O governo obsceno que não entende de cinema

Bolsonaro ameaça extinguir Agência Nacional do Cinema, caso continue financiando conteúdo que julgue “impróprio” à família brasileira. Produtores expressam indignação: nem na ditadura militar houve tamanha afronta à liberdade

Regina Casé em ‘Que Horas Ela Volta?’ dirigido por Anna Muylaert
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Por João Soares, no DW Brasil

Em 1976, as salas de cinema do Brasil ficaram lotadas como nunca antes. O motivo era a exibição de Dona Flor e seus dois maridos, uma adaptação do romance de Jorge Amado. Em plena ditadura militar, cenas de sexo tórridas embalavam o triângulo amoroso vivido por uma viúva dividida entre o espírito do ex-marido boêmio e a formalidade do novo casamento com um médico.

“Possivelmente, pelo conceito de [Jair] Bolsonaro sobre pornografia, o filme seria enquadrado dessa forma”, supõe o produtor do longa, Luiz Carlos Barreto, de 91 anos. Ele faz referência à intenção anunciada pelo presidente da República de filtrar as obras que podem receber verbas públicas.

“Vai ter um filtro, sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, passarei ou extinguiremos”, afirmou Bolsonaro na sexta-feira (19/07). Questionado sobre a quais filtros se referia, ele respondeu: “Culturais, pô.”

O presidente já havia aventado a possibilidade de peneirar produções na véspera, durante a cerimônia de assinatura do decreto que transferiu o Conselho Superior do Cinema (CSC) da estrutura do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. O órgão é encarregado de formular políticas para o setor.

Na ocasião, Bolsonaro também defendeu a transferência da sede da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para a capital federal. “A Ancine, a sede, eu acho que é no Leblon. Virão para Brasília. Aquelas noites badaladas, muita festa… vão fazer em Brasília agora essa festa”, afirmou.

Os planos do presidente para a Ancine vêm tendo intensa repercussão no setor. A autarquia é responsável pelo fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica nacional. A agência conta com dois mecanismos de incentivo: a Lei do Audiovisual e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

A Lei do Audiovisual é um mecanismo de isenção fiscal similar à Lei Rouanet, legislação criada em 1991 que permite a captação de recursos para projetos e ações culturais em troca de incentivos fiscais a cidadãos e empresas que tenham interesse em patrociná-los. No caso da Lei do Audiovisual, a Ancine aprova o projeto para captação de recursos, e cabe ao produtor buscar empresas dispostas a utilizar o benefício da renúncia em seu projeto.

O FSA, por sua vez, é um fundo criado em 2008 com os recursos provenientes da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). Trata-se de uma taxa que recai sobre o próprio setor sempre que uma obra é exibida publicamente.

Portanto, os recursos destinados ao fomento do setor audiovisual se originam nele próprio, e não “competem” com as verbas destinadas para outras áreas no Orçamento Geral da União, como saúde e educação. Por lei, essas verbas só podem ser utilizadas para o desenvolvimento do setor. Mesmo assim, entre 2013 e 2018, dos 7 bilhões de reais arrecadados pelo FSA, metade foi contingenciada pelo governo, tendo os recursos sido utilizados para reduzir o déficit primário.

“Afronta à liberdade de criação”

A discussão sobre os efeitos da mudança administrativa do CSC para a Casa Civil, tema do decreto editado pelo presidente, acabou ficando em segundo plano após as declarações de Bolsonaro, entendidas como uma forma de censura à produção artística.

Selecionado neste mês para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, entidade baseada nos Estados Unidos e responsável pelo Oscar, Luiz Carlos Barreto afirma que nem na ditadura militar houve tamanha afronta à liberdade de criação no cinema. Ele lembra que, após Dona Flor ser alvo de censura do então ministro da Justiça Armando Falcão, o presidente Ernesto Geisel liberou a veiculação depois de assistir ao filme.

“O regime militar, sobretudo no governo Geisel, foi a era de ouro do cinema brasileiro. Os melhores filmes de contestação e defesa da democracia e dos interesses populares e nacionais foram feitos nesse período. Atingimos uma participação de 40% do mercado em termos de frequência e receita da exibição cinematográfica, e chegamos a produzir 150 filmes por ano”, recorda o produtor, que também assina os filmes Terra em transe (1967) e Bye Bye Brasil (1980).

Para justificar a necessidade de haver um filtro no financiamento público ao audiovisual, Bolsonaro tem utilizado como exemplo o longa Bruna Surfistinha, de 2011, no qual Deborah Secco interpreta o papel de uma famosa prostituta carioca. Embora tenha dito que não assistiu ao filme, ao qual se refere como “pornográfico”, o presidente entende tratar-se de uma ameaça às famílias.

“O que está decidido? Dinheiro público não vai ser usado em filme pornográfico. E ponto final. Acho que ninguém pode concordar com isso”, defendeu o mandatário. “Estamos estudando a possibilidade. Tem que ser lei, voltar a ser agência ou quem sabe extingui-la. Deixa para a iniciativa privada fazer filme. Já viram os títulos dos filmes do nosso Brasil que estão no mercado? Pelo amor de Deus!”

Os números do setor audiovisual

Em 2016, o setor audiovisual superou a contribuição da indústria farmacêutica ao PIB brasileiro, com uma fatia de 0,46% correspondente a uma cifra de 25 bilhões de reais. O setor emprega mais de 330 mil pessoas e movimenta impostos diretos e indiretos. A participação na economia supera também as indústrias têxtil e de eletrônicos.

Alvo da indignação do presidente, Bruna Surfistinha atraiu mais de 2,1 milhões de espectadores, gerou mais de 400 empregos diretos e indiretos e teve receita superior a 20 milhões de reais. Considerando-se os gastos com serviços anexos às salas de cinema, estima-se que a produção tenha movimentado mais de 10 milhões em impostos diretos e indiretos.

“Vou continuar lutando para falar de assuntos que me interessam, como prostituição e hipocrisia. É um filme muito bem-sucedido”, disse o produtor do filme, Roberto Berliner, em resposta às posições do presidente.

Em dezembro do ano passado, o executivo Erik Barmack, vice-presidente de conteúdo original internacional da plataforma de streaming Netflix, afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que o Brasil está entre os três principais mercados da empresa no mundo.

Justamente pelo porte dessa atividade, um segmento importante do setor defende que a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual sejam alocados no Ministério da Economia, que incorporou a pasta da Indústria e Comércio no início do novo governo. É o que estava previsto na medida provisória que criou a agência, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

“A indústria cultural tem grande potencial econômico e deve ser planejada e gerida de uma forma não amadora. Ao elaborar o plano estratégico da medida provisória, queríamos colocar o Brasil numa rota de planejamento para a instalação e desenvolvimento de uma grande indústria audiovisual e cinematográfica. Isso só é possível no Ministério da Economia. Não queremos mais ser tratados como simples ornamento da sociedade”, argumenta Luiz Carlos Barreto.

Desde o fim do primeiro governo de Dilma Rousseff, o setor pressionava para que o Conselho Superior do Cinema voltasse para a Casa Civil, demanda atendida no decreto assinado por Bolsonaro. A avaliação era de que a transferência para o Ministério da Cultura, iniciativa da ex-presidente enquanto ministra da Casa Civil, afetava a importância do órgão e conferia menor apelo às convocações realizadas a ministros que integravam o colegiado.

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