Os sentidos do Treze de Maio, 130 anos depois

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Brasil recebeu ao menos um terço de todos os africanos escravizados. Além disso,  naturalizou a escravidão e radicalizou o racismo, diz Lilia Schwarcz, que lança novo livro sobre o tema

Entrevista a Júlia Dias Carneiro, na BBC Brasil

Sancionada pela princesa Isabel no dia 13 de maio de 1888, a lei que aboliu a escravidão após mais de três séculos de trabalho forçado no Brasil “saiu muito curta, muito pequena, muito conservadora”, descreve Lilia Moritz Schwarcz. Em entrevista à BBC Brasil, a historiadora diz que as consequências dessa virada de página abrupta, sem políticas para incluir os ex-escravos à sociedade, são sofridas até hoje.

“O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural”, considera Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros livros, de O Espetáculo das Raças, As Barbas do Imperador, Racismo no Brasil e Brasil: uma biografia.

Como parte dos eventos para marcar os 130 anos da abolição, Schwarcz lança nesta sexta-feira (11/05) o Dicionário da Escravidão e Liberdade – 50 textos críticos (Companhia das Letras), em coautoria com o historiador Flávio dos Santos Gomes. Schwarcz é também co-curadora da exposição Histórias Afro-Atlânticas, que será aberta no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, no fim de junho.

“Estamos politizando essa data e deixando bem claro que é preciso lembrar para não esquecer. Mas não é possível celebrar”, afirma.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Lilia: “Não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural”

Na sua visão, nesses 130 anos desde a abolição, no que o país avançou e no que está parado?

Não há motivo algum para celebrar. O Brasil foi o ultimo país do Ocidente a abolir a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não. De fato, era chamado na época de ‘retardão’. Tardou demais. As estatísticas oscilam, mas indicam que o país teria recebido entre 38% a 44% da quantidade absoluta de africanos obrigados a deixar o continente. E teve escravos em todo o seu território, diferente dos EUA, por exemplo, que no Sul tinha um modelo semelhante ao nosso, mas no norte tinha outro modelo econômico.

Quando veio a Lei Áurea, em 1888, ela saiu muito curtinha, muito pequena, muito conservadora. “Não há mais escravos no Brasil, revogam-se as posições em contrário”. Corria no plenário uma série de propostas, algumas ainda mais conservadoras, outras mais progressistas.

Como esses grupos mais conservadores reagiram à abolição?

A queda imediata do Império (é resultado da reação desses grupos). A Lei Áurea foi a lei mais popular do Império e a última. Como não se previram indenizações, os grandes produtores de café, até então vinculados ao Império, se bandearam para as fileiras dos republicanos.

A abolição foi um processo de luta da sociedade brasileira. Não foi uma lei. Não foi um presente da princesa (Isabel), como romanticamente se diz. Muitos setores de classe média e de profissionais liberais aderiram à causa abolicionista, que vira suprapartidária na década de 1880. É importante destacar sobretudo a atuação dos escravizados, dos negros, dos libertos, que pressionaram muito o tempo todo, seja por insurreições, seja por rebeliões coletivas, rebeliões individuais, suicídios, envenenamentos.

O que o Estado fez foi retardar a Lei Áurea a um tal limite que ela acabou custando a própria vida do Império no Brasil. Um ano e meio após a abolição da escravidão, o Império acabou.

Qual foi o simbolismo da lei no momento em que foi assinada?

A assinatura do documento foi um ritual caprichadíssimo. Para se ter uma ideia, foram criados tipos novos para a composição da Lei Áurea. O pai do (escritor) Lima Barreto, João Henriques, participou de um grupo de tipógrafos que estavam emocionados com a lei, e compuseram tipos novos para o documento, assinado pela princesa com uma caneta valiosíssima. Todo o ritual teve muito apelo popular. A famosa foto da época (de uma multidão reunida do lado de fora do Paço Imperial, no Centro do Rio, para a assinatura da lei), mostra que a população compareceu, e é possível reconhecer bandeiras de irmandades negras que foram comemorar a abolição.

O ritual tinha tudo para encantar, e encantou. Tanto que mais tarde vimos a população liberta conformar a Guarda Negra, que era contra a República e a favor do Império. Hoje, muita gente pode achar isso uma grande contradição. Não é. Na época, a compreensão era que o Império tinha garantido o final da escravidão, e ninguém sabia o que viria com a República. Havia muito medo de projetos de reescravização. Estava tudo muito instável, nebuloso.

Hoje, sabemos que o ritual era parte da estratégia de dom Pedro 2º, que não estava no país, para garantir o Terceiro Reinado nas mãos de Isabel. A ideia era que a lei tornaria Isabel tão popular que impediria os projetos republicanos e garantiria a sucessão e manutenção do regime monárquico. O que não aconteceu. Mas o ritual foi realizado com grande pompa e circunstância, com o objetivo de fazer emocionar, e de fato emocionou.

Quais eram os principais vícios da lei?

A lei simplesmente abolia. Dizia que a partir desta data não há mais escravos no Brasil. Ponto final.

A República, que viria um ano e meio depois, tentaria colocar uma pedra no tema da escravidão. Como se tivesse ficado morto no passado junto com o Império. Temos um hino da República, aquele que canta “liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. E há uma estrofe que diz: “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. Ou seja, um ano e meio depois, (os republicanos) afirmavam não acreditar mais (que tivesse havido escravidão). Era um processo de amnésia nacional.

Quais foram as consequências imediatas desta abolição sem salvaguardas?

O (momento) pós-emancipação não teve nenhuma preocupação com inclusão dessas populações (de ex-escravos). Eu me refiro a educação, saúde, habitação, todos os problemas estruturais.

Mas isso não quer dizer que a gente só deva culpar o passado. O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural.

As gerações pós-Holocausto viveram o choque com a barbaridade e os horrores da Alemanha nazista. Você acha que no Brasil pós-escravidão houve um senso de choque posterior, uma percepção de que o país perpetrou barbaridades?

Aqui no Brasil, não. Você teve essa percepção em outros lugares. E existem alguns memoriais espalhados pelo mundo que falam do que foi a escravidão, como o memorial da abolição em Nantes, na França.

No Brasil, qual foi o suposto? Que a escravidão era a lei. Era legal. E durante muito tempo foi naturalizada. A ideia da naturalização é terrível. Sempre se mostrou uma escravidão muito benéfica. Basta vermos as imagens que passam a ideia de uma escravidão ordeira, tranquila. Como se isso fosse possível, em um sistema que pressupõe a posse de um homem por outro.

Só muito recentemente é que foi se colocando em pauta a dimensão da chacina, e o fato de a escravidão mercantil da era moderna ter produzido a maior diáspora vista no mundo depois de Roma.

Até o movimento negro contestar a data de 13 de maio, a data era uma data cívica. Era celebrada. Era despolitizada. Atualmente, estamos politizando essa data e deixando bem claro que é preciso lembrar para não esquecer. Mas não é possível celebrar.

Ganha força um movimento de cobrança por essa dívida histórica?

Eu penso que sim. O movimento internacional por cotas e políticas de ação afirmativa é uma tentativa de cobrar essa dívida histórica. Essa discussão começa no Brasil tarde, no fim dos anos 1970, e demora para pegar.

Os dados do censo vêm mostrando como o país é profundamente desigual. Quando comparamos marcadores sociais da diferença, como classe e raça, vemos que raça é sempre um agravante.

Estamos matando uma geração de negros e negras no Brasil. Sabemos que os negros têm menos acesso a educação. Têm menos acesso a saúde. Têm menos acesso a transporte. Morrem antes. São dados radicais que estamos recriando. Eu acho que ações desse tipo (as cotas raciais) são importantes porque há momentos em que é preciso desigualar para depois igualar. Não se pode falar em uma meritocracia universal num país tão desigual como o Brasil.

A eleição da Marielle Franco no Rio foi um exemplo da força que movimentos em prol da igualdade racial e de gênero vêm ganhando. Como você compara a força desses movimentos hoje com o que acontecia na sua juventude?

A minha geração viu o crescimento dos direitos civis, do direito à diferença na universalidade, e se orgulhou muito dessas novas conquistas. Acho que, no Brasil e no mundo, nós acreditamos que essas conquistas democráticas estavam de alguma maneira asseguradas.

O que estamos vendo agora é um momento claro de crise e recessão democrática, colocando em risco essas conquistas.

A morte da Marielle representa muito esse momento. Depois de 30 anos de conquistas democráticas, começamos a ver que direitos não são conquistados para sempre.

É absolutamente simbólico que sua morte tenha ocorrido bem no ano dos 130 anos da abolição. A Marielle usou das franjas do sistema. Ela se formou na Maré, entrou na PUC por política de cotas, fez valer o seu mérito, virou uma das vereadoras mais votadas no Rio por sua pauta de inclusão racial e de gênero. Sua morte ainda sem respostas é outro escândalo da nossa democracia.

No livro Brasil: Uma Biografia, você e a historiadora Heloisa Starling dizem que o país é uma obra ainda em aberto, e questionam se conseguiria consolidar a república e a democracia. Recentemente, a perspectiva ficou mais pessimista?

Quando terminamos o livro, estávamos encantadas, Heloisa e eu, com as passeatas de 2013, com as manifestações, com a ideia de um Brasil mais plural, mais vigilante. Acho que todos ficamos. O que não notamos era que existiam dois grupos que desfilavam na avenida (nos protestos de 2013). Sabíamos, mas depois ficou mais claro. Um que queria esse Brasil diferente, mais plural, mais inclusivo, mais variado; e outro que também queria um Brasil diferente, mas que, de alguma maneira, estava colocando tudo na conta de Dilma Rousseff e de um partido. Um Brasil que queria não pluralidade, mas de fato eliminar o adversário.

Ideologias políticas à parte, acho que o impeachment da presidente Dilma abriu a tampa da democracia no Brasil e deu lugar para a política de ódios, de intolerância. A temperatura política acabou derretendo as nossas instituições. Quando escrevemos Brasil: Uma Biografia, Heloisa e eu dizíamos que a democracia estava forte porque as instituições estavam consolidadas, mas a república ia muito mal. Agora vemos que tanto a república como a democracia vão muito mal, com as instituições muito enfraquecidas e o descrédito da política e dos partidos. Vivemos um momento que pede muita vigilância.

Nessa atual conjuntura, como você vê o cenário para as eleições deste ano?

Quem diz que sabe, mente. Não vejo nenhum sinal agora que permita comentar como vai ser a composição dos partidos, quem vai se apresentar de fato. Há muitos sinais para ficar em alerta. É preciso aguardar.

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