A busca pelo olhar do outro

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Psicanalista lança novo livro e propõe: “É imprescindível que os intelectuais que se consideram de esquerda tentem se colocar, ao escrever sobre as mazelas brasileiras, no ponto de vista do outro”

Entrevista publicada pela Revista Cult

Maria Rita Kehl foi jornalista antes de se tornar psicanalista. Juntando essas disciplinas, desenvolveu uma forma de crônica em que analisa o noticiário identificando sintomas da psique brasileira. O estilo carregado de coloquialidade e referências pop facilitou a comunicação com os leitores dos jornais, revistas e sites para os quais tem escrito.

No ano passado, ela exerceu essa atividade regularmente em O Estado de S. Paulo, origem da maior parte dos textos reunidos em 18 crônicas e mais algumas (Boitempo).

A autora lança, portanto, uma obra de apelo mais geral do que O tempo e o cão (Boitempo), tríade de ensaios sobre a depressão que lhe rendeu o Prêmio Jabuti na categoria não ficção.

Kehl teve sua coluna interrompida em outubro passado, logo após publicar uma crônica sobre o voto da classe média. “Dois pesos…”, na qual critica mensagens que corriam pela internet desqualificando o voto dos beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família, tornou-se popular nas redes sociais e marcou o debate eleitoral. 

Essa e outras crônicas que buscam expor os recalques da sociedade brasileira estão na coletânea, que deve chegar às livrarias no final do mês.

CULT – Ao descrever o filme Cronicamente inviável, a senhora fala da “indignação moral meio infantil” que acometeu o diretor Sérgio Bianchi, que depois amadureceria. O que impede a classe média de amadurecer politicamente?

Maria Rita Kehl – Não sei se posso responder com justeza a essa pergunta. A primeira resposta que me ocorre é: o conforto relativo que se pode comprar (ou que se espera poder comprar) para suprir as carências do Estado no plano da vida privada não impede, mas poupa boa parte da classe média de amadurecer sua perspectiva de cidadania, que remete necessariamente à vida pública.

Quem acede à classe média planeja imediatamente conseguir pagar pela educação dos filhos, pela saúde, pela segurança na rua em que mora etc., e com isso, ufa!, deixar a política pra lá.

No Brasil, todos conhecem e denunciam a corrupção, a injustiça social, o desleixo dos políticos, mas numa perspectiva fatalista, do “este país não tem jeito mesmo…”, e não numa via de engajamento em protestos transformadores.

Que recalques da cultura brasileira a senhora diria que melhor evidenciou nos textos deste livro?

O mais importante, o mais onipresente, é o recalque da brutal violência da desigualdade social brasileira. É imprescindível que os intelectuais que se consideram de esquerda tentem se colocar, ao escrever sobre as mazelas brasileiras, no ponto de vista do outro.

Às vezes escuto dizerem que os pobres no Brasil não sabem falar sobre sua perspectiva de classe. Sabem, sim, e com muita propriedade. É só escutá-los. O que eles não têm é acesso aos meios de divulgação de sua palavra – o que já revela, de saída, a brutalidade da exclusão a que me refiro.

Sem perder o rigor da linguagem psicanalítica e a referência a dados jornalísticos, a senhora usa bastante a linguagem coloquial. De onde vêm a gíria e o ditado popular em sua escrita?

Sem demagogia, acho que antes de mais nada o uso da linguagem coloquial, para qualquer escritor, vem da vida, da circulação pelo mundo.

Creio que a conquista da linguagem acadêmica, ou daquela que chamamos de “elevada” – e que tem grandes méritos, como se deve reconhecer –, exige o recalque de parte dessa memória que é auditiva, infantil ou adolescente, assim como de todas as expressões que circulam nas letras de música popular, nas gírias, naquilo que os poetas dos anos 1960/70 chamavam de “a fala das ruas”.

Mas é bom lembrar que a sensibilidade para escutar as expressões populares também vem da clínica. Freud, o criador da psicanálise, não excluiu de seus conceitos teóricos a origem popular das expressões que escutou da boca de seus pacientes.

Embora diga que prefere adiar suas “veleidades literárias” para a velhice, a senhora testa os limites formais da crônica em textos como “Sua única vida”, que evoca a morte de um jovem em uma chacina em São Paulo: “Pensou em guaraná maconha Maria Inês calcinha…”. Sente que a hora da literatura está chegando em sua vida?

Gostaria que fosse assim, mas não posso afirmá-lo. Esse texto foi realmente escrito sob forte emoção, eu me coloquei no lugar do menino baleado e pensei: como é você perceber que está morrendo e não poder nem pedir socorro? O que será que passa na cabeça de quem percebe que a vida chega ao fim aos 15, 16 anos?

Quanto à literatura, falta-me a imaginação do ficcionista. E falta-me, principalmente, tempo. A escrita literária exige um tempo de incubação, um tempo vazio, que no momento não tenho. Espero ter, um dia. Antes tarde do que tarde demais.

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