O mundo como Serra e Aloysio jamais enxergarão

Samuel Pinheiro Guimarães debate globalização, avanço da direita e oportunidades do Brasil. Ele ironiza: provinciano e “despreparado”, Serra isolou-se em SP

Sergio Lirio entrevista Samuel Pinheiro Guimarães, na Carta Capital

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Samuel Pinheiro Guimarães debate globalização, avanço da direita e oportunidades do Brasil no novo cenário global. Ele ironiza: provinciano e “despreparado”, Serra isolou-se em SP e em contatos com mídia local

Entrevista a Sergio Lirio, em Carta Capital

Samuel Pinheiro Guimarães é um dos mais consistentes, experientes e atilados quadros do Itamaraty. Ocupou o posto de alto-representante-geral do Mercosul entre 2011 e 2012 e foi ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos no fim do segundo mandato de Lula. Antes, como secretário-geral das Relações Exteriores, sob a batuta do chanceler Celso Amorim, integrou a cúpula de embaixadores que levou o Brasil a uma proeminência histórica no cenário internacional. Novo colunista do site de Carta Capital, Guimarães comenta a seguir a passagem do tucano José Serra pelo ministério, a perda de relevância do país na geopolítica e a ascensão de políticos como Donald Trump e Marine Le Pen. “O populismo de direita é um resultado do processo de globalização.” A coluna semanal do embaixador começará a ser publicada na próxima semana.

Como o senhor definiria a passagem do senador José Serra pelo Itamaraty?

A passagem de José Serra poderia ser definida como desastrosa. Revelou um notável despreparo para o exercício da missão de chanceler. Demonstraram seu despreparo os pronunciamentos, o desconhecimento de temas triviais, as tentativas de rever princípios da política externa, tais como a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, em especial na América do Sul, a prioridade da política brasileira para a América do Sul e a necessidade de diversificar as relações do Brasil com todos os Estados, a necessidade de articular a ação brasileira com aquela de países de circunstâncias semelhantes. Finalmente, a tentativa de alinhar o país com a política externa americana em todos os temas, sem colocar acima de tudo os interesses brasileiros — aliás, de acordo com a política praticada pelo governo Temer — expôs seu descompasso com o Brasil. Seu comportamento revelou desprezo pelos quadros do Itamaraty e pela sua experiência, isolando-se, quando em Brasília, em seu gabinete, dedicando especial atenção às questões de imprensa, e passando grande parte do tempo em São Paulo.

Por que o senhor acha que ele se demitiu?

Seu pedido de demissão pode estar ligado a quatro fatores: a decepção com sua pequena influência no governo, em especial nas questões econômicas, sua relativa incompatibilidade com os Estados Unidos, apesar de suas posições tradicionais de grande proximidade com esse país, devido à sua inoportuna e depreciativa declaração sobre Trump durante a campanha eleitoral americana, a necessidade de organizar sua candidatura a presidente ou mesmo a governador nas eleições de 2018 e a precariedade de sua saúde, inclusive física.

De que forma o Brasil conseguirá recuperar o protagonismo internacional perdido recentemente?

Em primeiro lugar, pela execução de uma política externa que se fundamente no respeito aos princípios que garantem a ordem internacional, protegem os Estados mais fracos e estão consagrados na Constituição brasileira e na Carta das Nações Unidas. São eles: os princípios da não intervenção, da autodeterminação, da igualdade soberana e da reciprocidade. Em segundo lugar, por uma política externa que priorize o desenvolvimento, em todas as suas dimensões, e a ampliação da participação do Brasil nos organismos internacionais, inclusive no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em terceiro, pela denúncia firme e serena de toda e qualquer ação arbitrária e violenta, em especial de grandes potências, contra os Estados periféricos e frágeis. Em quarto, pelo reconhecimento de que a realidade da localização geográfica do Brasil, suas fronteiras e número de vizinhos, a dimensão do território e de sua população, a riqueza de recursos naturais e o elevado grau de urbanização e de industrialização impõem uma estratégia de política externa de afirmação nacional. A ação serena e prudente dos executores da política externa, seu conhecimento dos temas e sua determinação na defesa dos interesses nacionais diante de qualquer Estado são fatores indispensáveis para recuperar o respeito e o protagonismo internacional. Só é respeitado quem se respeita e quem defende seus interesses.

Como explicar essa onda reacionária no planeta?

A recessão, iniciada em 2007, prolongou-se, transformou-se em  estagnação e trouxe um novo elemento e impulso à onda reacionária: o colapso da economia globalizada, devido à falência do sistema financeiro, a necessidade de sua recuperação com enormes recursos do Estado, a culpa jogada nos gastos sociais e, portanto, nos trabalhadores. As políticas recessivas, implementadas para recuperar a “confiança” dos investidores, isto é, do capital, que levaram ao desemprego e às reduções de salários, de direitos trabalhistas e previdenciários, estimularam a xenofobia e os movimentos de direita, enquanto as agressões militares a países como a Líbia e a Síria, onde morreram até o momento mais de 400 mil seres humanos, geraram as ondas de refugiados, deslocados e imigrantes, e as políticas anti-imigrantes nos países centrais.

Por que tem sido tão fácil derrubar as políticas progressistas na América do Sul, principalmente na Argentina e no Brasil?

Há quatro fatores principais que levaram à possibilidade de derrubar as políticas progressistas a partir da queda dos governos que as promoveram. A começar pelas operações de “regime change”, isto é, de golpes de Estado “suaves” desencadeadas pelos Estados Unidos após as vitórias democráticas de Hugo Chávez, Lula, Néstor Kirchner, Tabaré Vázquez, Evo Morales, Fernando Lugo e Rafael Correa, devido aos programas progressistas e de afirmação nacional que passaram a executar e que afetariam, em maior ou menor medida, os interesses políticos e econômicos americanos. Houve forte e articulada reação das classes hegemônicas, beneficiárias de séculos de mecanismos de concentração de riqueza, renda e poder, contra os programas progressistas, a favor dos trabalhadores e dos miseráveis, implementados por esses governos, inclusive por meio da articulação sistemática e permanente da mídia e dos poderes Legislativo e Judiciário contra esses mandatários. A não mobilização, em maior ou menor escala, das massas beneficiárias daqueles programas progressistas também pesou. Por fim, no caso de alguns países, deve-se levar em conta a incapacidade política e de visão estratégica dos governantes.

O que significaria uma vitória de Marine Le Pen nas eleições francesas?

Possivelmente, depois do Brexit, poderia ocorrer o Frexit, a saída da França da União Europeia, o que significaria um golpe severo no projeto autoritário, reacionário, tecnocrático e a favor do capital da UE, sob a liderança e em benefício da Alemanha. Poderia significar ainda uma política de recuperação da economia industrial e tecnológica francesa e uma política externa mais independente. E, muito certamente, levar a uma política social reacionária e agressiva contra os imigrantes e as comunidades muçulmanas na França, com importantes consequências nas políticas internas e externas.

O senhor acredita que o processo de globalização está sob risco, por conta da ascensão do populismo de direita?

O processo de globalização, isto é, de criação de uma economia global, foi impulsionado pelas megaempresas multinacionais (e por seus governos de origem) com o objetivo de eliminar os obstáculos à sua ação em todos os mercados em busca de maiores lucros, sob a orientação e a propaganda ideológica do neoliberalismo. A globalização levou a uma maior concentração de riqueza e renda dentro dos países, desenvolvidos e subdesenvolvidos, e entre as nações. Provocou uma crise financeira, econômica e social de 2007 e a consagração, ideológica inclusive, sob “o novo conceito” de cadeias globais de valor, da divisão internacional do trabalho entre as economias altamente desenvolvidas e tecnológicas e aquelas periféricas, produtoras e exportadoras de matérias-primas e de manufaturados simples. Este processo de globalização certamente não beneficiou o Brasil, pois acentuou sua característica de economia primário-exportadora e concentrou a renda no campo e no setor financeiro. O populismo de direita é uma consequência do processo de globalização, na medida em que muitos partidos e governos de esquerda aderiram às visões e às políticas neoliberais e permitiram que, em nome de uma pseudoutopia capitalista globalizante, os trabalhadores de seus países ficassem desempregados e fossem vítimas de políticas sociais antitrabalho.

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