Labirintos de papel e tinta

Frequentador inverterado de livrarias, o catalão Jorge Carrión escreveu, com método notável, um ensaio fascinante sobre estes lugares festivos, generosos e ameaçados

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Por Alberto Manguel, na Revista 451 | Tradução: Heloisa Jahn

Resenha de:

Uma história da leitura e de leitores

De Jorge Carrión, Editora Bazar do Tempo

296 páginas, R$ 59,90, disponível na editora

Ensaio. Porque o tempo é uma invenção humana e cada medida de tempo uma arbitrariedade esperançosa, podemos escalonar nossas vidas recordando, por exemplo, os momentos mais felizes. Para a maioria dos leitores, esses momentos são aqueles passados numa livraria, explorando o labirinto das estantes, descobrindo novas Ariadnes entre as capas, conversando com esses benignos minotauros que são os livreiros. Jorge Carrión, frequentador inveterado de livrarias, dedicou um ensaio fascinante a esses lugares festivos, generosos e ameaçados; com o livro, ficou entre os finalistas do Prêmio Anagrama de ensaio.

O método de Carrión é literário: a partir de textos que narram histórias de livreiros, ele vai construindo uma espécie de cartografia universal livresca, da Europa à América do Sul, dos Estados Unidos ao Oriente Médio, da Austrália à África do Norte. Se houvesse livrarias na Antártida, sem dúvida Carrión as teria visitado para depois nos contar o que leem os pinguins.

“Livrarias: uma história da leitura e de leitores”. Jorge Carrión (Bazar do Tempo)

Carrión começa com a famosa novela de Stefan Zweig, Mendel dos livros, que narra a história de um livreiro sem livraria, um velho bibliófilo que vende sua mercadoria na mesa de um café e sabe de cor todos os títulos de todos os livros que lhe passaram pelas mãos. Carrión conclui seu ensaio com uma história da vida real, a do escritor americano David Markson, grande colecionador que legou toda a sua biblioteca à livraria Strand, de Nova York, para que seus livros ressuscitassem graças a novos leitores. Nas obras recicladas, esses leitores encontraram as abundantes e heteróclitas anotações e sublinhados de Markson, que dessa forma criavam novos textos, que Carrión chama de “romances fragmentários”.

Nas trezentas e poucas páginas emolduradas por essas duas histórias, visitamos as bibliotecas imaginárias de Borges, várias raras livrarias de viagem, as livrarias da Atenas de Konstantínos Kaváfis, os sebos e as aventuras livrescas de grandes leitores, a Sailor’s Reading Room de 1864 segundo Sebald, as livrarias em épocas de ditadura, o Bazar dos Livros de Istambul, a livraria mais antiga do Velho Oeste, a livraria como metáfora feminina, a livraria como sex shop, a livraria como teatro, as livrarias de todos os dias. Carrión observa que, em seus primórdios, livraria e casa editorial se confundiam, já que quem vendia os livros manuscritos era também quem os fabricava. Mais adiante, a confusão se estende para a biblioteca: assim, Montaigne chama de “sua livraria” a coleção de tomos reunidos na famosa torre.

Consequências imprevistas

Carrión sabe que as livrarias são lugares mágicos, de encontros, achados e epifanias, espaços que se definem, segundo Carrión, por suas “consequências imprevistas”. Assim, “James Boswell conhecerá Samuel Johnson na livraria de Tom Davies na Russell Street; Joyce encontrará uma editora para o Ulysses; Ferlinghetti decidirá abrir sua própria livraria em San Francisco; Josep Pla entrará durante a infância na livraria Canet de Figueras e selará seu pacto com a literatura; William Faulkner trabalhará em uma livraria como livreiro; Vargas Llosa comprará Madame Bovary em uma livraria no Quartier Latin de Paris muito depois de ter visto o filme em Lima; Jane Bowles encontrará seu melhor amigo de Tânger; Jorge Camacho comprará Celestino antes del alba [Celestino antes do amanhecer] em uma livraria em Havana e se tornará o maior defensor de Reinaldo Arenas na França; um psiquiatra irá aconselhar um jovem infrator com o sobrenome Limónov que se aproxime da Livraria 41 de uma cidade russa de província, e isso o tornará escritor; […] em uma noite de 1976, Bolaño recitará, na livraria Ghandi na Cidade do México, o ‘Primeiro Manifesto Infrarrealista’; Cortázar descobrirá a obra de Cocteau; Vila-Matas encontrará a de Borges”. Se houvesse um gênero literário para a livraria, sem dúvida seria o de fazer listas.

Destruição

Obviamente, nem tudo nesse livro delicioso é anedota divertida, notícia revelatória ou evento histórico: depois das histórias de encontros maravilhosos e milagres literários, Carrión nos fala da destruição de livrarias que, como a das bibliotecas, acompanha na sombra a história da literatura. Como leitor do século 21, ele comenta também as universais livrarias eletrônicas que, na estratosfera, recebem nossas encomendas sem emoção e sem demora.

As livrarias virtuais não assustam Carrión. Ele nos relembra que em 1997 a Barnes & Noble (a gigantesca cadeia norte-americana de livrarias) denunciou a Amazon por publicidade enganosa (“esse oxímoro”, anota Carrión), por não ser, como constava no anúncio, “a maior livraria [bookstore] do mundo”, mas um book broker, um traficante de livros. “Agora”, diz Carrión, “é um traficante de qualquer objeto que apareça, menos dos e-readers que não sejam Kindle”.

Não sei se os últimos caçadores de mamute ou os últimos viajantes de diligência chegaram a ter consciência de que eram protagonistas de uma elegia iminente, mas os leitores que ainda frequentam as livrarias de papel e tinta, esses lugares onde, segundo Carrión, “a literatura se torna mais física e, portanto, mais manipulável”, sabem que estão vivendo na véspera de uma inevitável nostalgia. Amazon e companhia são para o mundo do livro o que o sexo virtual é para o amor físico: um método eficaz para obter satisfação imediata, sem diálogo, sem compromisso e sem emoções profundas. Diante de tais solidões, o livro de Carrión tem o encanto do entusiasmo valente e da sensatez intelectual.

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