Piada sem graça

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Esquerda não pode correr o risco de ser moralista. A pedagogia do bom gosto camufla uma visão pejorativa do que é popular, adquirindo viés social pernicioso e, no limite, autodestrutivo.

Por Guilherme Scalzilli, em seu blog

A propaganda com Gisele Bündchen, o personagem machista da novela global e as desventuras do tal Rafinha Bastos motivaram um clima de patrulhamento que precisa ser questionado enquanto resta algo a debater. A cada batalha moralista a esquerda se distancia do espírito libertário e tolerante que a diferenciava dos adversários. E permite que tais valores sejam apropriados pelo conservadorismo decadente, transformando-o em repositório de boas plataformas negligenciadas. Aconteceu com a descriminalização da maconha, por exemplo, e agora acontece com a liberdade de expressão.

Concordo que há limites para certas manifestações públicas, e sou defensor antigo de uma legislação específica voltada à imprensa. Mas quem estabelece limites no entretenimento, na farsa ou na ficção? O Tribunal dos Valores Éticos e Sociais? A Liga das Senhoras Ridentes analisará trocadilhos e anedotas? Qualquer dignidade que se julgar desrespeitada poderá vetar a provocação alheia? E se as vítimas de gangues psicóticas tentarem proibir “Laranja Mecânica”? Vamos amaldiçoar os velhos traquinas de Mario Monicelli ou os idiotas de Lars von Trier porque ridicularizam incautos e doentes? A animação “Family guy” será metida no índex degenerado? Há diferença entre vetar um filme sérvio ruim ou “Je Vous Salue, Marie”?

Essas questões incômodas evidenciam o perigo de se tolerar precedentes regulatórios na atividade criativa. Se os paralelos soam exagerados é porque os vilões momentâneos pertencem à chamada cultura de massas, tida como descartável, indigna de compartilhar as prerrogativas republicanas daqueles que a menosprezam. Os sábios jamais permitiriam bedelhos nas suas diversões “cultas”, mas não hesitam em determinar o que as audiências ignorantes podem assistir. A pedagogia do bom gosto camufla uma visão pejorativa do que é popular (nas muitas acepções possíveis), adquirindo um viés social pernicioso e, no limite, autodestrutivo.

Assusta ler setores da blogosfera recorrendo à bula politicamente correta para justificar seus arroubos censórios. Mas há lógica no raciocínio. O que motiva essa fantasia eugênica, moldada em padrões medíocres de conduta, é a anulação da individualidade e a conseqüente asfixia das divergências. O êxtase coletivista do pensamento único busca formar rebanhos homogêneos e dóceis, que aplaudem qualquer mistificação despótica para evitar a pecha de reacionário ou preconceituoso. Nem sempre funciona, e é por isso que ainda apostamos na democracia.

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3 comentários para "Piada sem graça"

  1. Fábio Castelazzo disse:

    Não sendo o caso de recorrer a qualquer instância coletiva abstrata, sua defesa da liberdade criativa se filtra facilmente pela ideologia para então se converter em permissividade liberal. Perde-se de vista que qualquer atividade, idéia ou imagem pode ser apropriada e transformada pelo capital, que, com bastante liberdade, transforma o fascismo em direito democrático, o grosseiro em artístico, o venial em caráter, etc. Como diz Marx sobre o dinheiro: o verdadeiro poder inversor. Tudo em nome da liberdade como conceito abstrato de uma prática pensada nas nuvens. Sua defesa abstrata do popular pode bem ser a justificação geral, filosofante, pra uma massificação estupifeciente e danosa. Pode ser a ideologia de um neofascismo como pra revolução socialista. Serve pra tudo e nada.

  2. Espartaniac disse:

    Guilherme, queria entender de onde você tirou que isso é uma ‘obra’ da esquerda.

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