Fake news, uma seita à parte infiltrada no cristianismo

Estudo aponta: 77% dos evangélicos afirmam ter recebido notícias falsas em “grupos da igreja” no WhatsApp – o dobro que outras religiões. Fortes vínculos comunitários – e peso eleitoral das congregações evangélicas – explicam o fenômeno

.

Por Mariama Correia, na Agência Pública

Líder de jovens na congregação evangélica Assembleia de Deus do Amor, no bairro dos Bultrins, em Olinda (PE), Angélica Cruz, 29 anos, está em pelo menos quatro grupos da igreja no Whatsapp. Diz que a maioria serve para troca de mensagens devocionais entre membros e a liderança. “O aplicativo virou uma ferramenta principal de comunicação na pandemia. Serve pra gente trocar mensagens de apoio e informações entre os irmãos, como vagas de emprego e oportunidades”, contou à Agência Pública.

O uso intenso do Whatsapp para a prática religiosa fortalece redes de desinformação no segmento evangélico, segundo relatório de pesquisa “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado em primeira mão pela Pública. A live de lançamento do relatório Cami será no dia 30 de agosto, no canal do Youtube do Instituto de Estudos da Religião (ISER), às 14h.

A pesquisa mostra que 49% dos evangélicos da amostra receberam mensagens de conteúdo falso ou enganoso em grupos relacionados à sua religião. Isso quer dizer que praticamente a metade dos evangélicos entrevistados receberam notícias falsas enviadas em grupos da sua comunidade de fé

Os dados consideram 1650 respostas coletadas em congregações Batistas e das Assembleias de Deus e grupos de diálogo do Rio de Janeiro e do Recife. Também foi aplicado formulário online com pessoas de todas as religiões e sem religião. Essa coleta aconteceu em 2019.

Na pesquisa online, com abrangência nacional, participaram pessoas de diferentes religiões e com nível superior – o segmento que possui maior percepção em relação à circulação da desinformação. Nesse grupo, os dados sobre o recebimento de notícias falsas em grupos ligados à religião foram ainda maiores, com 77,6% dos evangélicos tendo afirmado receberem desinformação por grupos ligados à sua religião no Whatsapp. Em comparação, a coleta de dados online mostrou que 38,5% dos católicos, 35,7% dos espíritas e 28,6% de fiéis de religiões afro-brasileiras afirmaram ter recebido mensagens falsas nos grupos de suas religiões.

Sobre o uso do Whatsapp especificamente, a pesquisa aponta que entre os evangélicos, 92% participam de grupos ligados à sua religião no WhatsApp. Em comparação, 71% dos católicos, 57% dos espíritas e 66,7% dos fiéis de outras religiões entrevistados, disseram fazer o mesmo. “Não é a religião que interfere na maior presença de desinformação nos grupos de WhatsApp dos evangélicos, mas elementos relacionados à prática da religião, como o uso das redes sociais”, apontou o coordenador da pesquisa, o sociólogo e diretor do Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ, Alexandre Brasil.

Um desses elementos mapeados pelos pesquisadores seria a confiança interpessoal. Para 33,3% dos evangélicos entrevistados, pessoas conhecidas são mais consultadas como fontes de informações do que veículos jornalísticos e/ou mecanismos de busca na internet. E 13,2% disseram que os pastores e irmãos da igreja representam a fonte mais confiável de notícias. “É importante lembrar que onde circula informação também circula desinformação. Não há como evitar que esses fluxos de mensagens circulem de forma separada, pois o intuito é que tenha aparência de informação confiável. O uso intenso do WhatsApp, somado à uma forte presença da confiança interpessoal são fatores que parecem sim tornar os evangélicos, em algum nível, suscetíveis à desinformação”, explicou Alexandre Brasil.

Não checam e não se incomodam

O pesquisador explica que a pesquisa partiu da hipótese de que grupos onde há maior organicidade e confiança entre os participantes, são potencialmente espaços em que há maior circulação de desinformação. O grupo religioso, no caso o evangélico, foi escolhido por ter o perfil de uma “intensa vida comunitária, pela presença de laços de confiança e pela realização de reuniões regulares.” “Também se considerou a existência de reportagens que indicavam sites e influenciadores ligados ao segmento evangélico como destacados disseminadores de fake news”, acrescentou.

O relatório também ressalta que os evangélicos têm uma grande representatividade nas decisões eleitorais, considerando que 31% da população brasileira se declara evangélica, segundo Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), realizado em 2018.

Entre os respondentes, 23,6% dos evangélicos disseram não ter o costume de checar notícias. De acordo com o relatório, quase 30% dos evangélicos entrevistados admitiram que já compartilham notícias falsas, sendo que 8,1% fizeram “mesmo sabendo que era mentira, mas por concordarem com a abordagem”.

“Os menos preocupados seriam pessoas de mais idade, menor escolaridade, menor renda e com menores habilidades no uso de dispositivos eletrônicos (capacidade de editar conteúdos de vídeo, áudio e imagens ou administrar perfis). Por outro lado, não é possível afirmar, a partir dos nossos dados, que pessoas com maior renda, maior escolaridade e com maior habilidade para o uso de dispositivos eletrônicos veiculem menos mensagens falsas”, explicou Alexandre.

A confiança na pessoa que enviou a mensagem basta para que se encaminhe a notícia falsa a outras pessoas, diz o pesquisador. “Entre os evangélicos entrevistados, identificamos que, para um terço, a confiança no emissor é o fator que consideram para validar uma mensagem recebida como autêntica”

Com relação aos conteúdos, 61,9% dos evangélicos entrevistados disseram que notícias falsas com temas políticos são as mais recorrentes. Alexandre Brasil conta que quando o projeto de pesquisa foi apresentado, ainda “não se tinha percepção da escala e da centralidade que a disseminação de desinformação tomaria no Brasil durante o pleito eleitoral”, quando os eleitores evangélicos foram fundamentais para a vitória de Jair Bolsonaro.

A saúde foi outro tema indicado como recorrente. Contudo, os dados não se relacionam diretamente com o quadro de “desinfodemia”, ou seja, desinformação específica sobre a covid-19 e a crise de saúde pública, porque foram colhidos antes da pandemia.

A Pública vem mostrando as conexões entre essas redes de desinformação, tanto com evangélicos conservadores quanto com outros segmentos aliados ao governo. As reportagens revelam que grupos de WhatsApp e de outras redes sociais continuam sendo utilizados para fazer circular conteúdos falsos, como propagandas antivacina e discursos negacionistas na pandemia. Também para reverberar ataques à democracia, a defesa do voto impresso e outras narrativas bolsonaristas.

O combate à desinformação nas redes evangélicas também tem sido feito pelo Coletivo Bereia, pioneiro no Brasil em verificações de fakes news nesse segmento. A iniciativa de jornalistas cristãos faz parte da Rede Nacional de Combate à Desinformação. “O Coletivo Bereia foi criado em outubro de 2019 (ano da coleta de dados da pesquisa) a partir da demanda de ação que os resultados da pesquisa da UFRJ impôs. Consideramos o projeto uma prestação de serviço identificada como jornalismo colaborativo de checagem de conteúdo especializado em religião. Desde o primeiro mês de atuação os resultados de público e parcerias foram altamente positivos, o que atribuímos ao ineditismo e a extrema relevância desta atividade”, diz Magali Cunha, jornalista e pesquisadora de Comunicação e Religiões, que coordena o coletivo.

O pesquisador da UFRJ, Alexandre Brasil diz que não é possível fazer uma associação direta entre os resultados da pesquisa e as redes de desinformação bolsonaristas, mas acredita que há “um direcionamento e um investimento do presidente em relação ao público evangélico”, que representa uma base importante do seu governo e “tem mobilizado tempo e manifestações concretas de atenção, tanto em seus discursos (de Bolsonaro), nas nomeações ou sinalizações ao eleitorado e suas lideranças como no caso da indicação ao STF (do advogado geral da União e pastor presbiteriano André Mendonça), ou ainda na presença de personalidades ligadas ao segmento evangélico nos ministérios”.

Grupo de WhatsApp é o novo ir à igreja

O relatório da UFRJ mostra ainda que a tríade da vida cristã digital é composta por aplicativos para leitura da Bíblia, WhatsApp e Google. São esses os principais aplicativos usados pelos evangélicos entrevistados. E, se a ida frequente à igreja é algo que caracteriza os evangélicos, o envolvimento com a comunidade de fé via grupos de WhatsApp passou a ser um diferencial desse segmento em relação aos outros segmentos religiosos e à média da população brasileira. “Esse achado é anterior à pandemia, mas certamente se ampliou nesse novo contexto. O ponto central que o relatório indica é que grupos com níveis de organização semelhantes, com forte vida comunitária e laços fortes de confiança também são mais suscetíveis às fake news”, diz Alexandre, que aponta para a necessidade de uma ação intencional de formação de usuários que atuem de forma crítica em relação às mídias digitais. “A busca de uma leitura crítica implica em ir além da capacidade de uso das ferramentas digitais e envolve uma perspectiva ampla sobre a realidade e as implicações prejudiciais que representam a disseminação das mentiras. Suas ameaças à saúde pública, à integridade das pessoas e mesmo à democracia representam uma realidade preocupante”, alerta.

Leia Também: