Síria, notável mudança

Inusitada aliança: atacada pelo exército turco, parte das milícias rebeldes curdas (as YPG) — alia-se ao exército de Damasco e se afasta dos Estados Unidos

Em cena rara, participantes de uma mesma manifestação, em Afrin (Síria) exibem cartazes do líder do PKK (marxista-autonomista), Abdullah Okalan, e do presidente da Siria, Hafez Assad

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Por André Ortega, na Revista Ópera

Tropas ligadas ao governo da Síria estão na cidade de Afrin para apoiar os curdos milicianos do YPG contra ofensiva turca. A região é alvo de operação conduzida pelo exército da Turquia em conjunto com rebeldes sírios.

As forças apoiadoras do governo nacional de Bashar Al-Assad chegaram na terça (20), na cidade que fica no extremo norte do país e próxima a fronteira turca. Houve confirmação oficial de porta-voz da liderança do YPG, Badran Jia Kurd, além das declarações da comunicação estatal síria. A composição das tropas é mista, incluindo soldados do Exército Árabe Sírio, membros das Forças Populares Sírias e membros de autodefesas de vilas xiitas das proximidades (Nubl e Zahra). Uma fonte local também reportou a presença de militantes do partido libanês Hezbollah.

A Operação Ramo de Oliveira, conduzida pelos turcos, completa 33 dias e vem sendo duramente criticada. Do ponto de vista humanitário, são denunciados os bombardeios massivos, enquanto do ponto de vista político questiona-se a violação da soberania da República Árabe Síria. A Turquia se defende dizendo que se trata de uma operação anti-terrorista, direcionada principalmente contra o YPG mas também contra outros grupos (os grupos lealistas também são chamados de terroristas pela Turquia).

A entrada de tropas leais a Damasco é de grande importância para o panorama geral do conflito. Territorialmente as forças estatais e as milícias curdas são os grupos mais representativos. O YPG está inserido numa coalizão criada pelos Estados Unidos chamada de “Forças Democráticas Sírias” (SDF), porém a potência norte-americana se recusou a apoiar os curdos em Afrin – a Organização do Tratado do Atlântico Norte, liderada pelos EUA e da qual a Turquia faz parte, somente se posicionou dizendo que “as preocupações turcas com a própria segurança são compreensíveis”.

A semana foi de declarações cruzadas e desinformação. Fontes diversas já falavam de acertos entre as milícias curdas e as forças sírias. O governo turco respondeu com ameaças, se referindo a “consequências” que as forças sírias sofreriam.  No entanto, na semana passada ocorreu a negativa do comandante do YPG em Afrin, Rojhat Roj, e ainda no dia 18 uma declaração contrária por parte do líder político do movimento. Ao mesmo tempo, o comandante curdo Sipan Hemo conclamava por uma intervenção do exército sírio que deveria “assumir o grosso da responsabilidade de repelir o ataque”. Um porta-voz político, Nuri Mahmmoud, também havia conclamado as tropas sírias a defender a região contra o que seriam pretensões neo-otomanas de anexação por parte da Turquia – acrescentou que defendem uma Síria unida, porém com federalismo.

Na terça, o que era possibilidade virou fato consumado, podendo paralisar ou escalar o conflito. Dessa vez, o porta-voz oficial do Presidente da Turquia (Recep Tayip Erdogan), anunciou que durante a noite um comboio de pick-ups lealistas foi repelido por bombardeios turcos. A mídia turca ecoou a declaração falando do “comboio terrorista repelido”. A posição oficial turca continua sendo a de tratar esses grupos como “terroristas xiitas isolados”, acrescentando que Erdogan já se comunicou com os líderes russo e iraniano.

A declaração da Turquia, no entanto, foi desmentida pelos comandantes curdo e sírio em Afrin, bem como por registros das tropas lealistas na cidade. É possível que esse jogo de palavras: “forças populares” da parte Síria e “terroristas xiitas” da parte turca seja uma maneira de evitar um conflito direto entre os Estados.

A RT publicou um vídeo do comboio, com o título informando o cessar dos bombardeios turcos com a chegada destas forças.

As informações de campo foram confirmadas por diferentes meios com fontes locais, dentre eles os veículos árabes Al-Masdar e SANA News, bem como a Reuters e a Sputnik russa.

Governo Sírio e Milícias Curdas

A relação entre o governo sírio e o YPG é bastante complexa. Ativistas e jornalistas descrevem uma rede contraditória de alianças e rivalidades envolvendo diversas partes – em tese, existem setores do movimento curdo mais próximos a Damasco. No início o YPG foi armado por Damasco seguindo uma estratégia de contenção dos rebeldes.

Afrin é um exemplo de localidade que foi abandonada voluntariamente pelo governo sírio cedendo lugar para as milícias curdas, sem confrontos militares.

A declaração de Badran Jia Kurd teve um componente ideológico importante por defender a integridade nacional do território sírio.

Por outro lado, Bashar Al-Assad sempre afirma em entrevistas que não aceitará tentativas de dividir a Síria a partir de um movimento curdo. Ainda acrescenta que o separatismo, de forma aberta o disfarçada, não tem apoio da maioria dos curdos sírios, que se espalham por todo país além das regiões de concentração ao norte – a mesma afirmação foi feita em relação ao federalismo, que deveria ser uma “decisão do povo sírio em conjunto, não a imposição de um fato consumado por forças armadas”.

O Presidente sírio também confirma nestas entrevistas que seu governo entregou armas e equipamentos para os curdos “combaterem o Estado Islâmico”.

Afrin é um bolsão que quebra a continuidade do território turco-rebelde no norte do país. Ao mesmo tempo, Afrin é cercada e privada da continuidade com o resto do território curdo.

A região já foi importante em outra articulação de tropas do governo com o YPG, precisamente na fase final da ofensiva governamental contra Aleppo em que houve coordenação dos ataques contra os rebeldes.

É certo que, a parte de alianças locais e pessoais, os dois lados lidam com considerações de realpolitik maiores que podem compelir um conflito mas neste caso geraram uma aliança – nesse há um encontro da necessidade de sobrevivência dos curdos com as prioridades políticas do regime sírio.

YPG significa “Forças Populares de Defesa” e foi criado pelo “Partido da União Democrática”(PYD). A organização foi criada como um partido de esquerda inspirado na ideologia do “Confederalismo Democrático”, formulada pelo antigo líder nacionalista curdo na Turquia, Abdullah Ocalan. Ocalan é a liderança histórica do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), que possuía uma formação marxista-leninista e travou uma longa guerra de guerrilhas contra o Estado turco.  É questionável tratar os dois partidos como a mesma organização, visto que o líder do PYD Saleh Muslim até 2003 era ligado a um partido político do Clã Barzani, o Partido Democrático Curdo.

A corrida dos acontecimentos tem sugerido um afastamento entre as forças curdas que foram ao sul na ofensiva contra o Estado Islâmico, mais ligadas à tropas estadunidenses e as forças que estão ao norte nas zonas originais do YPG. Os militantes do norte estão mais relacionados com a etiqueta de “YPG” enquanto os outros estão mais identificados pelo guarda chuva das SDF.  Forças curdas no norte do país, incluindo Afrin, chegaram a ser treinadas por russos antes ofensiva turca.

As movimentações da Turquia podem fortalecer contradições das forças curdas com os Estados Unidos.

Turquia

A Turquia alega motivos de segurança nacional para conduzir as suas operações. Igualam o grupo YPG ao PKK que atua na Turquia. Permitir a criação de um “grupo terrorista curdo” nas próprias fronteiras não seria tolerável. O governo turco alega estar combatendo “quatro grupos terroristas ao mesmo tempo”, incluindo as forças ligadas ao governo sírio e supostamente o Estado Islâmico (DAESH/ISIS).

Analisas e adversários, porém, apontam que Erdogan tem interesses geopolíticos mais profundos do que combater os curdos somente.

O país vem criando um histórico de oposição ao governo em Damasco, sendo um dos principais críticos internacionais e principais apoiadores do lado dos rebeldes sírios na guerra civil que começou em 2011. Gradualmente a Turquia assumiu o papel de principal patrocinador e principal referência para os grupos rebeldes, até intervir diretamente com suas tropas a partir de 2016 com a Operação Escudo de Eufrates, para em seguida iniciar operações separadas na região de Idlib.

O apoio turco é crucial para a manutenção dos principais grupos rebeldes no norte do país. Seus aliados incluem as velhas e famosas organizações “Exército Livre Sírio” e a franquia síria da Al-Qaeda, Jabhat Al-Nusra (agora Jabhat Fateh al-Sham). Dentre outras também estão a inicialmente patrocinadas pela Arábia Saudita, como Ahrar al-Sham, Nour al-Din al-Zenki (que adquiriu infâmia internacional com a decapitação de uma criança) e o Hayat Tahrir al-Sham.

Apesar da Turquia declarar que combate o Estado Islâmico na região de Afrin, a afirmação é disputada pela inexistência de zonas do grupo na região. No entanto, os turcos são acusados por sírios e curdos de manter combatentes de tal grupo em suas forças da coalizão – o que é altamente provável devido ao trânsito de combates entre grupos rebeldes na oposição síria e a mudança recente da demografia do Daesh com a perda de territórios.

Os bombardeios de vilarejos pela Turquia estão sendo listados como massacres. Ao mesmo tempo, perfis turcos em redes sociais compartilham vídeos de execuções sumárias e agitações chauvinistas (como este compartilhado pelo perfil de Can Bulat onde duas mulheres são executadas; a legenda diz que o “vídeo é viciante”, inscrição acompanhada por uma bandeira da Turquia – recomendamos discrição).

O nacionalismo turco tem formas especialmente extremistas e belicosas, não só nas redes sociais e nas ruas, mas no próprio parlamento. Devlet Bahceli, líder da oposição e do Partido do Movimento Nacionalista Turco, declarou em sessão que a bandeira turca tremulará sobre Afrin.

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* Fundador do site Realismo Político e co-apresentador do programa Posto Sul. Foi correspondente da Revista Opera junto aos rebeldes no leste da Ucrânia em 2015. Mantém a Coluna do Ortega na Revista Opera

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