Por que os Guarani Kaiowá continuam morrendo

Ruralistas contratam jagunços para matar e dissuadir luta dos índios. Eles resistem, em auto-demarcações. Captura de terras vem desde a guerra contra o Paraguai

Por Marcelle Souza, no Calle2

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Sob vistas grossas da PM, ruralistas contratam jagunços para matar e tentar dissuadir luta dos índios. Eles resistem, em auto-demarcações. Captura de suas terras vem desde a  guerra contra o Paraguai

Por Marcelle Souza, na Calle2 | Imagem: Mídia Ninja

Já era noite quando um grupo de atiradores entrou na última segunda-feira (11/7) na fazenda ocupada pelos kaiowá em Caarapó, no sul de Mato Grosso do Sul. Aproveitaram a escuridão para chegar com carros e armas no local. Três índios ficaram feridos, dois adolescentes e um adulto, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio). Os três foram atendidos e não correm risco de morte. A ameaça é um sinal claro da tensão que vive a região, que tem disputas de terras entre índios e produtores rurais, e também um lembrete do luto: há um mês um índio foi morto no mesmo local.

Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, 26 anos, enfrentou sem armas, de peito aberto, os inimigos do seu povo. Naquela manhã, um grupo de homens armados chegou na fazenda ocupada pelos kaiowá em caminhonetes e tratores. Queriam tirar à força os índios que tinham entrado dias antes na área privada. Não conseguiram, mas balearam o agente de saúde indígena, que deixou um filho que ainda não tinha completado um ano e a jovem esposa.

“Eu estava em outro lugar, numa reunião de professores a 7 km de distância do lugar onde foi o tiroteio. Recebemos uma ligação e corremos para lá. Quando cheguei, tinha bombeiro, ambulância, era um cenário de guerra, uma mini-guerra, o pessoal tinha sido baleado e a gente não podia entrar”, diz Nelson Avila da Silva, 50, kaiowá estudante de biologia na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).

“Eu nunca tinha visto uma situação como aquela, o pessoal estava na fazenda quando eles chegaram com umas 50 caminhonetes, F4000, Hilux, trator agrícola. Tinha um em cima dessa carregadeira atirando, usava uma parte do trator como escudo para vir avançando pra cima de nós”, diz.

Clodiode era filho do vice-cacique da aldeia, tinha sangue de líder e achava que conseguiria parar sem bala o confronto que se arrasta há anos na região. Não conseguiu.

Morreu e engrossou o número de vítimas da disputa entre kaiowás e fazendeiros em Mato Grosso do Sul. O tiroteio começou por volta das 10h daquele 14 de junho e deixou outras cinco pessoas feridas – uma delas tinha 12 anos.

Uma história de violências

Em MS existem cerca de 30 mil kaiowá, distribuídos em reservas (regularizadas ou não), acampamentos ao longo de estradas e em fazendas ocupadas. As condições da população variam de acordo com a localização, o tamanho e o status de demarcação da terra em que estão, mas de maneira geral o acesso à saúde, à segurança e à educação são piores entre os indígenas. Nessas comunidades, há altos índices de suicídio e homicídio, bem como já foram noticiados casos de desnutrição severa de crianças kaiowá. Há, portanto, um descaso do poder público que se soma aos conflitos por terra na região.

“Em MS, o que nós temos é a permanência de um quadro de violência sistêmica, em que os deslocados internos se equiparam, pelos índices de prestação de serviços e de vulnerabilidade, aos campos de refugiados”, diz o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida.

“Temos um quadro grande de violência, de desorganização social, a prestação de serviços públicos, como educação, segurança e saúde, é deficiente, há um índice gravíssimo de suicídios, e não há como dissociar esse quadro do processo histórico que fez com que ele fosse criado”, afirma.

O processo que deu início a esse complexo conjunto de negações e de violações de direitos começou no século 19, com o fim da Guerra do Paraguai e a instalação da Companhia Matte Larangeira, no sul do então Estado de Mato Grosso. De acordo com Neimar Machado de Sousa, professor de história indígena da Faculdade Intercultural Indígena da UFGD, esse período foi marcado pela ocupação por miliares de terras tradicionalmente indígenas e pela utilização dos kaiowá nos ervais da companhia. “Eles foram retirados do convívio familiar e de suas terras para trabalhar, foram explorados pelo sistema de peonagem, que causava o endividamento dos índios, que viviam em um sistema de semiescravidão”, diz.

O segundo momento de retirada dos kaiowá de suas terras foi a criação, em 1910, do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). “O SPI era ligado ao ministério da Agricultura e seu objetivo era transformar os indígenas em trabalhadores rurais. Foi quando o processo de confinamento se tornou mais grave, agrupando em pequenas áreas etnias diferentes e famílias que não se relacionavam, e está é a raiz de muitos conflitos internos e da violência que você vê até hoje”, afirma o professor.

Com os anos, essas áreas ocupadas por fazendeiros, que receberam ou não do Estado a posse legal das terras, transformaram a região em polo agrícola. Hoje, o sul de MS é a área mais produtiva do Estado, com destaque para o cultivo de cana-de-açúcar, soja e milho.

O resultado é um abismo formado pelo valor das terras e do que elas produzem, de um lado, e, de outro, pelas condições sociais e altos índices de violência nas comunidades indígenas. Adicione a esta panela de pressão, a demora do Estado na solução dos conflitos que se arrastam por anos, e teremos o que é o conflito em Mato Grosso do Sul.

Leia o texto na integra na revista Calle2

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