Entre Hamlet e Dom Quixote

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A luta pela democracia na Rússia é dura, mas há desdobramentos positivos, entre eles, o crescimento do ativismo político e da decepção com a autocracia

Por Maurício Santoro, Todos os Fogos o Fogo

Neste mês se completam 20 anos do fim da União Soviética e é bastante simbólico de que o aniversário seja marcado pelos maiores protestos pró-democracia na Rússia desde as mobilizações que levaram à queda do regime marxista. Sinal dos tempos, agora o Partido Comunista é uma das vozes que se manifestam contra a autocracia baseada em controle da imprensa, fraude eleitoral e perseguição de opositores (incluindo assassinatos) controlada pelo primeiro-ministro Vladmir Putin.

Olhando em retrospecto, o período de 1990-3 foi o de um extraordinário interlúdio de pressões populares por abertura democrática, que culminaram com a resistência pacífica e bem-sucedida à tentativa de golpe de Estado da linha dura soviética (1991). Significativo que apenas dois anos depois, o líder dos protestos, Boris Ieltsin, tenha se convertido no algoz que mandou bombardear o parlamento da Rússia.

É bastante conhecido como Putin ascendeu de um cargo de médio escalão na KGB para se tornar o homem forte da Rússia pós-comunista, articulando uma rede oriunda do aparato de segurança que domou os oligarcas que dominavam a economia, excluindo-os da política, lançou a devastadora segunda guerra da Chechênia e consolidou seu poder em meio à alta dos preços do petróleo e do gás e da cultura do medo – do terrorismo, do fundamentalismo islâmico, do declínio russo, etc. Sua principal base ideológica é o amálgama do nacionalismo com o reviver do cristianismo ortodoxo.

O quadro partidário russo é dominado pela “Rússia Unida”, a sigla guarda-chuva criada por Putin em 2001 para abrigar seus seguidores. Ela tinha dois terços do parlamento, mas agora, mesmo com a fraude, caiu para pouco mais de 50%. A oposição mais efetiva vem dos comunistas, com cerca de 15%. O Kremlin tem um partido da oposição consentida (“A Rússia Justa”) e há um grupo de extrema-direita com o nome adorável de Partido Liberal Democrata. A cláusula de barreira russa é inusitadamente alta – os partidos precisam de 7% dos votos para ter cadeiras no parlamento, e muitos tem os registros negados, pura e simplesmente, como a sigla de oposição liderada pelo ás do xadrez Garry Kasparov (“A Outra Rússia”).

Embora a Rússia seja considerada uma potência emergente, e forme uma das letras dos BRICS, seu status é antes o de um Estado rentista que usa os recursos do petróleo para tentar restaurar sua antiga área de influência, particularmente no Cáucaso, por guerras quentes e frias, como o uso político de seus suprimentos de gás natural. O país sofre uma severa crise demográfica (sua população encolhe) e a qualidade de seu ensino e da sua capacidade de inovação tecnológica são baixas.

A identidade nacional russa é um eterno conflito entre visões liberais, pró-Ocidente, e as que advogam um caminho próprio para o país. As primeiras costumam lamentar os acontecimentos históricos que afastaram a Rússia das principais transformações sociais da Europa: a longa ocupação mongol, o isolamento do Renascimento e da Reforma, o impacto muito limitado do Iluminismo, o fracasso da rebelião dos Dezembristas e da Revolução de 1905, a persistência da servidão e da autocracia.

O escritor Ivan Turguenev certa vez comparou os intelectuais russos como cincidos entre Hamlet (angústia crônica, indecisão) e Dom Quixote (utópicos, sem influência prática). Talvez isso possa ser aplicado também aos grupos pró-democracia. É uma luta dura, mas a Rússia de hoje tem desdobramentos positivos: o crescimento do ativismo político e da decepção com a autocracia, a importância de vozes independentes como as do blogueiro Alexei Navalny, o efeito contagiante da Primavera Árabe.

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Um comentario para "Entre Hamlet e Dom Quixote"

  1. Rudolph Bengochia disse:

    Hello,

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