O dia em que Brasília viveu seu Capitólio

Violência bolsonarista na diplomação de Lula aponta: a reconstrução nacional exige punir ataques à democracia. Governo “sainte” cala-se – e vazio político é ocupado pela chapa vencedora, que promete: não haverá anistia ao caos planejado

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Por Rodolfo Lago, no Congresso em Foco

Neste momento, a única coisa que Flávio Dino é oficialmente é senador eleito pelo PSB do estado do Maranhão. O fato de ter sido anunciado pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva como futuro ministro da Justiça não lhe confere nenhuma autoridade.

No entanto, por volta da meia-noite desta segunda-feira (12), era Flávio Dino quem aparecia ao lado do secretário de Segurança do Distrito Federal, Júlio Cesar Danilo Souza Ferreira, para, em uma entrevista coletiva, afirmar que os responsáveis pelos atos terroristas do dia seriam responsabilizados. Ao lado dos dois, uma outra pessoa que oficialmente ainda é somente um delegado: o futuro diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues.

Enquanto Dino já falava como autoridade, Andrei já falava como chefe dos policiais federais e Júlio Cesar parecia ali reconhecer como real a autoridade de ambos, o atual ministro da Justiça, Anderson Torres, jantava em um restaurante de Brasília como se nada estivesse acontecendo.

São tempos estranhos. Já eram tempos estranhos. O Congresso Nacional discute no momento uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) cujo texto foi enviado pelo futuro governo, e não pelo governo atual. O mutismo de Jair Bolsonaro provoca um evidente vácuo de poder. E a física da política já ensina há tempos que nela não há vácuo, todo vazio acaba sendo ocupado.

A verdade, porém, é que nada disso acontece por acaso. O que se escreveu ontem em Brasília é o bizarro roteiro do Capitólio repetido como farsa. Lá, a confusão aconteceu quando o Congresso dos Estados Unidos faria oficialmente a confirmação da vitória eleitoral de Joe Biden contra Donald Trump. Assim é lá o processo. Aqui, a confusão aconteceu no dia em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) diplomou Lula como presidente eleito, que é por aqui a confirmação oficial do resultado. Na invasão do Capitólio, morreram cinco pessoas. Aqui, felizmente ninguém morreu. Por pouco, porque tentaram jogar um ônibus de cima de um viaduto.

O vácuo que leva Flávio Dino a assumir o posto de Anderson Torres enquanto ele janta tranquilo é algo pensado. Por mais que esteja de fato deprimido, Bolsonaro enclausura-se em seu mutismo justamente para produzir sinais trocados. O pouco que ele fala não é dito claramente para produzir variadas interpretações. Os bolsonaristas não são claramente estimulados para radicalizar, mas também não são desestimulados a deixarem seus acampamentos em frente aos quarteis do Exército. Acampamentos que só continuam porque têm financiamento de alguém para isso.

Grupos de whatsapp bolsonaristas têm se especializado a tentar decifrar mensagens em cada fiapo de fala de Bolsonaro. Decifrar como for mais conveniente para cada um. Ou seja: Bolsonaro nada diz claramente para não se comprometer claramente com os atos terroristas. Mas também nada faz para contê-los.

O caos produzido na segunda-feira é algo estrategicamente pensado. E não é difícil chegar a essa conclusão. Os bolsonaristas contestam uma eleição legítima. Feita da mesma forma como as eleições vêm sendo feitas há anos. Sem qualquer fraude comprovada. Não há, portanto, nenhuma razão objetiva para contestar o seu resultado.

Mas os grupos bolsonaristas na frente dos quarteis pedem uma “intervenção militar”. Apegam-se a uma interpretação distorcida do artigo 142 da Constituição, que define o papel das Forças Armadas. No caput do artigo, entre as atribuições definidas para as Forças Armadas está “a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer deles, da lei e da ordem”.

A interpretação distorcida que aí se faz é de que as Forças Armadas, caso haja uma grave situação de atentado à lei e à ordem, poderiam intervir para por fim ao caos. Então, produz-se o caos. Imaginando que, se o caos avançar em uma escalada incontrolável, se apele aos militares para que intervenham.

A primeira coisa que precisa ficar clara na leitura da Constituição é que qualquer ação de iniciativa das Forças Armadas nesse sentido é golpe. Como foi em 1964. Ações para garantir a lei e a ordem só podem acontecer “por iniciativa” de algum dos três poderes: Executivo, Legislativo ou Judiciário.

O decreto 3987 de 24 de agosto de 2001 dá somente ao presidente da República a prerrogativa de uso das Forças Armadas para ações de segurança no que ficou conhecido como Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Essa prerrogativa já foi usada algumas vezes. Michel Temer usou a GLO para acabar com a greve dos caminhoneiros.

O problema é que avançar a partir daí para o que parecem pretender os radicais bolsonaristas é avançar para bem longe das “quatro linhas da Constituição”. Bolsonaro poderia vir a aplicar a GLO para por fim a atos terroristas que ele, se não estimula claramente, claramente não desestimula? Se viesse a usá-la, teria que ser para pacificar o país e trazê-lo de volta à normalidade.

Nesse caso, a única normalidade possível é respeitar o resultado das eleições, que conferiram vitória a Lula. O uso das Forças Armadas neste momento já iria parecer um abuso. Mas qualquer uso para além da manutenção da democracia e dos seus processos seria desrespeitar a Constituição.

Mas os bolsonaristas tocam fogo na sua Roma, Brasília. No Palácio da Alvorada, Bolsonaro toca a sua lira. Como não sabe tocar nem campainha, produz, como diria Paulinho da Viola, “uma pausa de mil compassos”. Mas esse silêncio é deliberado. E ensurdecedor…

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