“Excludente de ilicitude”, ameaça às periferias

Proposta, que compõe o Pacote “Anticrime” de Moro, pode avançar hoje, na Câmara. Se aprovada, livrará da Justiça agentes de segurança que matam ou cometem abusos. Mas oposição cresce, após morte da menina Ágatha

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Por Lorraine Carvalho Silva, no Justificando

Não é considerado ao Código Penal ato ilícito ações praticadas para repelir injusta agressão, desde que usados meios necessários de modo moderado. A legítima defesa prevista em nosso ordenamento jurídico em conjunto com outros mecanismos, como os “autos de resistência”, dão conta de garantir a impunidade de execuções contra jovens negros e pobres no Brasil. Das 65.602 mortes intencionais no Brasil, 75% das vítimas são negras, de acordo com o Atlas da Violência deste ano.

As propostas inseridas no denominado “Pacote Anticrime”, nesse sentido, têm o potencial de agravamento desse cenário de genocídio da juventude negra, afinal visam ampliar as hipóteses de interpretação da legítima defesa e de excludentes de ilicitude especificamente a agentes de segurança pública.  

Dentre as alterações, o pacote propõe substituir a expressão “repelir” por “prevenir”; incluir um parágrafo que pode afastar a aplicação pena se o excesso na prática do ato decorrer de “medo, surpresa ou violenta emoção”; e acrescentar uma legítima defesa destinada a agentes de segurança que podem agir preventivamente a risco iminente de conflito armado, ou seja, não será considerado ilícito uma ação de agente de segurança que pressupor que corre risco de conflito. 

Não se trata apenas do aumento de execuções contra jovens negros, mas da intensificação do racismo como tecnologia estruturante nas políticas de segurança pública. Em um país que marginaliza e exclui uma geração a cada ano por meio de mortes por armas de fogo, intencionais e, em grande medida, praticada por agentes de estado, a apresentação de uma proposta de alteração legislativa que omite todos os dados produzidos quanto ao extermínio histórico de jovens negros e que não é coerente tampouco com os dados produzidos pelo próprio governo federal, não surpreende. 

Em verdade, o projeto de lei reafirma que o extermínio da população negra é política pública. A morte de um jovem negro não afeta somente o corpo físico, mas desestrutura a família, os amigos, a comunidade, a população negra como um todo, a qual é forçada a sobreviver em meio à guerra. A aprovação da proposta de excludente de ilicitude do Ministro Sergio Moro vai ao encontro da previsão de Achille Mbembe: opressões estruturais como o racismo, classismo, colonialismo no século XXI serão aprofundadas “para guerras mais assimétricas”.

O “Pacote Anticrime”, portanto, vem aprofundar a impunidade de quem tirou a vida de mais um jovem negro no Brasil, todavia, os movimentos negros, organizações da sociedade civil, as mães sabem que a desestrutura está na responsabilização do Estado, como agente perpetuador do genocídio, o qual já foi reconhecido nacional e internacionalmente. 

As propostas do pacote violam recomendações da sentença do caso “Favela Nova Brasília”, em que o Brasil foi condenado em fevereiro de 2017 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – OEA. Dentre as recomendações – até hoje descumpridas – está a criação de mecanismos mais efetivos para investigação e responsabilização em casos de assassinatos por agentes do Estado.

No século XIX, a elite branca brasileira já tinha no imaginário a figura do negro como personificação do medo, como já afirmou Célia Marinho. O “Pacote Anticrime” é mais uma figura do século XXI da perpetuação desse imaginário que mantém todos os poderes do Estado fielmente articulados no objetivo de “fazer morrer” quem foi construído como inimigo. 

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