Os sentidos da contra-reforma trabalhista

Governo quer começar, na próxima semana, a desmontar legislação trabalhista. Que pontos estão em pauta. Por que as mudanças atingem, além dos assalariados, o conjunto da sociedade

Energia Alerta entrevista Edemilson Paraná

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Governo quer começar, na próxima semana, a desmontar legislação trabalhista. Que pontos estão em pauta. Por que as mudanças atingem, além dos assalariados, o conjunto da sociedade

Energia Alerta entrevista Edemilson Paraná

Para a 38º edição do Jornal Energia, entrevistamos Edemilson Paraná sobre o impacto da Reforma Traballhista. Ele é sociólogo, mestre e doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Autor do livro A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional (2016), tem trabalhos publicados nas áreas de Sociologia Econômica, Economia Política e Teoria Social. Também publica intervenções sobre economia e política em sítios como Blog da Boitempo, Congresso em Foco, Carta Capital, Outras Palavras e Brasil em 5. Confira aqui a íntegra da entrevista:

Qual a sua opinião sobre a linguagem utilizada pelo governo e a mídia, como por exemplo a palavra “modernização”, que soa como algo positivo, para justificar os retrocessos nos direitos sociais e trabalhistas?

Essa é uma retórica falaciosa, e que, longe de ser isenta, esconde mais do que esclarece; em busca de atender a interesses particulares em detrimento do conjunto da sociedade.

Precisamos entender que as empresas, em geral, são sempre levadas a buscar o lucro acima de qualquer outro objetivo, uma vez que isso é fundamental para sua sobrevivência na competição feroz do mercado. Por isso, empresa não faz caridade, nem funciona como mecanismo de proteção e assistência social para seus trabalhadores – elementos que, ao contrário, tendem a ser vistos como custos indesejados de sua atividade econômica. A não ser que sejam obrigadas socialmente a isso, em geral por meio da Lei, as empresas sempre tentam repassar esse necessário “custo” de reprodução de seus trabalhadores, digamos, para outros – em especial para o próprio trabalhador que, nesse caso, acaba desamparado, tendo de arcar por conta própria com as suas necessidades.

No entanto, há um problema sistêmico aí. Estando os trabalhadores – a larga maioria da população – sub-remunerados e em situação de insegurança econômica, quem irá consumir os produtos e serviços produzidos por tais empresas? Então, sob pena de a economia como um todo não funcionar adequadamente, esse problema precisa ser equacionado de alguma forma.

Quando esse custo de manutenção geral da força de trabalho, que garante uma condição mínima de vida, é dividido pela sociedade como um todo, por meio do Estado, como vem ocorrendo desde meados do século passado, os empresários, mesmo os mais lucrativos, tendem, ainda assim, a reclamar do “fardo” que esse “custo” indireto representa para sua atividade empresarial, via impostos variados, como os que remuneram os direitos trabalhistas, por exemplo. Então, desde o seu ponto de vista limitado, para cortar de vez esses impostos e custos, se faz necessário reduzir ao mínimo os próprios direitos e repasses aos trabalhadores. Esse corte, no entanto, acaba produzindo uma situação mais injusta, desigual, insegura e conflituosa para os trabalhadores como um todo, mas também para a sociedade em geral — inclusive, na margem, para esses mesmos empresários. Estes se recusam, no entanto, desde um ponto de vista político, a aceitar tal fato devido a estarem por demais atados aos seus interesses individuais imediatos de ganho e de lucro – e apenas secundariamente, quando é o caso, preocupados com a viabilidade da vida coletiva em sociedade, algo mais distante e abstrato.

É isso, então, que está em jogo; quem paga a necessária conta da manutenção da vida social, sobretudo em tempos de aperto econômico como o atual, quando o conflito distributivo aperta. É o lucro dos empresários – lucro que obtém também graças ao trabalho de seus funcionários –, ou os salários (diretos ou indiretos) dos próprios trabalhadores, já sub-remunerados, e expostos a inseguranças de todo o tipo.

Foi para evitar esse desemparo, que prejudica a uns mais do que outros, mas também à sociedade como um todo, e graças a muitas lutas e conflitos sociais, que surgiram as leis de proteção ao trabalho no último século. Atacá-las, flexibilizá-las, torna-las ambíguas, frouxas ou abertas à negociação entre esses dois polos (empresários e trabalhadores) – que na verdade não estão sentados em condições iguais de poder nessa mesa onde se chega a “acordos” (dado um ser o empregador, e o outro precisar do emprego a todo custo para sobreviver) – não é “modernizar” nada, mas, ao contrário, conduzir de volta ao passado, e um passado nada romântico de insegurança, conflitos e tragédias sociais.

Dos pontos da reforma trabalhista, apresentada pelo Executivo, o que pode causar maior impacto para os trabalhadores?

Para além da proposta do governo em específico, há graves aspectos em todos os projetos que tramitam já há algum tempo no Congresso sobre essa temática. O central é reter o que disse antes: todos eles aprofundam a insegurança do trabalho, a degradação material e social e, dessa forma, pioram a nossa já grave desigualdade econômica, intensificando a situação de crise econômica ao invés de combatê-la. Entre as medidas mais trágicas, para citar apenas algumas, estão a terceirização da atividade fim, a ampliação dos regimes de trabalho parcial e temporário, a possibilidade de aumento da jornada de trabalho para até 12 horas diárias, a facilitação para demissão de trabalhadores, e toda a perniciosa “repactuação” de aspectos centrais da legislação como direito a férias, extensão da jornada de trabalho, remuneração de horas extras, entre outros, por meio de acordos coletivos entre trabalhadores e empresários que passam a ter força de lei – o tão celebrado “negociado sobre o legislado”. Não há, em hipótese alguma, como isso ser positivo para os trabalhadores.

A reforma trabalhista quer sobrepor o negociado sobre o legislado, com a falsa ideia de que a “flexibilização” é benéfica para os trabalhadores e para o País. O que significa na prática a implementação do negociado sobre o legislado?

Trata-se, como eu disse, da ideia de que acordos ou convenções coletivas firmadas entre trabalhadores e seus patrões tenham força de lei, à revelia da legislação existente. Acontece que, como se sabe, trabalhadores e empresários não estão em pé de igualdade de recursos e poder em negociações dessa natureza. A legislação atual, que se quer destruir, parte justamente desse óbvio pressuposto. Perceba que – quando for para melhorar ou ampliar os benefícios atualmente já existentes em lei – os tais acordos já são permitidos. A legislação não estabelece o máximo de benefícios/retribuições, mas, ao contrário, um piso mínimo para estes. A flexibilização, então, não vem, distintamente do que se propagandeia, para melhorar a atual situação dos trabalhadores, algo que já é permitido pela norma atual; mas, ao contrário, para atacar esse mínimo existente que é a legislação trabalhista e que, desde que foi implementada há décadas, é alvo de ataque por parte das grandes entidades patronais. O objetivo é claro: enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores como um todo na manutenção e ampliação de seus direitos econômicos, mas também políticos e sociais.

O argumento para a aprovação da PEC 300/2016, que traz uma série de alterações na CLT, baseia-se no “protecionismo exagerado da legislação laboral brasileira (…) um óbice ao dinamismo da atividade econômica”. Como você avalia a justificativa para a alteração nos direitos da classe trabalhadora?

As justificativas são todas débeis, e logicamente insustentáveis, caso se queira atender à sociedade como um todo, e não apenas os interesses de um grupo específico. O Ministério Público do Trabalho acaba de emitir um enérgico parecer contrário à proposta considerando-a, além de inconstitucional e produtora de insegurança jurídica, prejudicial à economia do país. Mais do que ampliar as contratações – algo que ocorre centralmente devido ao aquecimento da atividade produtiva e não pelo simples corte de regulamentação –, isso aprofundará a manutenção dos salários em baixa, ampliará a insegurança material dos trabalhadores, deprimindo, pela soma de inúmeros fatores, seu poder de compra, o que, em um quadro de recessão continuada, mais atrapalha do que incentiva a geração de novos empregos, a ativação da atividade econômica e, consequentemente, a recuperação da arrecadação do Estado. Some a isso a “reforma” da Previdência, a gravidade nos cortes na educação, saúde e em outros serviços públicos, e você tem um cenário de aumento das jornadas de trabalho sem aumento correspondente de remuneração, o empilhamento de empregos inseguros e subremunerados, com trabalhadores tendo de acumular vários postos para dar conta de suas despesas, entre outras situações indesejáveis. O efeito pode ser, inclusive, inverso ao esperado, ou seja, um aumento da economia informal, ademais ativada pelo desemprego crescente – nos colocando na contramão dos avanços que tivemos nessa área nos últimos anos. Não há como imaginar como uma agenda de tal modo recessiva passa ajudar a tirar o Brasil da situação de crise em que se encontra.

Pode-se afirmar que os direitos trabalhistas estão sendo tratados como mercadoria num balcão de negócios, numa tentativa de reconfiguração do padrão de acumulação de capital?

Sim. Como eu disse, trata-se de um conflito distributivo típico (e até clássico, desde esse ponto de vista); ou seja, quem paga a conta pela manutenção da sociedade como um todo, especialmente em tempos de crise: o trabalho de um lado, ou o capital do outro. É óbvio que ambos pagam, ainda que seja o trabalho que produza o capital, e não o capital que produza o trabalho. Mas se quer, agora, que apenas um dos lados, o trabalho, o faça – ou, no mínimo, arque com sua maior parte.

No entanto, curiosamente, mesmo antes do acirramento desse conflito distributivo que se avoluma com a crise em que vivemos, essas propostas de ataque aos direitos trabalhistas já existiam, sempre existiram, inclusive em tempos de crescimento econômico, como na última década. Isso porque, como apontei, é da natureza da atividade empresarial buscar o máximo de lucro e pagar o mínimo possível de salário. Ao trabalhador, naturalmente, interessa maior remuneração pelo seu trabalho. Nesse contexto de crise, quando os lucros estão também diminuindo, a retórica de corte nos direitos do trabalho se torna mais urgente e barulhenta, disposta a aproveitar as “oportunidades” que tais ocasiões ensejam para reconfigurar esse balanço de forças. Com recessão permanente, e continuada queda da arrecadação do Estado, a disputa pelo butim do excedente social se torna cada vez mais acirrada. Mas cortar a proteção social e os direitos trabalhistas é tomar veneno como se fosse remédio; apenas piora ainda mais a situação econômica, social e política do país.

O modelo de desenvolvimento social e econômico defendido pelo atual governo pode aprofundar a crise política e acirrar os conflitos sociais?

Sem dúvida. Isso, inclusive, já está acontecendo. A despeito das entusiasmadas projeções dos economistas oficiais, no governo e na mídia, a atividade econômica no Brasil vem entregando resultados cada vez piores. Diz-se que os cortes se fazem necessários como forma de recuperar a “confiança do investidor”. Ora, capitalista não vive de confiança, mas de lucro! Lucro esse que continuará tão pressionado quanto mais deprimida estiver a demanda por seus produtos. E quanto mais incerto esse empresário estiver a respeito do futuro dessa economia em recessão, menos se sentirá “confiante” para investir, e mais tenderá a reter seus recursos por mais tempo, o que, por sua vez, piora a situação.

O raciocínio é bem simples: já que para todo comprador há um vendedor, e para todo poupador há um devedor, se todo mundo, individualmente, corta e economiza buscando melhorar sua própria situação, a situação coletiva de todos deteriora como resultado. Longe de resolver o problema, a política de austeridade – os cortes na previdência e na assistência social, nos direitos trabalhistas e no alcance dos bens públicos – apenas faz aprofundar essa situação, mantendo o salário e a capacidade de consumo em baixa, o desemprego e as dívidas em alta e, com isso, a atividade econômica deprimida, o que, por sua vez, ao diminuir cada vez mais a arrecadação de impostos, piora a situação fiscal do Estado. Eis, então, o grande paradoxo da política econômica do andar de cima, aquela voltada apenas para alguns poucos setores de interesse econômico, especialmente o financeiro, em detrimento do bem-estar coletivo: prometendo equilibrar as contas do Estado, aprofunda sua degradação, entregando resultado ainda pior. Na esteira disso vem, claro, um pacote de maldades; o previsível aumento da pobreza e da desigualdade, insegurança e revolta social. Por isso, essa agenda – que inclui o corte aos direitos trabalhista dos quais falamos aqui – foi implementada em vários lugares do mundo e fracassou retumbantemente, ampliando ainda mais os problemas que buscava combater. O mesmo está acontecendo no Brasil.

Qual o papel dos movimentos sociais e entidades sindicais nesse momento em que as pautas regressivas estão na ordem do dia?

Penso que o seu papel é de organização para a resistência coletiva, a mais unificada possível, em torno de um programa alternativo ao “austericídio” que vem sendo implementado por este governo, que, ademais, também por não ter sido eleito nas urnas, não tem legitimidade social para fazê-lo. Não há, em hipótese alguma, como aceitar ou contemporizar com esse (não) programa em andamento, ao que cabe apenas oposição frontal e enérgica. Junto disso, é fundamental uma postura ao mesmo tempo combativa e propositiva, capaz de apontar e lutar por uma agenda alternativa – e, sim, há uma agenda alternativa! – que contribua para convencer e mobilizar outras pessoas e outros setores, reforçando, assim, o lado daqueles que desejam um país mais justo e igual. É preciso falar diretamente para as maiorias sociais, demonstrando que a verdadeira forma de sair da crise é distribuindo renda e combatendo energicamente a desigualdade, ampliando, e não diminuindo, os direitos dos trabalhadores.

Nesse esforço conjunto, precisamos superar a atomização, a separação do movimento social e do movimento sindical em pequenos grupos de demandas e interesses localizados, algo que há anos vem sendo promovido como parte da agenda de desmonte às garantias do trabalho, de modo a tonificarmos a resistência a esses graves ataques; amalgamando, assim, toda essa diversidade de atores em torno de alguns princípios fundamentais. Junto disso, penso que será necessário vencer o burocratismo, a cooptação do institucionalismo parlamentar, a dependência das nossas instituições políticas viciadas e capturadas, em suma, superar a moderação diante da virulência do ataque que vem do outro lado.

Precisamos refazer e reconstruir, desde baixo, nossos mecanismos de contra-poder. Não será fácil, mas é possível. Os problemas e desafios são enormes, mas um novo cenário político para as lutas sociais está se desenhando.

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