SP, 13 de Junho: memórias da noite absurda

Testemunhos para uma investigação indispensável: que levou PM a encurralar e agredir centenas de manifestantes? Quem deu as ordens? Que pretendia?

Por Conectas

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Dez testemunhos para uma investigação indispensável: que levou PM a encurralar e agredir, por horas, centenas de manifestantes? Quem deu as ordens? Que pretendia?

Por Conectas

Há 70 dias, a Polícia realizava em São Paulo uma das mais violentas repressões a manifestações desde o fim da ditadura militar. Numa noite de horror coletivo, raramente vista em mais de 30 anos de democracia, milhares de pessoas que participavam de um protesto pacífico no centro da cidade se viram cercadas por tropas policiais, num labirinto violento que atravessou a noite de 13 de junho de 2013, e cujas trágicas consequências se fazem sentir ainda hoje, especialmente para os que carregarão sequelas físicas para o resto de suas vidas.

A Polícia Militar perseguiu, prendeu, agrediu e feriu indiscriminadamente não apenas manifestantes, mas também jornalistas e moradores dos bairros por onde a marcha passou. Mesmo muitas horas após o fim do evento, patrulhas policiais ainda percorriam ruas distantes do epicentro do acontecimento, vasculhando ruas e bares em busca de jovens que tivessem saído da marcha.

As informações emergem de 10 relatos gravados pela Conectas Direitos Humanos e apresentados aqui, juntos, pela primeira vez. A íntegra dos depoimentos se encontra com a organização. Eles sugerem que, em vez de direcionar a marcha num suposto sentido de dispersão, os policiais encurralaram milhares de pessoas num circuito de tiro com balas de borracha, saturado com bombas de gás e granadas de luz e som, ao longo de várias ruas da região central.

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Mas a obscuridade em torno da noite de 13/6 é tão grande que o Governo do Estado de São Paulo ignora até mesmo a Lei de Acesso à Informação. Na sexta-feira (23/08), venceu o prazo legal para que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo respondesse a 8 perguntas feitas pela Conectas com base nesta lei (12.527/2011). Depois dos 20 dias de prazo legal, prorrogados por mais 10, nenhuma resposta ainda foi dada, mesmo diante de perguntas tão simples quanto: “quem deu a ordem?”

De parte do governo, portanto, pouco se sabe. De parte dos agredidos, é impossível não saber. As histórias falam por si.

‘Senti o impacto da bala no olho. Fiquei cego’

S.A.S., de 31 anos, é fotógrafo, casado e pai de duas meninas, de 7 e 13 anos. Na noite do protesto, ele saiu para trabalhar. Faria fotos da marcha para a Agência Futura Press, mas acabou, horas depois, internado no hospital H.Olhos, depois de ter passado pelo 9 de Julho, onde recebeu três doses de morfina para controlar a dor de duas fraturas na órbita ocular. S.A.S. levou cinco pontos dentro do olho esquerdo, do qual ficaria definitivamente cego.

“Fui atingido por uma bala de borracha. Tenho quase 1,80m e a bala me atingiu exatamente no olho. Existe uma recomendação da Polícia Militar de utilizar essa bala da cintura para baixo. O policial foi contra o próprio regulamento da corporação. Ele atirou na altura da minha cabeça”, relembra.

Esta foi a mesma sensação que teve J.M., estudante de Direito de 22 anos. “Senti uma bala de borracha bem nas minhas costas. Olhei para trás, para ver o que acontecia. Vi uma viatura e um policial com uma arma. Nisso, senti outro tiro de bala de borracha atingindo a região da curva do pescoço com o ombro. Pode isso? Eu não estava fazendo nada, estava passando mal com o gás, fiquei para trás entre os que estavam fugindo, e foi bem no meu pescoço. Fiquei chocada por causa disso”, conta.

Casos como estes revelam o potencial de causar danos irreversíveis que as “munições menos letais” possuem quando utilizadas contra órgãos vitais e a curta distância.

“A dor foi instantânea, profunda, terrível. Todos os piores adjetivos com que você puder qualificar a dor, eu senti naquele momento. Meu olho inchou rapidamente, coloquei a mão e minha pálpebra já havia se fechado. Muito sangue começava a cair naquele instante e pensei: ‘fiquei cego. Não vou mais conseguir fotografar’. Foi a sensação que eu tive”, diz S.A.S.

Ainda que pessoas como eles quisessem evitar a polícia naquela noite, não teriam conseguido. De acordo com todos os relatos, não houve nenhuma ordem clara sobre que atitude adotar ou para aonde ir para fugir do tumulto. Não havia lugar seguro e a polícia perseguia as pessoas mesmo em regiões distantes do ocorrido, horas depois.

‘Foi uma emboscada. Fecharam todas as saídas’

A massa passou horas encurralada em ruas estreitas, sob o efeito de bombas de gás, balas de borracha e granadas e luz e som, rodando em falso dentro de um quadrilátero que envolve a Rua da Consolação, a Praça Roosevelt, a Rua Maria Antônia e a Rua Augusta, no Centro (ver mapa). De acordo com os relatos, era como se a polícia tivesse prendido todos numa grande armadilha de gás, explosões e violência.

“Percebi uma tropa da Polícia descendo a Consolação no sentido Centro, na direção dos manifestantes, enquanto outra tropa vinha da Rua Maria Antônia. Tive a sensação de uma emboscada porque eles saíram de ambos os lados, armados, disparando na direção das pessoas”, relembra o fotógrafo S.A.S.

“Estávamos numa situação de cativeiro criado num quarteirão gigante, um cativeiro organizado pela polícia. Você era obrigado a ficar ali, era obrigada a ver pessoas sendo agredidas, correndo o risco de ser agredida”, conta C.C., produtora cultural, revelando que a “emboscada” mencionada por S.A.S. se repetiu na Avenida Paulista. “Tinha muita polícia, muita cavalaria, caminhão da Tropa de Choque, e os policiais lançavam bomba por nada, para todos os lados.”

Ela conta que “as pessoas não sabiam para aonde ir. As pessoas se dispersavam e se acumulavam em outro lugar. O metrô estava fechado”. “Ficamos presas entre a Rua da Consolação e a Rua Augusta”, conta C.C., que diz que o pior momento foi “quando um grupo de 10 pessoas pedia para entrar na estação do metrô, para deixar o local. No meio do grupo havia uma senhora de 60 ou 70 anos. Eram pessoas que tinham saído do trabalho. Quando estávamos falando com o funcionário do metrô, chegaram quatro motos da polícia, em alta velocidade, uma delas quase me atropelando. Os policiais diziam: ‘Hoje não tem metrô, ninguém vai voltar para casa’, batendo com o cassetete nas pessoas. Cada um correu para um lado, mas não tinha para onde ir. As pessoas que estavam na calçada recebiam ordem de ir para a rua e as pessoas que estavam na rua eram mandadas para a calçada. Ninguém conseguia sair de lá.”

Mesmo quem buscou refúgio em lugar aberto, como a Praça Roosevelt, foi perseguido. R.F., estudante de Direito de 22 anos, disse que buscou a Praça porque intuía que a polícia reagia à perturbação do trânsito pela manifestação. “A surpresa foi quando eles começaram a tacar bombas em quem estava dentro da Praça. Não tinha nenhuma justificativa porque já estávamos na Praça, fora da Rua da Consolação”, conta.

“Eles estavam cercando a gente”, conta R.F., que depois de sair da praça, subiu no sentido da Avenida Paulista, única direção possível de ser tomada, segundo ele. “Todos se sentaram na calçada, todo mundo abaixou. Estávamos totalmente rendidos, morrendo de medo. Foi quando, para nossa surpresa, os policiais começaram a lançar bombas de gás lacrimogêneo em cima da gente. Como eles estavam nas duas esquinas, a gente tinha de passar por eles para dispersar. E eles sempre atirando balas de borracha. As pessoas caíam no chão, passavam umas sobre as outras, foi muito assustador”.

‘Me bateram muito’“Deram chutes e socos no meu rosto e barriga. Fiquei deitada no chão de um ônibus da polícia, com a cabeça debaixo de um banco enquanto um policial mantinha o pé em cima de mim. ‘Quer protestar? Protesta agora, sua patricinha vagabunda’, ele me dizia”, conta M.C., estudante de Artes Visuais, presa por volta das 20 horas do dia 13/6, na Avenida Paulista.

“Vai embora, sua prostituta”, diz ter ouvido de um policial, a estudante de Rádio e TV, A.L., de 24 anos, também na Avenida Paulista. Ela e o namorado contam que apanharam da polícia depois de serem xingados na mesa de um bar localizado num dos pontos por onde a marcha pretendia passar.

‘Procurei o nome dos policiais na lapela. Nenhum deles tinha’

Outra constatação comum entre as pessoas que foram agredidas por policiais é a de que muitos não portavam qualquer identificação pessoal. A impossibilidade de identificar eventuais autores de atos ilegais torna quase impossível responsabilizá-los.

“Procurei o nome dos policiais na lapela. Nenhum deles tinha”, conta A.G., agredida junto o namorado num bar da Paulista.

“Quando fui detida, um fotógrafo tirou todas as fotos nas quais aparecem os policiais que me agrediram, mas acredito que todos os que estavam na Avenida Paulista estavam sem identificação. As fotos mostram que o espaço onde deveriam estar as identificações estava vazio”, diz M.C., presa pelo Choque.

“Os policiais estavam muito insanos e descontrolados nessa manifestação. Estava muito desorganizado, parecia que os policiais não tinham um líder, porque cada um fazia uma coisa mais absurda que o outro, como deter pessoas, bater e depois soltar”, diz.

Discriminação na delegacia, IML e hospitais

Muitos dos entrevistados relataram as dificuldades para conseguir atendimento médico em hospitais públicos. Outros falaram do tratamento inadequado recebido em delegacias policiais. E, por fim, manifestantes feridos relataram problemas para fazer exames de corpo de delito no Instituto Médico Legal.

Um traço comum dos relatos foi o tratamento preferencial dado a policiais. Na Santa Casa, por exemplo, um dos entrevistados diz que os policiais que chegavam ao Pronto Socorro passavam na frente dos demais, quando o critério que deveria prevalecer é o da gravidade do ferimento.

No IML, segundo os relatos, manifestantes tiveram de se identificar e foram colocados de lado, para serem atendidos separados dos demais, com maior tempo de espera e, segundo eles, com menos atenção por parte dos funcionários.

“Fomos ao IML das Clínicas. Quando eu cheguei, havia umas 20 pessoas. A primeira pergunta que me fizeram foi ‘você é manifestante? Aguarde ali e aguarde direitinho’. Deixavam que todas as outras pessoas passassem na frente. O médico me olhou e perguntou também: ‘você estava na manifestação?’. Eu disse sim e ele respondeu: ‘Ah, tá bom’, antes de bater uma foto do meu menor machucado. ‘Mas é só isso mesmo?’, eu perguntei. Ele só me olhou. Não sei como funciona esse tipo de exame, mas achei ele preconceituoso”, relata A.L.

“Fui orientado, até mesmo pelo pessoal da Ouvidoria, onde eu fiz uma denúncia formal, me identificando, a fazer também um Boletim de Ocorrência. Meu advogado me orientou, mas não me senti impelido a ir até a 77, na Santa Cecília, porque percebi que estava indo fazer uma reclamação da polícia na própria polícia, então fiquei com medo, um pouco tenso. Não queria tomar chá de cadeira, aguentar ironia de escrivão”, conta J.G., de 30 anos.

“Vários policiais chegaram na Santa Casa, no Pronto Socorro, e foram atendidos antes de todo mundo. Nem sei se se trata de alguma lei municipal, estadual, enfim, nem sei se isso existe, mas foi algo que me revoltou. Meu braço estava com um corte profundo, havia muita gente ensanguentada com cortes na cabeça, com o corpo todo cheio de sangue, e os policiais com ferimentos, com luxações, algo assim, foram atendidos primeiro”, diz M.L., estudante de Gestão de Políticas Públicas, de 25 anos.

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