Irlanda: a luta contra o aeroporto clandestino da CIA

Em Shannon, aeroporto civil funciona como “pitstop da morte” dos EUA. Usado como base militar, viola neutralidade do país. Ativistas lutam contra seu uso para transporte de armas e extradições ilegais feitas pelos serviços secretos

Um avião Hercules KC-130J no aeroporto de Shannon. 28 de setembro de 2013. (Foto: Shannonwatch)
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Por Vijay Prashad, no Globetrotter, com tradução na Revista Opera

“Este não é um aeroporto comum”, me diz Margaretta D’Arcy em meio ao barulho de um C-130 Hercules que se prepara para decolar do Aeroporto Shannon, na Irlanda, por volta das 3 da tarde do dia 11 de setembro deste ano. Aquele gigantesco avião da Marinha dos Estados Unidos (com número de registro 16-4762) tinha chegado de Sigonella, uma Estação Aérea Naval dos EUA na Itália. Alguns minutos antes, um C-40A da Marinha dos EUA  (com número de registro 16-6696) havia deixado o aeroporto de Shannon com destino à base militar norte-americana em Stuttgart, na Alemanha, depois de ter chegado da Estação Aérea Oceana, no estado norte-americano da Virginia. O aeroporto de Shannon não é um aeroporto comum, conforme disse D’Arcy, porque, embora seja apenas um aeroporto civil, ele permite que aviões militares dos EUA frequentemente entrem e saiam dele, com o portão 42 do aeroporto funcionando como sua “base operacional avançada”.

Aos 88 anos, D’Arcy, que é uma lendária atriz e documentarista irlandesa, é membro regular da Shannonwatch, uma iniciativa composta por um grupo de ativistas que desde 2008 realiza vigílias mensais em uma rotatória perto do aeroporto. Os objetivos da Shannonwatch são “acabar com o uso militar dos EUA do Aeroporto de Shannon, interromper os voos de extradição pelo aeroporto e obter responsabilidade tanto das autoridades irlandesas relevantes quanto dos líderes políticos”. Edward Horgan, um veterano das forças armadas irlandesas que esteve em missões de paz no Chipre e na Palestina, disse-me que esta vigília é vital. “É importante que venhamos aqui todos os meses”, disse ele, “porque sem isso não há oposição visível” à pegada dos militares dos EUA na Irlanda.

De acordo com um relatório da Shannonwatch intitulado “Aeroporto de Shannon e a Guerra do Século 21”, o uso do aeroporto como base operacional avançada dos EUA começou em 2002-2003, e essa transformação “foi, e ainda é, profundamente ofensiva para a maioria dos irlandeses.”

O artigo 29 da Constituição irlandesa de 1937 estabelece as bases da neutralidade do país. Permitir que um exército estrangeiro use solo irlandês viola o artigo 2 da Convenção de Haia de 1907, da qual a Irlanda é signatária. No entanto, disse John Lannon, da Shannonwatch, o governo irlandês permitiu que quase 3 milhões de soldados dos EUA passassem pelo aeroporto de Shannon desde 2002 e até designou um oficial permanente para o aeroporto. “O espaço aéreo irlandês e o aeroporto de Shannon tornaram-se propriedade virtual da máquina de guerra dos EUA”, disse Niall Farrell, da Galway Alliance Against War. “A neutralidade irlandesa está realmente morta.”

Pitstop da morte

Os olhos de Margaretta D’Arcy brilham quando ela relembra seus tempos no Acampamento das Mulheres pela Paz de Greenham Common, localizado em Berkshire, na Inglaterra, e que envolveu ativistas do País de Gales, que se organizaram para impedir o armazenamento e a passagem de mísseis cruzadores nesta base militar britânica. O acampamento começou em 1981 e durou até 2000. D’Arcy foi presa três vezes durante esta luta (de um total de ao menos 20 prisões pelo seu ativismo antiguerra). “Foi bom”, ela me diz, “porque nós nos livramos das armas e a terra foi devolvida ao povo. Demorou 19 anos. As mulheres lutaram consistentemente até que conseguíssemos o que queríamos.” Quando D’Arcy foi presa, as autoridades prisionais a despiram para revistá-la. Ela se recusou a vestir as roupas de novo, fazendo um protesto nu e uma greve de fome. Assim, ela conseguiu que as autoridades prisionais parassem com as revistas íntimas. “Se você agir com dignidade, você força eles a te tratarem com dignidade”, ela diz.

Parte desse ato de dignidade inclui se recusar a permitir que os aeroportos de seu país fossem usados nas guerras dos EUA no Iraque e no Afeganistão. Desde 2002, diversas pessoas corajosas entraram no aeroporto e tentaram inutilizar aeronaves dos EUA. Em 5 de setembro de 2002, Eoin Dubsky pixou “De jeito nenhum” em um avião de guerra dos EUA (sendo multado por isso); e em 29 de janeiro de 2003, Mary Kelly entrou na pista de pouso e decolagem com um machado em mãos e atingiu um avião militar, causando 1,5 milhão de dólares em danos; ela também foi multada. Uma semana depois, em 3 de fevereiro de 2003, os Pitstop Ploughshares (um grupo de cinco ativistas do Movimento Trabalhista Católico) atacaram uma nave C-40 da Marinha dos EUA – a mesma que Mary Kelly tinha danificado – com martelos e uma picareta (uma história recontada vividamente por Harry Browne no livro Hammered by the Irish – “Marretado pelos irlandeses”, em tradução livre – lançado em 2008). Eles também pixaram “Pitstop da Morte” em um hangar.

Os Pitstop Ploughshares, que entraram no aeroporto de Shannon e marretaram um avião dos EUA. (Foto: Indymedia)

Em 2012, Margaretta D’Arcy e Niall Farrel marcharam sobre a pista de pouso para protestar o uso do aeroporto por aviões estadunidenses. Presos e condenados, eles ainda assim voltaram à pista no ano seguinte, vestindo macacões laranjas. Durante os julgamentos em julho de 2014, D’Arcy questionou as autoridades do aeroporto sobre por que eles não haviam prendido o piloto de um avião Hercules dos EUA. Ela perguntou: “Há dois tipos de regras – um para as pessoas como nós, que tentam impedir os bombardeios, e um para os que bombardeiam?”. O inspetor do Aeroporto de Shannon, Pat O’Neill, respondeu: “Eu não entendo a pergunta.”

“Esse é um aeroporto civil”, me disse D’Arcy enquanto apontava para a pista. “Como pode um governo permitir o uso militar de um aeroporto civil?”.

Extradições extraordinárias

O governo dos Estados Unidos começou a transportar prisioneiros ilegalmente do Afeganistão e outros lugares para a sua prisão no campo de detenção da Baía de Guantánamo e outras prisões secretas na Europa, Norte da África e Oeste asiático. Esse ato de transportar prisioneiros se tornou conhecido como “extradição extraordinária”. Em 2005, quando Dermot Ahern, ministro de Relações Exteriores da Irlanda, foi questionado sobre os vôos de “extradição extraordinária” no Aeroporto de Shannon, ele declarou: “Se alguém tiver qualquer evidência de qualquer vôo do tipo, me ligue e eu imediatamente mandarei investigar”. A Anistia Internacional respondeu dizendo que tinha enviado evidências de até seis aviões fretados da CIA que haviam usado o Aeroporto de Shannon cerca de 50 vezes. Quatro anos depois, a Anistia Internacional produziu um relatório completo que mostrava que seu número anterior estava minorado, e que provavelmente centenas de vôos dos EUA desse tipo tinham passado pelo aeroporto.

Embora o governo irlandês ao longo dos anos tenha dito que se opõe a essa prática, a polícia irlandesa (a Garda Síochána) não embarcou nesses voos para inspecioná-los. Como signatária da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (assinada em 1953) e da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (adotada em 1984 e ratificada em 1987), a Irlanda tem o dever de impedir a colaboração com “extradições extraordinárias”, uma posição assumida pelo Conselho Irlandês para as Liberdades Civis. Em 2014, os parlamentares irlandeses Mick Wallace e Clare Daly foram presos no aeroporto de Shannon por tentarem revistar duas aeronaves estadunidenses que eles acreditavam transportar “tropas e armamentos”. Eles ficaram frustrados com as falsas garantias do governo irlandês. “Como eles sabem? Eles revistaram os aviões? Claro que não”, disseram Wallace e Daly.

Enquanto isso, de acordo com o relatório da Shannonwatch, “em vez de tomar medidas para identificar envolvimentos anteriores em extradições ou para evitar mais cumplicidade, sucessivos governos irlandeses simplesmente negaram qualquer possibilidade de que aeroportos ou o espaço aéreo irlandeses fossem usados ​​por aviões de extradição dos EUA”.

Em 2006, Conor Cregan andava de bicicleta perto do Aeroporto de Shannon. A inspetora de polícia do aeroporto Lillian O’Shea, que o reconheceu dos protestos, o confrontou, mas Cregan foi embora. Ele acabou sendo preso. No julgamento de Cregan, O’Shea admitiu que a polícia foi instruída a parar e assediar os ativistas no aeroporto. Zoe Lawlor, da Shannonwatch, me contou essa história e depois disse: “assédios como esses reforçam a importância de nossos protestos.”

Em 2003 e em 2015, o Sinn Féin – o maior partido de oposição na Assembleia da Irlanda do Norte – apresentou uma Lei de Neutralidade para consagrar o conceito de neutralidade da Constituição irlandesa. “O governo”, disse Seán Crowe, do Sinn Féin, “vendeu a neutralidade irlandesa completamente, contra o desejo do povo”. Se a ideia de neutralidade for adotada pelo povo irlandês, será pelos sacrifícios de pessoas como Margaretta D’Arcy, Niall Farrell e Mary Kelly.

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