”. Depois, antes que os caras respirem direito, revelo: “cu não tem orientação sexual, é só uma região do corpo que pode proporcionar prazer”.

Há muita literatura sobre esse tema. Mas é intrigante como o tabu permanece tão forte. “Fio terra”? Nunca confessar, nem brincando.

Vamos liberar a foda e o cu? Tirar da lista de coisas ruins?

Será que não passou da hora de toda juventude progressista, dos movimentos sociais, da intelectualidade, dos partidos de esquerda discutirem gênero e sexualidade – mais feminismo, antirracismo, liberdade sexual e de gênero?

Bolsonaro talvez fosse um homem melhor – e seus filhos idem – se tivessem tido uma relação diferente com sua sexualidade. É fato.

Mas, bora lá. Vamos inventar um jeito melhor de xingar o neofascista?

“Ei, Bolsonaro, vai tomar polícia/ que no cu é uma delícia”.

Julian Rodrigues, professor e jornalista, é ativista dos movimentos LGBTI e de direitos humanos

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